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Octavia Spencer em Madam C. J. Walker
Netflix

Crítica. ‘Self Made’: O triunfo das mulheres negras

Sisters! Let’s talk about hair!

É assim que começamos a viagem ao mundo de Sarah Breedlove, mais conhecida como Madam C. J. Walker. A Netflix continua a apostar em contar a história de pessoas negras que de certa forma mudaram o mundo. A série estreou-se a 20 de março e chama-se Self Made: Inspired by the Life of Madam C. J. Walker.

Aqui vamos conhecer um ícone da cultura negra e a primeira mulher a tornar-se milionária por mérito próprio — e sim, este título tem sido contestado, mas não estamos cá para falar disso. Self-Made, com os seus erros e sucessos, leva-nos numa longa aventura e mostra-nos aquilo que Sarah Breedlove construiu: uma marca de produtos de cabelo que veio alterar o quotidiano das mulheres negras na América. Mas não ficamos por aqui. 

Na série, percebemos o porquê de Walker se ter tornado numa das mulheres negras mais influentes do seu tempo. Vemos uma mulher que é sinónimo de trabalho árduo e perseverança. Uma mulher que lutou para atingir o que queria, numa altura em que o racismo dominava as calçadas e as mulheres não tinham lugar no mundo dos negócios. Ela deu às mulheres negras a oportunidade de sonhar e ganhar controlo sobre as suas vidas: “Be a Walker Girl and change the Whole Wide World!”.

O elenco majestoso

Tal como a história contada, o elenco é grandioso. Octavia Spencer interpreta Sarah, e a verdade é que mais ninguém o poderia fazer. Se merecia melhor? Sim. Certas partes da série chegam a ser “cringe” e o argumento segue o mesmo caminho, mas Spencer, como sempre, dá a volta por cima.

Carmen Ejogo dá vida a Addie Munroe, personagem inspirada em Annie Malone, ex-amiga e rival de Madam C. J. Walker. Este é um dos pontos em que a série mais toca e talvez se torne cansativo. De referir que a performance de Ejogo é das melhores coisas que vamos ver.

Tiffany Haddish e o lendário Garret Morris voltam a dar cartas e surpreendem. Para Tiffany, este deve ter sido o papel mais sério que interpretou — e não falhou. A Morris basta agradecer, porque está de parabéns. É sem dúvida a melhor personagem masculina da série, ao lado do advogado de Sarah. 

Garret Morris como Cleophus
Garret Morris como Cleophus em Self Made: Inspired by the Life of Madam C. J. Walker. (Netflix)

Uma história que fica por contar

Deixando o elenco de lado, vamos focar-nos naquilo que realmente vemos: um mar que não é de rosas. Self Made, tal como tudo no mundo, falha em algumas coisas.

A série adaptada do livro On Her Own Ground de A’Lelia Bundles não conta tudo o que devia contar. Ou melhor, não teve tempo para o contar. Self Made é composta por quatro episódios, de cerca de 45 minutos cada. Nicole Asher e Kasi Lemmon, isto não chega. A história de Madam C. J. Walker é demasiado grande em todos os sentidos e quatro episódios não são suficientes. Se queremos contar bem esta história, entreter e inspirar, vamos fazê-lo como deve ser. E o problema de Self Made é mesmo esse: inspira e entretem, mas não vai além disso.

On Her Own Ground de A'Lelia Bundles
On Her Own Ground de A’Lelia Bundles. Livro que inspirou a série. Imagem: Amazon

Fora do ecrã ficaram momentos que moldaram a personagem principal e que foram fulcrais para ela se tornar no que foi. O espetador não tem a oportunidade de conhecer muito de Sarah Breedlove, para além do que aparece nos pequenos e estranhos flashbacks. Sim, temos uma ideia de que ela é lutadora e teve uma vida difícil, mas, mais uma vez, isso não chega.

Falta vermos a rapariga filha de ex-escravos que ficou órfã, e se casou aos 14 anos para fugir do marido abusivo da irmã. Falta falar desse mesmo casamento, durante o qual engravidou e ficou viúva, aos 20 anos. Mal a série começa, somos remetidos para a relação que tinha com o seu cabelo e passado uns minutos estamos nos últimos anos da sua vida a assistir ao crescimento do seu negócio.

A série começa a desenvolver-se e torna-se melhor perto do final do segundo episódio. Infelizmente, ao mesmo tempo em que se torna melhor, começa a parecer uma pequena telenovela. A relação tensa e de sabotagem que mantém com a sua ex-amiga, Addie Munroe, é o mote de quase todos os episódios e alia-se ao sucesso do seu negócio e traição por parte do marido. Este justifica a ação com o facto de não estar envolvido nos negócios e Sarah não lhe dar atenção. Mas há mais: a sua filha, A’Lelia, divorcia-se do marido, que por coincidência Sarah odeia, e faz uma espécie de saída do armário. Infelizmente, não conhecemos muito mais desse lado de Lelia, que tenta de tudo para não desapontar a mãe. 

Além de tudo isto, para uma série que se passa no século XX, temos uma música que ninguém esperava ouvir: ‘Harlem Shake. Pergunto-me o que se passou na cabeça da pessoa que decidiu incluir esta música na soundtrack... De todas as músicas existentes no mundo, acredito que qualquer outra seria melhor que a escolhida. As restantes, que vão de hip-pop a outros géneros, acabam por se integrar bem nas cenas, mas ‘Harlem Shake’ e Octavia Spencer é algo que nunca mais será esquecido — e não por um bom motivo.

Afinal, o que tem Self Made de bom?

No meio do que está mau, aparecem algumas coisas boas. A série consegue retratar um pouco do que era ser uma mulher negra num mundo de estereótipos brancos. Percebe-se que o cabelo de uma mulher negra só é bonito caso seja comprido e com alguns caracóis. Nada de muito espampanante. Assim podemos descrever Addie. Uma melhor negra, mas não muito, que por mais que pareça bem sofre por ser assim. Como te entendo Addie. A certa altura é criticada por parecer muito branca, mas também não lhe sai bem dizer que aquilo que as mulheres de cor querem é ser como ela. “Mulheres de cor fariam de tudo para serem como eu. Mesmo que não consigam”.  

Carmen Ejogo como Addie
Carmen Ejogo como Addieem Self Made: Inspired by the Life of Madam C. J. Walker (Netflix).

Sarah toma essa mensagem a peito e tudo o que ela quer é construir uma marca que dê a oportunidade às mulheres de serem o que querem ser. “Eu não tenho interesse em tornar uma mulher de cor numa branca. Eu quero que nos sintamos bonitas também”. E como diz sempre: “Um cabelo maravilhoso, leva-nos a oportunidades maravilhosas”. 

Ao longo da série percebemos também que Walker realmente quer ajudar a sua comunidade e não tirar o pouco dinheiro que a população negra já tem. Ela mais que ninguém entende isso. De filha de ex-escravos e lavadeira a mulher de negócios. Ela toma as suas decisões e tem sempre em consideração os seus funcionários. Exemplo disso é a greve das suas trabalhadoras no último episódio. Outro exemplo é quando invade o palco numa convenção e pede aos homens que dêem às suas mulheres a oportunidade de ser mais. Que Washington não se esqueça que elas existem e é vital que elas participem na sociedade. E isto foi uma das melhores jogadas da série, porque parecendo ou não, estas dificuldades ainda hoje existem. Não só para mulheres de cor, mas para todas as mulheres. 

Outro ponto interessante em que a série toca, também atual, é a relação que as mulheres mantêm entre si. Como já referi há uma tensa relação entre Madam e Addie. Duas mulheres de cor que não se apoiam. Todo este ambiente menos amigável começa quando Sarah quer integrar a equipa de vendas de Munroe e esta recusa. Podemos dizer que a maior parte dos problemas de Walker vêm da sua própria comunidade.

Temas atuais abordados com superficialidade

Como também já disse, Addie é apresentada como light-skinned e em Self Made isso é crucial para contar bem a história.  Apesar de sofrer um pouco com isso, Addie tem o privilégio de ser “mais branca”. Em Self-Made este assunto tem mais relevância que a brutalidade da polícia, que é referida muito poucas vezes, uma delas quando Madam quer realizar uma convenção da empresa em sua casa. O seu advogado diz-lhe que talvez não seja boa ideia, pois os vizinhos iriam chamar a polícia, que poderia trazer cães, ao ver tantos negros nas suas ruas.

E talvez a série falhe um pouco nesse aspeto, pois teria muito por onde explorar. Sabe-se que Madam sofreu de racismo, mas isso não está muito presente. A cena em que nos apercebemos realmente disso é quando uma vida é perdida à conta disso. Sweetness, primo do advogado de Madam, é morto por brancos ao tentar salvar o sobrinho de uma pequena brincadeira. Mesmo tendo poucas cenas do género, Self Made lidou muito bem com essa situação. 

A única coisa que me deixa triste em relação a esta obra prima é o facto de não ir mais longe. Não digo isto por ser uma pessoa de cor, mas sim porque seria interessante ver o passado de alguém que lutou para chegar onde chegou. Por momentos esquecemo-nos que Self Made não é assim tão má e certas cenas deixam-nos com um sorriso na cara, como a ferocidade com que Sarah lida com certas situações. Como a cena em que se recusa a aceitar o marido de volta e dá uma lição a Addie. E, finalmente, a viagem até ao Harlem com a sua filha A’Lelia, onde esta se sente em “casa” e incluída. 

Self Made é uma tentativa de contar bem uma história importante, mas não o faz tão bem como desejávamos. A série conta uma história de sucesso servida num prato bem quente. Para quem não conhece a incrível vida de Madam C. J. Walker, Self Made recomenda-se e muito. Para quem está a par da vida do ícone da cultura negra, resta apreciar o talento de Spencer e Ejogo, e esperar não ficar muito desiludido. 

Octavia Spencer em Madam C. J. Walker
7.3