Chernobyl devia tornar-se num caso de estudo sobre como preparar filmes e séries baseados em factos reais, mas que mesmo assim nos querem surpreender. Desde que o acidente nuclear aconteceu a 26 de abril de 1986, a história de Chernobil já foi contada e recontada várias vezes sob as mais variadas formas de media. Apesar de tudo o que lemos sobre o que aconteceu na vida real, Craig Mazin, criador e argumentista da minissérie produzida em conjunto pela HBO e pela Sky, arranjou maneira de nos surpreender, de ficarmos colados ao ecrã e de ficarmos a interrogar sobre o destino de algumas personagens.
O argumento está de tal forma bem construído ao ponto de cada personagem, até as secundárias e os figurinos, ter a sua oportunidade de criar impacto. Todas as cenas e todos os diálogos são mais uma peça imprescindível para que no último episódio, quando tudo é colocado em perspetiva, consigamos compreender todo o impacto do desastre. O resultado é devastador e as informações que nos são dadas à medida que os créditos rolam são, na maioria, desanimadoras.
Sem demoras, Chernobyl começa logo com o momento da explosão do núcleo do reator 4. A partir daqui, o objetivo de Mazin é mostrar como é que a teimosia interminável de oficiais da União Soviética e de pessoas com poder na fábrica de Chernobil custou a vida de pessoas e traçou o destino de muitas outras (os créditos finais da série dizem que a marca dos 37 mortos não se altera desde 1987, seja isto verdade ou não).

No meio do caos nuclear e humano que se verifica após a explosão, a personagem de Valery Legasov é como uma espécie de bússola moral que nos guia através de um caminho de más decisões e estupidez humana. O diretor-adjunto do Instituto Kurchatov, que liderou a investigação ao desastre nuclear, é interpretado pelo britânico Jared Harris, que tem uma das melhores prestações da sua carreira e a quem, com toda a justiça, são atribuídas hipóteses de ser nomeado para um Emmy. E para perceber o quão merecida seria esta distinção, basta ter atenção ao último episódio, quando Legasov explica perante o tribunal a forma como se sucedeu a explosão do reator 4. O químico sabia que estaria a incorrer em perigo ao fazer tal coisa, pois teria que apontar dedos a responsáveis situados em cima da cadeia do poder. Harris consegue transmitir-nos bem essa sensação de querer fazer o que está certo, sabendo que isso pode custar a nossa vida.
A performance do sueco Stellan Skarsgård na pele de Boris Shcherbina, vice-presidente do Conselho de Ministros da União Soviética, é constituída por duas fases cuja fronteira é um olhar. Olhar esse que Shcherbina dá a Legasov no segundo episódio quando este lhe diz que os dois têm cinco anos de vida por estarem expostos aos altos níveis de radiação. Nesse momento, Shcherbina deixa de ser mais uma marioneta do governo soviético para passar a estar realmente interessado em descobrir a verdade, pois sabe que as consequências também o podem atingir. Costuma-se dizer que os olhos dizem muito sobre as intenções de uma pessoa, e Skarsgård foi o espelho dessa afirmação.

Das categorias técnicas, o maior destaque vai para Jakob Ihre, diretor de fotografia de serviço cujo trabalho assentou em conferir um ambiente sombrio a algo que já era sombrio por si só. A sua missão atinge o ponto mais alto no final do quarto episódio, quando Shcherbina, Legasov e Ulana Khomyuk (interpretada por Emily Watson, é a única personagem principal fictícia) falam sobre a razão da explosão e se devem dizer a verdade em público. É uma delícia ver a forma como Ihre ilumina e filma uma das cenas mais cruciais para o enredo de Chernobyl.
Em 2017, Mazin avisou que a sua nova criação ia enfurecer-nos. Missão cumprida: Chernobyl enfurece-nos e deixa-nos a perguntar como é que existem pessoas capazes de tanta desconsideração pelas vida de outros seres humanos, cujas vidas não passam de números. É também por isto que esta é uma série difícil de se ver, porque cada episódio atinge a nossa psique das mais variadas maneiras, às vezes ao mesmo tempo.
Chernobyl vai ficar para a história não só como a melhor série de 2019, mas também como uma das melhores de sempre (é, atualmente, a série melhor classificada no IMDb). Sim, série, porque o “mini” não passa simplesmente de uma etiqueta. São cinco episódios que nos deixam a chorar por mais televisão desta qualidade, mas que também nos dizem que às vezes vale mais a pena fazer pouco e bom do que esticar e tornar mau aquilo que já vimos com melhores olhos.