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Catarina Furtado
Fonte: Divulgação RTP

Catarina Furtado: “A educação é a única arma de empoderamento”

No dia 8 de março celebra-se o Dia Internacional da Mulher. Para o assinalar, o Espalha-Factos esteve à conversa com Catarina Furtado sobre o flagelo da violência doméstica e no namoro, o seu trabalho como embaixadora da Boa Vontade do Fundo das Nações Unidas para a População e com a Associação Corações com Coroa, bem como a importância da educação como força essencial para uma sociedade mais igualitária, mais segura, e mais humana.

O primeiro Dia da Mulher foi celebrado em 1909 em Nova Iorque, num protesto por melhores condições laborais. Em 1977, as Nações Unidas reconheceram o dia 8 de março como o Dia Internacional da Mulher. Um dia de protesto, de celebração e de alerta para a necessidade de continuarmos a lutar pela igualdade de género.

Mas o que devia ser realidade parece escapar-nos pelos dedos, virando utopia. As estatísticas não mentem: em 2020, 27 mulheres foram assassinadas em contexto de violência doméstica; a violência doméstica (maus-tratos físicos e psíquicos) representou, em 2019, 79% dos crimes contra as pessoas. Feminicídio, mutilação genital, injustiças no mercado de trabalho, oportunidades desiguais ou micro-agressões diárias – todas estas formas de violência de género, física e psicológica, continuam a ser uma realidade perturbante que é necessário combater, não só no Dia da Mulher, mas diariamente.

Catarina Furtado falou com o Espalha-Factos, numa conversa que pretende chamar atenção às injustiças que continuam a ser perpetuadas e reproduzidas em pleno século XXI. Por isto luta a ativista pelos Direitos Humanos, embaixadora da Boa Vontade do Fundo das Nações Unidas para a População, fundadora da Associação Corações Com Coroa, apresentadora, atriz e, acima de tudo, mulher.

Catarina Furtado
Fotografia: Divulgação
Sempre se pronunciou contra as injustiças que, ainda hoje, são perpetuadas contra as mulheres. Já alguma vez se sentiu desencorajada ou desanimada face à luta que, às vezes, parece não vingar? Ou a vontade de conquistar um mundo melhor sempre falou mais alto? 

Claro que já me senti. Mais que desanimada, muito indignada, revoltada e mesmo chocada. Chocada é a palavra certa. Na realidade, o que acontece é uma perpetuação dos papéis que estão atribuídos socialmente em diferentes países, diferentes culturas, em países desenvolvidos e em desenvolvimento. Os papéis que estão atribuídos às mulheres e aos homens, que também acabam por sofrer muitos preconceitos relacionados à sua masculinidade, perpetuando também sofrimentos para eles. No que diz respeito à mulher, são séculos e séculos de poder do homem que é extensível a todos os quadrantes onde a mulher se insere. Nesse sentido, muitas das realidades que eu tenho visto, quer em países desenvolvidos quer nos países em desenvolvimento, deixam-me muitas vezes revoltada, mas nunca desanimada. Olho sempre para trás para construir o futuro. Olho para o passado e penso que antigamente as mulheres tinham de pedir autorização aos homens para fazer uma viagem, por exemplo. Antigamente as mulheres não votavam…

Enfim, uma série de coisas que nós já sabemos e que ainda hoje [enfrentamos]. Só há pouco tempo é que na Arábia Saudita as mulheres começaram a poder tirar a carta de condução. Foram muitas mulheres que se esforçaram e arriscaram de uma forma muito comovente a própria vida para combater as desigualdades com base no género.

Por isso é que também me irrita muito quando as pessoas acham que o feminismo é uma espécie de devaneio ou uma “birrinha” das mulheres.

Isso é de uma profunda ignorância, porque se formos ver a História ela está cheia disto. É fundamental que saibamos e estudemos História, em vez de imitar opiniões sem nenhum fundamento. As mulheres têm um passado já muito longínquo e foram, devagarinho, morosamente, com muitas dificuldades, conquistando o seu espaço. Estamos longe, muito longe de uma igualdade, mas também já estivemos mais longe… É a essas vitórias, a essas pequenas conquistas que me agarro sempre.

Quando referi as lutas que travamos diariamente enquanto mulheres, lembrava-me da questão da violência no namoro. A Catarina foi uma das mais de 160 mulheres que assinou a Carta Aberta Contra a Violência Doméstica e de Género. Apesar das vozes cada vez mais ativas contra este flagelo, a UMAR – União de Mulheres Alternativa e Resposta apontou que 67% dos jovens consideram legítima a violência no namoro, num estudo publicado este ano. Porque é que acha que ainda tantas e tantos jovens desconsideram este abuso? 

E [58%] assumiram que vivenciaram uma situação de abuso, seja ele ao nível psicológico ou a nível físico. A violência doméstica e no namoro já existem há muitos anos. A violência doméstica, felizmente, tem hoje espaço, quer na opinião pública, quer nos intervenientes da sociedade. Antigamente, ninguém metia o bedelho, não se devia interferir porque “entre marido e mulher não se mete a colher“. Hoje em dia já há mais espaço. [Os resultados] não querem dizer que há mais violência doméstica do que antigamente. O que querem dizer, e é igualmente preocupante, é que ela continua a existir e é fruto do papel que é atribuído ao homem e que deixa, muitas vezes, as mulheres dependentes, não só economicamente – mas as mulheres que são dependentes economicamente têm mais dificuldade em reerguer-se, pedir ajuda e virar a página. Aquelas que estão mais dependentes, de alguma forma anulam-se, aceitando, que nem um fado trágico, a sua condição de mulher que está à mercê de um homem.

As mulheres que são dependentes economicamente têm mais dificuldade em reerguer-se, pedir ajuda e virar a página.

Por outro lado, e é importante dizer-se, em relação à pandemia… sabe-se que ela veio acentuar as desigualdades com base no género, nomeadamente a violência. [Se olharmos] para as estatísticas, se calhar encontramos menos queixas formais na PSP, mas, por outro lado, encontramos mais pedidos através das linhas de apoio, bastante mais ágeis para que a mulher que está em confinamento com o seu agressor possa disfarçadamente recorrer via SMS. É muito importante que assim o seja. Porque a mulher, sem o seu espaço social, não consegue tanto ter apoio quer das companheiras ou companheiros do trabalho, quer dos sítios que costuma frequentar, acabando por ficar muito mais contida, mais fechada dentro das suas paredes, onde estará também o agressor. Não são só as mulheres, mas também os jovens e as crianças que acabam por ter uma vivência maior da violência.

Foi aí [a pensar na prática da violência no namoro] que escrevi o tema ‘O Que é Ser Normal’, com música do Tiago Bettencourt e cantada pela Daniela Melchior. É fruto da minha experiência nas escolas e nas palestras. Cada vez mais, temos de pensar nos conteúdos pedagógicos – eles têm de passar por um ensino da empatia, dos afetos, do que envolve a saúde sexual e a inteligência emocional. Isso está à vista de toda a gente, e só quem não quer ver é que assobia para o lado. Com as redes sociais e o recurso às tecnologias, é cada vez mais difícil as pessoas olharem nos olhos e dizerem aquilo que pensam e sentem. Através das ferramentas tecnológicas, as pessoas criam comportamentos que geram uma incapacidade, uma falta de habilidade total para gerir as emoções. O que me apercebo quando vou às escolas é que os jovens, de facto, têm uma enorme confusão nas suas cabeças relativamente aos conceitos de “amar”, sobre o que é ter ciúme, o que é gostar, o que é controlar… põem tudo no mesmo saco. “Se ele é meu namorado, ou namorada, então ele ou ela é meu”. Por isso é que 67% acha normal este controlo, porque passam a achar que o conceito de namorar é um conceito de património.

As redes sociais têm tido um grande impacto na divulgação de campanhas contra a violência de género. Uma delas foi a #NamorarSemViolência, da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, que contou com a participação de tiktokers, youtubers e influencers, para públicos mais jovens. Estes conteúdos fazem falta na televisão, direcionados talvez para um público mais abrangente?

Sim. E fazendo aqui uma crítica um bocadinho mais corrosiva à televisão em Portugal, acho que nós deveríamos fazer todos um esforço, independentemente de ser a RTP ou uma estação privada. Não estou a fazer juízos de valor, são diferentes as responsabilidades e obrigações de uma estação pública e as de uma privada. Acho que nós, que trabalhamos em comunicação televisiva, deveríamos fazer um esforço por falar sobre estas questões que dizem respeito a todos e a todas. Aquilo que devia ser o nosso interesse maior e comum nesta Humanidade partilhada é precisamente construirmos cidadãos mais pacíficos e mais bem informados, com os valores corretos, para que seja mais fácil levar esta sociedade para a frente. Portanto acho que este tipo de conteúdos são extremamente importantes e eu tento, à minha maneira, até às vezes no The Voice, aplicar uma ou outra ideia para que estas questões fiquem registadas nas cabeças daqueles jovens.

Nós, que trabalhamos em comunicação televisiva, deveríamos fazer um esforço por falar sobre estas questões que dizem respeito a todos e a todas.

Apercebo-me que, de facto, a televisão é um sítio poderoso, mas as redes sociais são cada vez mais poderosas, até mais que a televisão. E é aí que temos de apostar. Mas, mais que isso, sinto que era importante ser feito em conjunto. É importante trabalhar estes conceitos com os jovens, porque às vezes o que acontece é que algumas campanhas – e não falo dessa [#NamorarSemViolência] em particular, porque acho que fizeram muito bem em recorrer a figuras mediáticas – [não são] construídas com a colaboração dos jovens, mas deviam. Eles sim, têm experiência no terreno. Não é a nossa vida, não é a vida de quem cria estas campanhas, e é importante que os projetos sejam feitos em união entre os géneros e idades. É importante também dizer-se que não existem só rapazes e raparigas, e que há uma diferença enorme entre o que é o sexo, o que é a identidade de género, o que é a orientação sexual… São conceitos que também devem ser trabalhados e ensinados. [Se não for assim], a violência depois propaga-se através do bullying. Porque se é homofóbico, ou porque se é xenófobo… Tudo isto tem de ser trabalhado com os jovens, porque esta experiência não é a mesma de antigamente e é necessário que seja tudo esmiuçado. Ainda há muito bullying, muito racismo e muita violência em Portugal, muita mesmo.

E há como reverter ou atenuar isso?

Há uma coisa muito importante que está a acontecer: estamos cada vez mais a insurgir-nos enquanto sociedade civil contra a forma como a violência, nomeadamente doméstica, ainda está a ser tratada. Temos imensos especialistas e organizações que fazem trabalhos excelentes, como a UMAR, por exemplo. No entanto, a verdade é que quando uma mulher tem a coragem de romper com uma situação em que é humilhada, agredida, maltratada (ela e os seus filhos), o que acontece em Portugal é que ela vai para tribunal e em cerca de 90% dos casos os agressores ficam com pena suspensa, se se chegar sequer à pena.

Há uma percentagem gigante de juristas que não está preparada para lidar com questões de violência doméstica, e essas competências são algo que devíamos exigir enquanto sociedade. É inconcebível que os magistrados não saibam lidar com isto. É inconcebível que depois de uma queixa, se passem meses até as pessoas serem efetivamente ouvidas. Uma das coisas que está a ser posta em causa é mesmo a morosidade do processo. Quando uma mulher faz uma queixa, em menos de 72 horas o agressor deveria estar a ser ouvido, porque senão passam-se meses e há imensas coisas que acontecem: perseguição, manipulação, falta de provas. É muito dramático que não haja um trabalho sério com os peritos para que se possa criar evidência de provas, não só de agressão física, como psicológica. Uma mulher pode ser vítima de agressão e sair sem nenhuma nódoa; a peritagem não faz o circuito todo. A violência acontece e as mulheres morrem porque há uma [intervalo] gigante entre o momento em que é feita a queixa e o momento da pena. E muitos dos casos trágicos de morte seguem um ciclo: faz-se a queixa, o homem leva pena suspensa e mata a mulher. Como é que nós, sociedade portuguesa, não defendemos estas mulheres que acabam mortas? Parece que no que toca a violência doméstica o papel é sempre da vítima – e não gosto particularmente da palavra “vítima”.

Nós na imprensa também temos de ter muito cuidado no modo como tratamos mediática e jornalisticamente estas questões. Damos sempre o microfone à vítima – “conte lá a sua vida!”. Nunca fazemos a avaliação, do ponto de vista jornalístico, dos opressores. É sempre a vítima, coitada, que mais uma veztem de dar a cara, falar sobre o que aconteceu!

Mais uma violência…

Mais uma violência! Até a imprensa tem um bocadinho de “culpa” sobre a forma como esta questão é retratada. A mulher expõe-se e nada ganha com isso. Devia ser um win-win! Elas deviam ter um retorno, não é? É mais uma exposição gratuita, e isso ainda acontece muito em Portugal.

catarina furtado
Catarina Furtado na apresentação da Carta Aberta contra a Violência Doméstica e de Género | Fotografia: NOVA FCSH
A Associação Corações Com Coroa, criada e presidida por si, pretende precisamente combater estas atitudes que promovem a desigualdade de género, étnica, social… O papel da associação também passa por informar e criar iniciativas direcionadas a pessoas com menos consciência política? Como é que se pode traçar este caminho de consciencialização para estas problemáticas?

Sim, nós temos muitos projetos. Assim que criei a Corações Com Coroa, há nove anos, uma das primeiras preocupações que tive foi trabalhar diretamente com a imprensa. Como eu venho dessa área, sei o quão difícil é para os diretores e editores colocarem as questões dos Direitos Humanos na ordem do dia. Achei importante que a Corações Com Coroa atribuísse prémios na área dos Direitos Humanos para Jornalismo e para Publicidade. Foi um incentivo para perceber o que é que está a ser feito a nível do jornalismo, porque a sua essência está em denunciar. Também relembramos reportagens, que é mais uma forma de falarmos sobre estas questões.

Para além disso, temos atendimento gratuito todos os dias. Nesta altura não está presencial, mas continuamos a trabalhar online com psicólogas e assistentes sociais contratadas por nós. Damos apoio jurídico, alimentar… todo o tipo de apoio que conseguirmos. É um trabalho diário, temos casos de mulheres que foram vítimas de relações abusivas e jovens todos os dias. As mulheres e raparigas podem [estar] connosco o tempo que for necessário até se sentirem empoderadas e capacitadas para poder continuar a sua vida.

Os jovens não são capazes de perceber onde é que está o abuso.

Temos também o CCC Vai À Escola, exatamente contra a violência no namoro e contra o bullying. Já fomos a centenas de escolas em três anos, de norte a sul do país, onde mostramos uma peça de teatro em contexto de sala de aula e uma palestra com uma técnica que os ajuda a esmiuçar os mais variados conceitos. A peça é sobre dois namorados que se maltratam e é um espelho da vida de muitos alunos. Mas é interessante perceber que os jovens, depois de assistirem, não são capazes de perceber onde é que está o abuso. Isto leva-nos a crer que existem mesmo muitos [mal-entendidos] em relação a estas temáticas. Eu própria vou a palestras voluntariamente. Para mim, é muito importante que a CCC tenha um papel tão importante e construtivo nestas matérias dos Direitos Humanos e da Igualdade de Género, e por isso todos os anos fazemos uma conferência temática.

A Corações Com Coroa também tem desenvolvido um papel importantíssimo na educação de jovens através da atribuição de bolsas de estudo a raparigas que de outra forma não teriam como prosseguir os seus estudos.

Exatamente. No fundo, a CCC é a minha pegada voluntária, o meu donativo. Construí-a e, hoje em dia, para além de sócios, temos o apoio de voluntários e empresas que exercem a sua responsabilidade. Mas a minha grande pegada, quando a CCC começou, foi ajudar a dar oportunidades a quem não as tem. Se olharmos para o mundo, e eu com a experiência que tenho de vinte anos enquanto Embaixadora da Boa Vontade do Fundo das Nações Unidas para a População, percebo que realmente as meninas, as mulheres e as adolescentes são quem mais sofre no mundo inteiro, quer em países desenvolvidos, quer nos em desenvolvimento, e eu tinha de fazer alguma coisa. Se eu tive espaço para realizar os meus sonhos e se pude sonhar enquanto rapariga, se pude querer ser bailarina e se, hoje em dia, enquanto adulta, posso fazer aquilo que gosto, porque é que não podemos todas? Para mim é muito importante apanhar as pessoas numa fase em que o que elas precisam é de alguém que acredite nelas – para além de recursos financeiros, evidentemente.

Se eu tive espaço para realizar os meus sonhos, porque é que não podemos todas?

Para a CCC, se uma rapariga quer estudar, tem capacidade de trabalho e, acima de tudo, vontade, mas não tem recursos financeiros, o que fazemos é, precisamente, acreditar nelas. A verdade é que quando se está num contexto de vulnerabilidade social, todo o ambiente é muito pouco favorável e muito pouco harmonioso, o que faz com que seja muito difícil atingir os seus objetivos. Por isso, a CCC oferece também apoio biopsicossocial. Não damos apenas o apoio financeiro para cumprir os objetivos escolares e suprir as despesas, também damos este apoio com as nossas psicólogas e sociólogas, para que a rapariga tenha esse empoderamento permanente para se sentir segura, forte e empenhada e para que nunca se sinta sozinha na realização dos seus sonhos. E é muito bom perceber que estas 30 raparigas, muitas que já são mulheres, realizaram e estão a realizar os seus sonhos. E é lindo vê-las a dizer que, quando ganharem o primeiro ordenado, querem apoiar a CCC para que o seu contributo chegue até outras raparigas. Isto é acreditar na solidariedade, e eu acredito muito na magia desta bola de neve de apoio que se vai criando.

corações com coroa
Conferência “Adolescência – Com riscos se traça o futuro”, organizada pela CCC em 2018 | Fotografia: CCC
A educação acaba por ser uma enorme arma de empoderamento.

A educação é a única arma de empoderamento. Lembro-me de estar num campo de refugiados do Bangladesh com os Príncipes do Nada, e havia um adolescente do Myanmar que andava sempre atrás de nós. Eu pensei que ele era capaz de ter fome e perguntei. Ele estava naquele campo há um ano e dizia que a única salvação para ele era estudar. “Eu posso não comer, mas arranje-me uma maneira de estudar”. E quando vês uma pessoa desesperada por querer estudar, por querer conhecimento… Ficas completamente arrasada. Já não estamos a falar da sobrevivência, da comida – e ele tinha fome! –, mas da consciência de alguém que já soube a importância de ter educação e que deixou de ter a oportunidade de estudar, mas sabe que é por aí que passa a solução. É muito perturbador. Acho mesmo que a educação é a salvação, a chave disto tudo.

Por exemplo, outra das violências contra as mulheres, a mutilação genital feminina, está a ser erradicada em alguns países, como a Guiné-Bissau ou a Gâmbia, através de projetos que, efetivamente, têm como base a educação. [Esses projetos] juntam os parceiros e as ONGs às escolas locais e grupos religiosos que fazem parte daquela comunidade. Juntos, dão aulas de educação sobre estas práticas nefastas às fanatecas (as mulheres que fazem a excisão) e o impacto que têm na saúde das mulheres porque, efetivamente, elas não sabiam. Não se pode apenas dizer “Ah, são ignorantes!” ou “São razões culturais e não podemos discutir isto”. Claro que podemos, através da educação. E os resultados estão aí, aos poucos esta prática está a ser erradicada.

Catarina Furtado
Catarina Furtado em missão | Fotografia: RTP/Divulgação
Como dizia há pouco, a pandemia veio acentuar ainda mais as desigualdades. Acha que esta pausa coletiva acabou por deixar-nos entorpecidos?

Gostava muito de te dizer que o mundo está só povoado por quem quer fazer o bem e que consegue olhar para além de si. Mas não, no mundo existe de tudo. O exemplo que tenho enquanto fundadora da Corações Com Coroa é que houve muita gente que sentiu uma espécie de clique. Estamos perante uma humanidade partilhada e a nossa salvação ou sobrevivência depende da forma como nós, quase que num processo de mutualismo, nos ajudamos uns aos outros. E, na verdade, muitas pessoas movimentaram-se nesse sentido, foram criados movimentos independentes de associações e de Estados a partir de pessoas que lutaram para fazer a diferença nestes dois confinamentos. Empresas que não tinham nenhuma atenção à responsabilidade social ficaram muito mais atentas e deram do seu contributo.

E depois há aquelas pessoas que ficaram ainda mais egoístas, com ainda mais medo que o seu enorme cofre ficasse mais magrinho, e é terrível. Eu não sou derrotista, sou uma otimista realista, porque continuo a ser inspirada pelas heroínas que vejo pelo mundo inteiro, que deixam o seu bem-estar ou conforto financeiro para poder ajudar os outros. Mas também vejo milionários completamente solitários, com a saúde mental fragilizada e que têm os cofres cheios. Vê-se de tudo. Não sou derrotista porque há pessoas que fazem a diferença, as tais pessoas que ultrapassam dias horríveis em campos de refugiados, com crianças, com doenças… Essas pessoas são as verdadeiras heroínas.

Haverá pessoas que tiram desta pandemia conclusões mais produtivas para a Humanidade, mas a História já nos mostrou que as mentalidades não mudam com as crises, infelizmente. Haverá sempre pessoas mais “umbiguistas”, numa crise “egológica“, mas também vai sempre existir pessoas que percebem que tem de haver um trabalho bastante produtivo e independente. O Estado deve cumprir e devemo-nos insurgir quando não cumpre, e quando as políticas públicas não colocam as pessoas no centro das suas decisões. Mas, para todos os efeitos, este trabalho é conjunto, feito com o Estado, com ONGs, associações, com o saber universitário e com empresas para que, todos em conjunto, colmatemos as desigualdades que estão ao mesmo tempo mais destapadas e agravadas.

Principes do Nada
‘Príncipes do Nada’ | Fotografia: RTP
Desigualdades essas que se fizeram sentir mais no feminino, também.

Sim, não posso deixar de dizer que, mais uma vez, as mulheres foram aquelas que mais sofreram as consequências da pandemia. Tanto pela violência, como pela perda de emprego, na conciliação da vida profissional com a vida doméstica. Pelo facto de serem as mulheres a representar 70% da força do trabalho social e da saúde, estão mais expostas à Covid-19. São também as que têm maior número de pessoas a seu cargo, enquanto cuidadoras informais. E isto faz com que estejam sempre, sempre, na fila de trás.

Quais são as micro-atitudes que podemos tomar no nosso dia-a-dia, individualmente, para abrir caminho a uma sociedade cada vez mais igualitária e menos discriminatória? 

As pessoas perguntam-me isso imensas vezes, nas palestras que faço e nas minhas redes sociais. É preciso vontade, em primeiro lugar. Muito verdadeiramente, é necessário que estejamos informados. Às vezes, as pessoas têm ímpetos de querer fazer mais, que são ótimos, mas se olharem exatamente para o tempo que é necessário despenderem para se aprender sobre Direitos Humanos, percebem que afinal não estão assim tão bem informadas. A partir do momento em que estamos mais bem informados, acabamos por  encontrar mecanismos e caminhos para podermos colaborar, seja através de donativos ou, para quem não tiver meios para o fazer, através da assinatura de petições, cartas aos decisores políticos e técnicos, ou mesmo através da utilização das redes sociais para transmitir mensagens de sensibilização.

Vivemos muito mais confortavelmente se não reconhecermos que existe desigualdade. Mas assim o mundo fica muito mais pequenino. E o Mundo é muito maior do que os nossos problemas.

Há uma série de coisas que podem realmente ser feitas, mas cujo primeiro dado de todos tem de ser reconhecido – eu estou ou não informada? Quero informar-me sobre isto? Tenho pessoas que me dizem: “A Catarina faz um trabalho fantástico, mas eu não consigo ver os Princípes do Nada porque faz-me muita confusão”. E não estou a criticar, quem sou eu para criticar aqueles que ficam sensibilizados com a dor dos outros, mas isto é já em si um princípio: se não queres ver, não vais saber. Vivemos muito mais confortavelmente se não reconhecermos que existe desigualdade. Mas assim o mundo fica muito mais pequenino. E o Mundo é muito maior do que os nossos problemas.

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