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Fotografia: Mohammed Torokman, DR

Opinião. Israel-Palestina: já podemos falar dos crimes de guerra?

Ou continuamos a escudar-nos na desculpa de que “é uma situação complexa” e que não nos devemos pronunciar?

O conflito israelo-palestino já tem barbas e, de tempo a tempo, relembra-nos, a nós que vivemos no Ocidente e tendemos a esquecer-nos de todas estas pessoas após uns dias ou umas semanas, que ele existe, através de demonstrações violentas que deixam de classificar esta situação como um conflito, mas antes como um ataque premeditado, desnivelado e extremamente violador dos direitos humanos que consagramos legal e socialmente.

Para ‘nós’, sempre foi regra ignorar esta situação após certos momentos que provavam um acalmar (nunca um cessar) fogo. Afinal, não seria a primeira vez que nos dizem que “aquilo sempre foi assim” e que “nunca haverá paz na Palestina”. Junte-se, ainda, um derrotado “Há quantos anos é que isto está a acontecer?” (não sendo uma pergunta retórica, bem… desde 1947) ou um “O que aconteceu desta vez?” acompanhado de um suspiro (de quem ainda recorda 2014).

Refugiados da Palestina, em 1967 | Fotografia: Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Próximo Oriente (UNWRA)

Os últimos dias foram marcados pela troca violenta entre os dois “Estados”. Não somos rigorosos nesta apelidação, mas utilizamo-la pela panóplia de diferentes Estados na comunidade internacional que reconhecem um em função do outro, embora apenas Israel esteja próximo e seja apoiado de tal forma que consiga sustentar ser um Estado, por ter consigo aqueles que intitulamos de “países desenvolvidos” e que intitulam o Estado sionista de “única democracia do Médio Oriente”.

Troca esta que tem um aspeto bastante pertinente a considerar em toda a análise que façamos da situação: Israel tem forças armadas organizadas e apoiadas financeiramente por grandes Estados “democráticos” do Ocidente (a título de exemplo, os EUA financiaram a defesa israelita em 3,8 mil milhões de dólares, em 2019), cujas ofensivas (ou defensivas) não podem ser consideradas adequadas a uma legítima defesa.

Não é legítima defesa quando forças armadas entram por uma mesquita prontos para ação violenta contra pessoas que professam a sua fé ou defendem os seus. Não é legítima defesa quando civis são assassinados com a justificação de combate ao alegado terrorismo do Hamas, convicção fundada, aliada e influenciadora de uma vasta ideia de que o terrorismo vem sempre ligado aos árabes e ao islamismo. Se queremos falar de terrorismo no conflito israelo-palestino, temos de falar também e especialmente de um terrorismo provindo dos sionistas (desde já, a não confundir em momento algum com os judeus, como comum e erradamente tem acontecido), que com esta ideia de combate ao terrorismo sustentam a atividade ilícita que levam a cabo em Gaza.

Há anos que olhamos para Gaza e nos recusamos a acreditar que há um genocídio em curso. Ou, melhor, nos recusamos a admitir, a pronunciá-lo publicamente, nas pessoas dos nossos representantes devidamente eleitos, momento em que nos apercebemos que a nossa democracia nos falha e não vemos o Governo português (especialmente no papel do Ministério dos Negócios Estrangeiros), não vemos a União Europeia (cujos valores e objetivos incluem a proteção dos direitos humanos), não vemos o Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas a pronunciar-se pelos direitos dos palestinianos que vivem em Gaza.

O que, embora extremamente revoltante, é percetível – defender a Palestina significaria admitir o sustento, durante mais de 70 anos, de um pseudo-Estado que aproveitou uma religião e os seus crentes, debilitados por um sentimento de não-pertença durante séculos, para destruir toda uma população associada a uma outra religião que, não apenas no Médio Oriente mas especialmente no Ocidente, se encontra debilitada também por esse sentimento de não-pertença, desta vez associados ao terrorismo islâmico, que não os define.

Enfim, da mesma forma que os judeus não são equivalentes aos sionistas, os islâmicos não são equivalentes ao ISIS e possíveis companhias. Em abril, a Human Rights Watch publicou um relatório no qual classificava a atuação das autoridades de Israel perante os palestinianos como semelhantes a um apartheid – imediatamente, a organização internacional foi classificada como “anti-semita” pelos israelitas e pelos seus apoiantes.

Se sentimos que os nossos representantes nos falham, defendendo em primeiro lugar as relações políticas com um Estado criado no final da II Guerra Mundial que se esqueceu das suas origens enquanto ataca sistematicamente um povo que já lá estava, sobram-nos os media e o trabalho que estes desempenham nestes cenários, não deixando que a tragédia sobre os palestinianos se perca nesta diplomacia podre que o povo condena.

Durante a semana que agora fechamos, foram vários os que lamentaram nas redes sociais o que tem acontecido em Gaza, alguns condenando Israel, outros condenando a Palestina ou, concretamente, o Hamas. Mas a verdade é que algumas das publicações mais impactantes, vindas de jornalistas e meros observadores, foram também aquelas que relatavam que o Facebook ou o Instagram haviam removido alguma publicação que mostrasse qualquer tipo de condenação à atuação por parte dos sionistas. Uma publicação da jornalista Manuela Moura Guedes no Facebook é exemplo. Curiosamente, Adam Mosseri, americano-israelita que está à frente do Instagram e funcionário de longa data do Facebook, questionado sobre o porquê de várias publicações sobre a Palestina terem sido removidas da rede social, disse ter existido um “bug” que eliminou variadíssimas publicações, independentemente do conteúdo.

Este sábado (15 de maio) recebemos, ironicamente, a notícia de que a guerra está aberta também com as empresas que trazem as novidades do conflito em Gaza ao resto do mundo. As Forças de Defesa de Israel, bastante ativas no Twitter, dizem: “Depois de avisar antecipadamente os civis e de lhes darmos tempo para evacuar, fighter jets das Forças de Defesa de Israel atingiram um prédio de vários andares que continua recursos de inteligência militar do Hamas. O edifício continha escritórios dos media, em que o Hamas se esconde e usa deliberadamente [os civis] como escudos humanos.

Escritórios onde trabalhavam correspondentes de empresas como a Associated Press foram totalmente demolidos sem haver sequer a oportunidade de recuperar os seus materiais. Gary Pruitt, diretor da Associated Press, é claro: “Eles sabem há muito tempo da localização dos nossos escritórios e sabiam que os jornalistas estavam lá. Recebemos um aviso que o edifício seria atingido. (…) O mundo saberá menos sobre o que se está a passar em Gaza por causa do que aconteceu hoje.

De acordo com um vídeo que circula nas redes sociais, o proprietário da torre al-Jalaa pediu dez minutos para que os materiais dos jornalistas fossem retirados, mas a convicção dos superiores do exército israelita de que esses dez minutos poderiam fomentar qualquer ação por parte do Hamas, que tanto queriam combater com esta demolição, foi mais forte.

O Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional é claro quando define os crimes de genocídio, contra a Humanidade, de guerra e ainda de agressão, nos seus artigos 5.º a 8.º. Citar todas as alíneas em que a atuação das Forças de Defesa de Israel caberiam neste momento um abuso da nossa parte para com os leitores, mas não podemos deixar de recomendar a leitura destes Estatutos e de outros documentos legais internacionais, como é o caso da Convenção para a Prevenção e Repressão do Genocídio, ou qualquer diploma em que os direitos humanos tenham sido discutidos na comunidade internacional, não sendo poucos – embora cumpri-los pareça ser tão fácil de ignorar.

Se estamos empenhados em reconhecer Israel como um Estado legítimo, independentemente do seu território (consideramos o território inicialmente consignado ou o território que, violentamente, conquistou aos palestinianos ao longo dos anos?), devemos estar empenhados em condenar este Estado pelo constante desrespeito pelas normas vigentes na comunidade internacional e pela constante violação dos direitos humanos que estes momentos evidenciam.

Urging EU to act: Israeli Human Rights violations in Palestine