As personagens femininas são, muitas vezes, narradas nas entrelinhas daquelas que são consideradas as melhores obras da literatura mundial. Mas, mesmo antes da era Gutenberg, a lírica feminina já ecoava pelos cantos do mundo. Na Grécia Antiga, Safo de Lesbos cantava as suas musas através da poesia lírica – conhecemos hoje os fragmentos das suas obras, mas a única que permanece intocada é Ode a Afrodite. O livro mais antigo escrito por uma mulher foi publicado em 1395: Revelações do Amor Divino, de Juliana de Norwish e era uma compilação de inspirações cristãs.
Os tempos medievais lá se foram e a mulher foi ganhando cada vez mais espaço na sociedade sendo, aos poucos, reconhecida pelos seus talentos e valorizada pela extensão das suas obras. De Jane Austen, Irmãs Brontë e Mary Shelley a bell hooks, Simone de Beuvoir e Alice Walker, a literatura feminina e feminista tem conquistado o seu devido lugar de destaque ao lado de demais obras da literatura mundial, e abrindo caminho a cada vez mais jovens autoras a empoderarem-se e usarem a sua voz para reconfigurar as narrativas que mostram a mulher no primeiro plano, seja na perspectiva de reconhecer privilégios, de fazer conhecer experiências de vida diferentes das da maioria e mostrar que a mulher pode ser o que ela quiser.
Porque a educação é a maior arma de emancipação, o Espalha-Factos destaca cinco autoras contemporâneas com obras de ficção marcantes que todas e todos devemos espreitar.
Sally Rooney
O nome de Sally Rooney disparou no ano passado por conta da adaptação do seu romance Normal People para série, que estreou na HBO em abril. No livro, publicado em 2018 – editado em Portugal com o título Pessoas Normais (Relógio D’Água, 2020) e recomendado pelo Plano Nacional de Leitura -, Rooney conta a história de Marianne e Connell, um casal cuja amizade continua e só se fortalece apesar de encontros, desencontros e falta de comunicação. Apesar do romance que ocupa longas páginas da trama, Normal People está pululado com discussões acesas sobre política, chamando atenção para a importância da consciência de classe e de privilégio.
A autora irlandesa, auto-proclamada marxista, dá voz às personagens millenials que refletem sobre a sua condição financeira, os papéis atribuídos à mulher e ao homem e como a sociedade patriarcal molda as relações e amizades que estabelecemos ao longo da vida. No seu primeiro romance, Conversations With Friends, a personagem principal, Frances, debate consigo própria a moralidade de estar numa relação com um homem casado, ao mesmo tempo que enfrenta várias realidades: problemas financeiros num meio em que todos os que a rodeiam são ricos, endometriose (que se manifesta através de dores em mulheres que menstruam e que pode causar infertilidade), dúvidas sobre espiritualidade e religião.
As personagens de Sally Rooney, mesmo nos seus contos, são pluridimensionais – não há vilões ou antagonistas. São pessoas verdadeiras, com defeitos e qualidades que trilham caminhos apesar dos percalços que aparecem pelo caminho. Crescemos ao lado delas e aprendemos a navegar a rota da vida adulta, com tudo o que isso envolve.
Leitura obrigatória: Conversations With Friends
Chimamanda Ngozi Adichie
A sua obra mais famosa talvez seja Todos Devemos Ser Feministas, uma TEDTalk que acabou por ser publicada em formato literário em 2014. Para além deste ensaio, a autora já assinou três romances, A Cor do Hibisco, Meio Sol Amarelo e Americanah, a coleção de contos A Coisa à Volta do teu Pescoço, a não ficção Querida Ijeawele (todos editados em Portugal pela Dom Quixote/LEYA) e vários contos espalhados por publicações como o New Yorker ou The New York Times.
Chimamanda nasceu na cidade universitária Nsukka, na Nigéria, região que é o pano de fundo de várias das suas histórias. Aos 19 anos, emigrou para os Estados Unidos para continuar os estudos na área da comunicação e da escrita criativa. Foi na “terra da liberdade” que a autora se confrontou, pela primeira vez, com o que significava ser negra. A consciência da sua etnia e da perda do privilégio que tinha na sua cidade natal enquanto filha de académicos são temas transversais às suas obras – em Americanah, um casal vê-se separado pela ditadura militar, que os força a emigrar para os EUA e para o Reino Unido, onde enfrentam preconceitos e são rotulados pela cor da sua pele e pelo seu sotaque.
Os livros de Chimamanda Ngozi Adichie (que é referenciada como uma das grandes inspirações femininas na canção ‘Madrepérola‘, de Capicua) têm uma componente histórica irregovável. Meio Sol Amarelo passa-se durante a guerra civil nigeriana; A Cor do Hibisco tem como pano de fundo Nigéria pós-colonial, afundada em instabilidade económica e social. Cada conto de A Coisa à Volta do teu Pescoço ecoa o passado colonial, os estereótipos de género e o quão diferem entre a Nigéria e países Ocidentais, alertando através de relatos crus e calorosos que alertam para as grandes desigualdades que continuam a ser repercutidas mundo fora.
Leitura obrigatória: Americanah
Dulce Maria Cardoso
A autora portuguesa de Trás-os-Montes estreou-se na literatura com Campos de Sangue, um livro que viria a sintonizar o estilo das próximas obras. Uma escrita fluida, apaixonante e até desesperante, Dulce Maria Cardoso é uma das vozes portuguesas mais celebradas no panorama nacional, e não é difícil perceber porquê. A crueza e a beleza do quotidiano é detalhada ao longo dos entrechos tempestivos que cada um dos seus livros faz brotar.
Em Os Meus Sentimentos, relata numa prosa pesada a vida de Violeta, uma mulher que, no momento de um acidente de carro, ultrapassa espaço e tempo – reflete sobre o passado com amargura, relatando a dor acumulada de uma mulher que nunca se aceitou no corpo e o espaço que habita. Em Eliete, seguimos a protagonista que, após um diagnóstico cruel à avó que tanto ama, sente-se entorpecida, encontra nas redes sociais um conforto que, no final das contas, se revela superficial.
Dulce Maria Cardoso explora o trauma nas suas obras, um transformo que assombra as mais variadas personagens e se conecta a elas de forma camaleónica, mostrando versatilidade, mestria e, acima de tudo, honestidade perante a maneira que percecionamos o corpo, a dor, a História e a família.
Leitura obrigatória – Os Meus Sentimentos
Ouve também: Contadoras de história: a resistência feminina no pequeno e no grande ecrã
Cho Nam-joo
Cho Nam-joo tem, até à data, apenas um livro publicado. Chama-se Kim Ji-young, Born 1982, e conta a história da mulher que dá nome à obra: uma mulher normal, submissa a uma rotina trivial e caseira. Isto mantém-se até ao dia em que Kim Ji-young começa a tomar a personalidade dos que a rodeiam e, ao ser considerada mal-educada pelos sogros, acaba por começar a frequentar um psiquiatra.
Os relatos e documentos emitidos pelo médico aparecem como anexos ao longo do livro, e é através dele que vemos micro e macro-agressões que a mulher enfrentou ao longo da vida – na escola, os rapazes comiam primeiro, ela era alvo de assédio; já em adulta, o pay gap é uma realidade, e o julgamento e mal-dizeres por escolher a via da maternidade ao invés do seu trabalho perseguem-na. Kim Ji-young, Born in 1982 é o espelho de uma Coreia do Sul dominada pelo patriarcado – à data da sua publicação, no auge do #MeTooMovement, os seus leitores foram alvos de críticas por parte de uma camada da população. Cho Nam-joo denuncia as feridas de uma sociedade dominada pelo machismo, onde outrora ter uma filha era sinónimo de vergonha e onde, ainda hoje, temas como o feminismo e a igualdade de género são tabu, temas abordados em pezinhos de lã.
O livro foi adaptado para cinema em 2019 – o filme homónimo é inspirado, porém não totalmente, na obra literária e recolheu várias nomeações em festivais internacionais, como o Blue Dragon Film Award.
Anna Burns
Anna Burns é uma autora irlandesa da Irlanda do Norte, algo que não passa despercebido nas suas obras. Com um cunho político, os seus três romances representam, direta ou metaforicamente, a época The Troubles que aterrorizou a nação natal dos anos 1960 aos anos 1990, marcada por conflitos nacionalistas e sectarismo étnico e religioso.
O seu primeiro livro No Bones é uma comédia negra sobre, precisamente, essa era negra da Irlanda do Norte que fará mesmo o leitor mais apático contorcer-se. Em Milkman, a sua mais recente distopia que venceu o Man Booker Prize em 2018 (editado em Portugal pela Porto Editora e recomendado pelo Plano Nacional de Leitura), ninguém tem nome ou características diferenciadoras e qualquer pessoa que sobressaia e quebre com o status quo é imediatamente segregado e perseguido por paramilitares.
As obras de Anna Burns são imbuídas de comédia espirituosa e passagens nauseantes e são importantíssimas para sensibilizar leitores de todo o mundo para os horrores que foram levados a cabo e as cicatrizes que estes deixaram na geração que nasceu e cresceu neste cenário