Sete anos depois do thriller A Criada, o aclamado realizador coreano Park Chan-wook regressa às salas de cinema com o romance Decisão de Partir, que chega aos cinemas nacionais já depois de ter feito ondas na sua exibição original no Festival de Cannes, onde arrecadou o prémio para Melhor Realizador.
Com uma obra que inclui clássicos modernos como Oldboy e Vingança Planeada, Chan-wook é um dos realizadores coreanos mais aclamados nos dias de hoje. As suas longas-metragens carregam uma cinematografia deslumbrante e temas pesados, que são incorporados para desenvolver os sentimentos complexos dos seus heróis, ou mais concretamente, anti-heróis. As histórias que o cineasta conta através da câmara têm sempre elementos que as tornam únicas, dando palco para a manifestação de vários dilemas éticos.
Decisão de Partir separa-se dessa tendência com uma história mais familiar. Na sua décima primeira longa-metragem, Chan-wook introduz-nos a Jang Hae-jun, um detetive residente em Busan que sofre de insónias, e a quem é dado o caso da morte aparentemente acidental de um reformado numa montanha que escalava regularmente. As suspeitas recaem em cima da sua mulher, a jovem Song Seo-Rae, uma emigrante da China que não apresenta quaisquer indícios de luto face ao falecimento do marido, e Hae-jun começa a vigiá-la, o que resulta apenas em começar a sentir-se atraído à aura de mistério em volta da recém-viúva.
O elenco é formado por Tang Wei (Blackhat), Park Hae-il (Memories of Murder), Go Kyung-pyo (Strongest Deliveryman), Lee Jung-hyun (Peninsula), Jeong Ha-dam (A Criada), Park Yong-woo (Blood Rain), Jung Yi-seo (All of Us Are Dead), Seo Hyun-woo (Flower of Evil) e a comediante Kim Shin-young.
Quando se compara esta trama à da restante filmografia do realizador, impõe-se um sentimento de banalidade num formato narrativo que muitos outros filmes já adotaram. Sem querer elaborar muito sobre o desenrolar da longa-metragem, Chan-wook mostra a sua afinidade ao papel de contador de histórias nos detalhes da relação que o detetive e a viúva criam ao longo de múltiplas interrogações, introduzindo camadas que oferecem uma dimensão bem-vinda a uma narrativa que opera em simplicidades.
Do que se pode ver do trailer, o trabalho de montagem da parte de Kim Sang-bum, juntamente com uma câmara guiada por Kim Ji-yong, são um dos elementos de destaque do filme, muitas vezes elevando um material que prefere acomodar-se na sua simplicidade. Invés de usar visuais de sexo ou violência, este drama é contado através de close-ups de olhares que dizem muito. A expressão popular “uma imagem vale mais que mil palavras” é aplicada ao extremo, desde zooms bruscos que nos aproximam ou distanciam da ação até um uso bastante criativo do foco da imagem em múltiplas ocasiões, para lá de haver um jogo fervente entre planos abertos e fechados. A intimidade é um aspeto crucial no seio do drama e o filme faz um trabalho majestoso na manifestação física da força quase que gravitacional que atrai Seo-Rae e Han-jun.
Contudo, todo esse trabalho acaba por, em algumas instâncias, ser usado mais para valor estilístico do que mérito narrativo. Há muitos planos que lembrar, de forma sublime, dos impasses dos nossos dois protagonistas, mas há momentos em que o esforço visual fica dilacerado na busca de tentar ser um esplendor cinemático.
E não podemos ignorar as influências que Chan-wook retirou de filmes do género noir e da obra de um pequeno realizador americano com o nome de Alfred Hitchcock. Incorporando homenagens claras de grandes filmes como A Mulher que Viveu Duas Vezes, o filme usa essa raíz que moldou um género inteiro e abandona aos poucos a sua vertente policial para dar lugar a um romance efervescente rodeado de tragédia. É um ótimo exercício de reflexão, mas não deixa de ficar aquém com os outros trabalhos do realizador, mas que isso não retire qualquer mérito a um esforço magnífico da percepção que retemos das pessoas à nossa volta. Decisão de Partir é um manual de como executar um bom neo-noir, por mais que vacile na execução das suas temáticas.
A exploração da femme fatale é um ótimo exemplo da dualidade que o filme sofre: a aura de mistério e a sua independência deviam tornar a figura de Seo-Rae num dos melhores exemplos contemporâneos do arquétipo da personagem, mas acaba por ficar em segundo lugar com um detetive que sofre de ilusões e fantasias daqueles que o rodeiam. Ao limitar-se na simples dinâmica entre Seo-Rae e Han-jun, ficamos com uma trama que, por mais reviravoltas e surpresas apresentem ao longo das mais de duras horas de duração, acaba por sacrificar um estudo mais bem desenvolvido da dinâmica fúnebre entre os dois.
Apesar de todas estas contestações, a experiência de assistir ao filme é imaculável. O realizador coreano já se provou um mestre na construção de longas-metragens, e ele sabe exatamente como e quando é que deve elevar certas emoções e quando é que se deve acautelar. Todas as cenas sentem-se preenchidas de um propósito integral, e por mais que muito do filme não seja mais do que a evocação das mesmas questões repetidamente, é uma sensação arrebatadora testemunhar o modo como Chan-wook decide contar as suas tragédias excepcionais. Por mais que se possa levantar criticismos do filme, é inegável que estamos em mãos firmes quando falamos em levar histórias e jornadas de personagens ao grande ecrã.
O filme investe muito do seu propósito nas duas personagens principais e os atores Tang Wei e Park Hae-ilsão fenomenais a dar vida a duas personagens que se encontram num ciclo vicioso de miséria e paixão. O modo rigoroso de Hae-il encarnar a obsessão e insatisfação do detetive carrega muito do peso emocional da longa, apenas ofuscado pela performance incrível de Tang Wei enquanto uma jovem emigrante cujo mais pequeno pormenor é um segredo bem guardado. É uma grande dupla que enche a tela com precisão capaz de carregar o filme quando ele está menos investido em avançar com proezas de maior magnitude.
Aproveito para destacar que o Cinema Fernando Lopes, localizado na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias em Lisboa, em honra da estreia de Decisão de Partir, está a exibir alguns dos títulos mais aclamados da filmografia do cineasta coreano até o dia 7 de dezembro, incluindo filmes que nunca chegaram a ser exibidos em salas nacionais, tais como Vingança Planeada e Eu Sou um Ciborge, Mas Não Faz Mal. Podem consultar a programação completa aqui.
Decisão de Partir é um neo-noir de ambições pequenas mas execuções admiráveis. Pode não ser o melhor trabalho de um realizador responsável por alguns dos melhores filmes coreanos da atualidade, mas não deixa de ser um dos trabalhos mais admiráveis do ano e um grande exemplo de como contar uma história através do campo visual. Grandes atuações e espanto aguardam quem se aventurar a ver o filme, e pode ser que uma versão mais simplista de um filme do grande Park Chan-wook seja exatamente aquilo que os espectadores em massa estejam a ansiar.