Everything Everywhere All At Once é o novo filme de Daniel Kwan e Daniel Scheinert, conhecidos no mundo do cinema independente como Daniels. Este projeto é a segunda colaboração entre os dois amigos de longa data, depois de terem trazido Swiss Army Man ao mundo.
Desde o nascimento do cinema pelas mãos dos irmãos Lumiére há mais de uma centena de anos que a Sétima Arte vem recebendo projetos que acabam por marcar gerações, quer seja pela mensagem ou pela inovação técnica. No entanto, com o passar dos anos, é natural que este tipo de projeto seja cada vez mais raro.
É aqui que entram os Daniels, que depois de terem realizado Swiss Army Man, um filme onde Daniel Radcliffe é um cadáver com demasiados gases, se separaram por breves momentos. Depois, claro, chegou o anúncio de Everything Everywhere All At Once, com Michelle Yeoh, uma atriz com talento para dar e vender, no papel principal, substituindo o lendário Jackie Chan.
Os Daniels nunca foram conhecidos por trazerem histórias normais. Afinal de contas, Swiss Army Man é o que é e The Death of Dick Long, a aventura a solo de Daniel Scheinert, também não se caracteriza pela naturalidade. Dá que pensar no que poderia ter sido a versão de Loki realizada por eles, uma série que acabaram por recusar. Claro que a história de Everything Everywhere All At Once nunca poderia ser algo assim. Portanto, numa altura em que multiversos andam a ser o brinquedo favorito dos senhores produtores de blockbusters, estes dois pegam nesse conceito e fazem uma história à volta de Evelyn Wang, dona de uma lavandaria que se encontra debaixo de olho das Finanças.
Enquanto a maioria dos filmes que têm usado este conceito acabam por nunca o aproveitar realmente a não ser para fazer dinheiro fácil, este não tem essa vantagem. Não há estrelas antigas prontas a sair de portais para aplausos fáceis nos cinemas, nem estrelas prontas a salvar o dia. No final de contas, isso nem sequer seria possível. Everything Everywhere All At Once nunca foi feito para ser um blockbuster, apesar de parecer um.
A história é um quase impossível de explicar por palavras. O plot é exuberante, maior que a vida às vezes, e desafia todas as leis daquilo que o cinema podia ser. A probabilidade e lógica é inexistente, tal como a coerência, mas tudo isto acaba por funcionar como há muito não se via.

A longa-metragem tem as suas cenas de ação, capazes de meter inveja a realizadores que o fizeram a vida toda, como grande parte de um projeto que quer divertir. Contudo, no fundo, existe uma história sobre trauma intergeracional, as dificuldades numa relação entre mãe e filha e a incapacidade de conseguir manter um casamento sobre enorme pressão. Tudo isto acontece enquanto vamos passado por uma viagem alucinante entre as várias vidas que Evelyn viveu e nem sabe.
Tudo isto parece muito complicado, mas os Daniels, donos e senhores de um talento que até agora não era assim tão conhecido, conjugam tudo na perfeição, numa tarefa quase impossível. Michelle Yeoh é o pilar desta história, entregando tudo de si num papel lapidado à própria imagem. A Evelyn de Yeoh é uma empresária que, enquanto jovem, saiu de casa dos pais situada algures na China e passou a viver num pequeno universo de frustração por todos os sonhos que não conseguiu atingir.
Como se isso não bastasse, o marido da protagonista, Waymond, interpretado por um genial Ke Huy Quan, está a tentar divorciar-se dela e a filha Joy está a passar por uma fase onde autoestima não existe no seu vocabulário, enquanto tenta que a sua sexualidade seja aceite pela família. Camadas de emoção não faltam em Everything Everywhere All At Once, uma história gigante feita à base do mundo mundano de uma pessoa normal.

A forma como os Daniels vão saltando de cliché em cliché, moldando-os à sua maneira, é digna de registo, tal como a maneira como vão metendo Evelyn a saltar de universo em universo, de filme de culto em filme de culto. Sim, leram bem. Pelo meio, há menções visuais e literais a Ratatouille, vários clássicos de Wong Kar Wai,Paprika, 2001: Odisseia no Espaço, entre muitos outros. Até há espaço para imagens reais de Michelle Yeoh na passadeira vermelha, aquando da estreia de Crazy Rich Asians. Quando não estão num mundo à base de produções de outras pessoas, estão em universos onde são apenas pedras, ou então os dedos das mãos foram substituídos por salsichas.
Todas as decisões que Evelyn tomou levaram a que novas versões de si mesma fossem criadas. Em algumas é bem sucedida, noutras é apenas uma pinhata. No fim de tudo, essas mesmas decisões são responsabilidade apenas dela e a maneira como as suas ações afetam os outros também. Por essas e por outras é que a sua filha age como age e o marido não pode mais com a sua presença.
Joy acaba por caraterizar uma geração inteira. Numa das melhores atuações do ano, Stephanie Hsu carrega todo o peso dos falhanços da mãe, que acabaram por ser projetados para cima dela, fazendo com que ela própria acabe por criar várias versões de si própria no multiverso, bem como um buraco negro pronto a sugar todos os traumas existentes.

No fim de tudo, os Daniels dizem, alto e bom som, que não há nada que não possa ser resolvido com compaixão e um bocado de amor, tal como nenhum filme consegue ser verdadeiramente mau se a dose certeza de amor pela história for embutida no projeto. Talvez possam achar este trabalho um bocado demasiado. É normal que se sintam assim, afinal de contas, há momentos ali que não são para qualquer um. Há momentos que não se veem todos os dias.
Everything Everywhere All At Once acaba por fazer jus ao seu nome. Parece que nos atira as coisas para cima todas ao mesmo tempo, sempre com a dose certa de loucura, acabando sem qualquer ponta solta por resolver e dando autorização aos espectadores para respirar, finalmente. Podíamos estar aqui o dia todo a elogiar este projeto e mesmo assim não seria suficiente. A história é tão boa que até nas falhas acaba por funcionar, acabando por ser um daqueles filmes que aparece uma vez a cada 20 anos. Cinema como este devia ser celebrado, todos os dias, a toda a hora, em todo o lado.