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Akelarre
Foto: Netflix

Crítica. ‘Akelarre: O Ritual da Irmandade’ é uma homenagem péssima ao País Basco

O filme de Pablo Agüero é uma das mais recentes adições ao catálogo da Netflix

Akelarre: O Ritual da Irmandade é o mais recente filme do realizador e argumentista argentino Pablo Agüero, assim como uma das novas aquisições cinematográficas da NetflixAkelarre é um remake do filme homónimo de 1984, levado por Pedro Olea, ao Festival de Berlim, ambos trabalhos financiados pelo governo do País Basco.

Este novo Akelarre, que significa “Sábado das Bruxas“, ou “Sabbat“, em euskera, língua basca, passa-se em 1609, depois da chegada dos europeus à América do Norte, e conta a história de um grupo de raparigas que são acusadas de praticar bruxaria e de compactuar com Lúcifer, figura que no cristianismo ficou associada a Satanás, enfrentando, assim, a Inquisição Espanhola. O filme foi disponibilizado na Netflix a 11 de março, três dias depois do Dia Internacional da Mulher, pois toca em pontos fulcrais numa era pós-MeToo, ou seja, o demonizar as mulheres e usá-las como bodes expiatórios, numa purga levada avante pela Igreja Católica, cujas bases assentam no machismo e no patriarcado.

O filme apresenta-nos as jovens Ana (Amaia Aberasturi), Katalin (Garazi Urkola), María (Yune Nogueiras), Maider (Jone Laspiur), Olaia (Irati Saez de Urabain) e Oneka (Lorea Ibarra), as mãos de ferro do juiz da Inquisição Rostegui (Alex Brendemühl) e do seu conselheiro (Daniel Fanego) e cobarde Padre Cristóbal (Asier Oruesagasti). Num duelo de retórica, as jovens vão ter de escapar as masmorras nas quais estão encarceradas, se bem que a sua sentença parece estar determinada desde o momento em que foram capturadas pelos homens da Inquisição.

Grande parte da trama é baseada nos escritos de Pierre de Lancre, um jurista na corte do rei Henrique IV de França, após uma visita ao País Basco, no ano de 1609. Em entrevista à rtve, o realizador Pablo Agüero explicou que o filme “é fruto de uma longa investigação. Partindo do livro de Pierre de Rosteguy de Lancre (autor inquisidor francês em 1609 do Tratado de Feitiçaria Basca: Descrição da Inconstância de Anjos Maus e Demônios ), que retratava a bruxa como uma mulher revolucionária“, começando, assim, “a chegar à singular História do povo basco (…) que resistiu” à Inquisição.

Uma história importante, mas sem coração

Embora o argumentista tenha feito uma pesquisa extensa antes de produzir o filme, o tom da história está completamente perdido. O argumentista preocupou-se mais com a moral do que com o filme em si e esqueceu-se de outros elementos muito importantes, como, por exemplo, desenvolver as personagens. Os únicos momentos em que temos um contacto íntimo com o grupo de Ana são em flashbacks, ou em brincadeiras com feno nas masmorras do convento onde as raparigas foram aprisionadas. Parece que o realizador nos está a dizer “estão a ver como elas não são bruxas nenhumas e são só raparigas normais?”. Isso parece ficar claro desde o início, tornando esta perceção das raparigas, por parte do argumentista, tão machista quanto o olhar da Inquisição, o que não deixa de ser estranho numa história de emancipação.

Por que é que o espectador se deve preocupar se Ana e as suas amigas vivem ou morrem? Bem, se tiver dois dedos de testa, percebe que estamos perante um julgamento injusto, em que as jovens raparigas estão a ser julgadas por serem mulheres. No entanto, tem de haver mais do que consciência histórica, num drama que pretende retratar uma época.

É este o grande problema de Akelarre, porque, embora conte uma história importante sobre um período histórico em que as mulheres eram julgadas só por existirem, o filme não tem coração, pois não há nada que puxe o interesse do espectador. É suposto chegarmos à conclusão de que a Inquisição Espanhola era um órgão tirano e autoritário e que as raparigas não eram bruxas? Isso é óbvio.

Pablo Agüero entretém-se a constatar o óbvio, tornando este filme uma homenagem péssima ao País Basco. Quando o realizador diz que o povo basco resistiu à Inquisição, porque é que não decidiu mostrar isso neste filme? Onde está a história de emancipação das mulheres e dos pescadores, que tantas vezes são referidos ao longo do filme, do País Basco? Não há nada disso, o que torna Akelarre numa perda de tempo e numa vergonha de filme, que é salvo apenas pelas boas interpretações do elenco.

Ainda no plano do argumento, ao longo do filme, o argumentista emprega vários elementos de terror e thriller, o que é perfeitamente legítimo, mesmo num drama histórico, assim como há alguns rasgos de comédia, que acabam por ser bem conseguidos. No entanto, estes elementos que pretendem “arrepiar” ou “assustar” o espectador são risórios e ridículos. A ambição de Pablo Agüero em construir um filme complexo, que incorpora vários géneros e que conta uma história profunda, é tão grande que o argumentista e realizador não tem mãos para tanta coisa.

Do mesmo modo, enquanto realizador, Agüero ainda é um amador. A cena em que os guardas da Inquisição perseguem as raparigas para as prender é um ótimo exemplo da sua incapacidade. Agüero estava completamente perdido quanto ao posicionamento das câmaras e quanto à forma como a cena de “ação” deveria ser gravada. Existem realizadores capazes de esconder a chamada “magia do cinema”, mas Agüero é um mágico terrível, pois conseguimos perceber como é que os duplos simulam as quedas, não existe adrenalina nesta cena de perseguição, os atores estão constrangidos a correrem uns atrás dos outros. Enfim, o realizador faz tudo o que não devia fazer.

Chegar ao fim de Akelarre é perceber que este filme tinha imenso potencial, pois tem bons atores e uma história com uma moral e mensagem importantes, mas Pablo Agüero comete uma das maiores atrocidades cinematográficas do ano de 2020 e deita tudo a perder.

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