A secção Doc de Terror brilhou, inesperadamente, no terceiro dia do MotelX, com a poderosa peça Horror Noire: A History of Black Horror (2019). O documentário oferece uma coletânea dos vários tipos de representação afro-americana no cinema de terror, ao longo dos anos, em formato de diálogo. Desde Jordan Peele, a Ken Foree ou Richard Lawson, os testemunhos abarcam diversos pontos de vista, unidos no debate de um tema comum: o racismo estrutural norte-americano.
É estranho pensar como o preconceito chega a estar enraizado em nichos tão ínfimos como o cinema de terror, meio de predominância masculina e branca. Todos conhecem a piada do negro ser o primeiro a morrer neste tipo de filmes, mas, do ponto de vista caucasiano, há pouca reflexão sobre o assunto.
De facto, existe uma agenda por trás das pequenas coisas, muitas vezes desvalorizada. Apenas alguém que se depara, de forma sucessiva, com representações inexistentes ou estereotipadas dos seus semelhantes consegue entender as verdadeiras repercussões de tais mentalidades.
Os verdadeiros horrores do cinema
A longa-metragem mostra o cinema como espelho do pensamento associado à época, possuindo uma inerente função política. Assim, o debate tem início nos primórdios do terror no grande ecrã (literalmente), quando práticas humilhantes como blackface eram consideradas aceitáveis.
Até à década de 50, a maioria da representação negra no terror partia da imagem que as fações privilegiadas tinham destas comunidades. Como tal, existiam sempre determinados papéis associados ao afro-americano, como o feiticeiro de voodoo ou o fiel escravo. Personagens monótonas, destinadas apenas a cumprir um propósito: ameaçar o homem branco ou servi-lo.
As décadas seguintes eliminaram por completo qualquer tipo de representatividade, por mais nociva que fosse. Chegamos ao despertar da ficção científica, sem espaço para um físico negro em laboratório. De repente, os anos 70 viram por completo a balança, com a época do blaxploitation. Por um lado, a diversidade é abundante, mas não da melhor maneira. Filmes revolucionários como Blackula (1972) contrastam com a popularizada figura do ‘chulo’ ou do negro obcecado com a mulher branca.
Questionar o inquestionável
Depois dos anos 80, baseados no afro-americano como “dano colateral”, surge a época mais diversa no terror cinematográfico. O começo do novo século traz o hip-hop ao género, abordando medos reais, como a desigualdade e a violência doméstica. As mulheres ganham destaque e há urgência em expor os estereótipos do passado, contrariando-os.
Tudo culmina em Get Out (2017), talvez a obra mais transformadora do terror como o conhecemos. A criação de Peele reivindica um verdadeiro pedestal na área em que se insere, abrindo caminho a projetos de calibre semelhante. O documentário termina numa nota muito positiva ao realçar o quanto o cinema evoluiu desde os seus primeiros passos.
No entanto, é impossível fechar os olhos há grande batalha ainda a ser travada, não só pela diversidade no terror cinematográfico, mas também pela inclusão em cenários quotidianos. São necessárias mais produções como esta – verdadeiros “abre olhos” que questionam o compasso moral de ocorrências comuns, vistas quase como dado adquirido.
Horror Noire educa de maneira apelativa e afirma-se como um dos melhores documentários do ano. A adição da obra ao alinhamento do MotelX revitaliza por completo o festival, que, mais uma vez, não falha em surpreender.