Depois de ter conquistado o mundo do cinema com Thelma, Joachim Trier volta aos cinemas com mais um projeto. The Worst Person in The World é uma comédia negra dramática que chegou às salas portuguesas esta quinta-feira (10) e conta com Renate Reinsve no papel principal. Foi alvo de muitos elogios aquando da estreia em Cannes e foi recentemente nomeado para o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro e Melhor Argumento Original.
A passagem para a vida adulta é difícil. Muitos de nós ainda nem chegámos a essa fase da vida e já temos bem noção do quão difícil será. Há sempre pressão para tudo e mais alguma coisa nessa altura. A urgência de sermos alguém na vida, de nos mantermos estáveis nos momentos mais delicados, o esforço para sermos a pessoa mais sã possível. Isto são coisas que aparecem sempre, de forma quase obrigatória, quando nos tornamos jovens adultos.
Nessa fase, também aparece a constante procura pelo romance perfeito, pelo conforto que nunca tivemos, de assentar, de nos sentirmos completos ao lado de alguém que é um porto de abrigo para nós. Isto acontece tudo, normalmente, quando o sentimento desconfortável do desvanecimento da infância começa a surgir e com o aparecimento de responsabilidades que nunca nos foram impostas até lá e para o qual não nos sentimos preparados.
É aqui que entra este filme. The Worst Person in The World é a terceira entrada na trilogia de Oslo de Joachim Trier, um realizador que vem construindo uma filmografia muito à base de emoções humanas, contadas das mais variadas maneiras. Thelma, por exemplo, é o maior exemplo disso. Perto da genialidade desse, temos ainda Oslo, August 31st ou Reprise. Louder Than Bombs, a primeira aventura de Trier em Hollywood, não foi tão bem recebida, mas não deixou de realçar a veia deste artista para histórias sobre a fragilidade e a condição humana.
No entanto, nunca um filme do cineasta atingiu a audiência como The Worst Person In the World. Contando a história em 12 capítulos, juntamente com um epílogo e um prólogo, esta longa-metragem conta-nos a história de Julie na sua transição para a tal vida adulta. Podemos dizer que ela é a personificação de uma geração inteira: indecisa, caótica, sempre pronta a autossabotar-se nas mais pequenas decisões.
A dado ponto, naquele que é um dos momentos mais dramáticos do cinema recente, Renate Reinsve, a atriz que dá vida a Julie, diz, com um tom melodramático que a vai caracterizando ao longo deste projeto, que se sente uma espectadora na própria vida. Uma verdadeira millennial por natureza, Julie sente-se presa num ciclo de más decisões, motivando a existência de ansiedade, frustração, tristeza e insatisfação.
Ao começar o filme com a entrada na universidade e consequentes mudanças de cursos e vários penteados diferentes, muita da frustração falada acima é bem retratada na montagem inicial, que nos dá a conhecer a nossa heroína. Tal também é demonstrado nos vários momentos que vão sendo mostrados durante as curtas duas horas de filme, que retrata quatro anos da vida da protagonista.
Joachim Trier nunca se priva de ir mudando de género no filme. Muitos projetos falham quando o tentam, como se metessem uma playlist no modo aleatório e esperassem pelo melhor, mas a naturalidade com que The Worst Person in The World muda radicalmente de tom, às vezes dentro dos próprios segmentos que começaram com comédia e acabaram em momentos de agonia, é corajosa.
Para além da maneira como demonstra que conta com uma narrativa ser audaz, a longa-metragem tem criatividade para dar e vender e, numa altura em que cenas fora da caixa são cada vez mais raras no cinema, Trier tem momentos aqui com mais qualidade que carreiras de cineastas inteiras. Quer seja através de metáforas visuais, ou através de cenas diretas ao assunto, Joachim Trier demonstra um à vontade atrás da câmara que não se vê todos os dias.
*O texto que se segue contém spoilers de The Worst Person in the World*
Existem dois grandes exemplos disso neste filme, que enchem o ecrã com uma criatividade de arrepiar qualquer fã da Sétima Arte. O primeiro acontece no segundo capítulo da história. Por esta altura, Julie sente-se como a opção segura de alguém que não sabe melhor do que isso. Interpretado brilhantemente por Anders Danielsen Lie, Aksel é o namorado da personagem principal nesta altura, um escritor de banda desenhada bem sucedido, que a trata com a confiança de que nunca a vai perder, tomando-a por garantida durante boa parte da relação.
Isto acontece até Julie o abandonar numa festa, tomada pela ansiedade de quem não sabe bem o que está a fazer, e acaba a entrar num casamento para o qual não foi convidada. Aqui conhece Eivind, que mais à frente se torna seu namorado, mas que, neste ponto da história, está numa relação, tal como a protagonista. O que se segue é elétrico, com os dois a dançar metaforicamente pelas emoções, prometendo um ao outro que não vão trair os parceiros.
No entanto, o que é mostrado no ecrã ultrapassa um pouco a intimidade, com ambos a serem seguidos por uma câmara frenética pelo salão onde se encontram, olhando nos olhos, dando as mãos, conversando sobre a vida que têm. A poesia visual destes minutos é inexplicável, tal é a maneira como os nossos olhos não se conseguem desligar destes dois. Possivelmente, nem existem palavras que façam jus ao quão mágico este momento é. Até porque, lá está, muitos de nós poderemos – ou não – ter passado por momentos semelhantes.
No seguimento disto, mais à frente no filme, Julie discute com Aksel e, se o momento acima discutido foi mágico, o que dizer do que acontece a seguir. Com o tempo congelado à sua volta, Julie corre pela cidade inteira em busca de um beijo de Eivind. Cenas como estas são o que fazem com que cinema seja tão mágico, pela sua novidade, surpresa ou por ser a exemplificação perfeita do que é estarmos apaixonados por alguém.
São momentos como este que fazem de The Worst Person in The World um filme tão sofisticado. Com a ajuda de Eskil Vogt na escrita do guião, Joachim Trier não deixa de dizer as coisas como são no novo projeto. As dores de crescimento vão estar sempre presentes na vida, até nos nossos momentos mais altos, portanto porque não aprender a viver com elas?
A pergunta é deixada no ar lá mais para o fim, já depois de a longa-metragem mudar de tom drasticamente para algo pesado e negro, tal e qual o nosso futuro. Julie é o retrato dos perdidos, daqueles sem rumo, dos bem sucedidos que passaram por muito até chegar onde chegaram, daqueles que desistiram dos seus sonhos inalcançáveis. A incerteza é a única certeza, com o medo da solidão sempre presente que nem uma nuvem negra a sobrevoar-nos diariamente.
Através da fantástica interpretação de Renate Reinsve, The Worst Person in The World aconselha-nos, fazendo com que todos os pontos finais dos vários capítulos das nossas vidas sejam considerados mais como novos começos, como uma maneira para nos reinventarmos. Os triunfos são muitos, as desilusões também. No entanto, muita da nossa personalidade e grande parte das nossas maiores qualidades são formadas à volta disso. Das constantes tristezas nos momentos mais inesperados que dão azo a grandes sessões de choro, das más decisões que parecem inofensivas, mas que se vieram a revelar desastrosas. Afinal de contas, toda a gente é a pior pessoa do mundo no seu próprio mundo.