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It's a Sin
Fotografia: Channel 4/Divulgação

‘It’s a Sin’. A História que nunca podemos esquecer

A bolha do mundo em que hoje vivemos quase não parece a mesma de há 20, 30 anos. São inegáveis as conquistas conseguidas, neste espaço de tempo, por aqueles que foram relegados para segundo (ou décimo) plano. Mas reduzir estas vitórias à insignificância de dados adquiridos é uma ofensa às lutas contínuas de quem continua na sombra de um sol que deveria aquecer todos de igual forma.

It’s a Sin, a nova minissérie de Russell T. Davies para o britânico Channel 4 e disponível na HBO Portugal, começa precisamente num dos períodos de maior mudança na História LGBTQ+, mesmo que na altura ainda não se percebesse realmente o que estava prestes a acontecer. A sombra do VIH/Sida foi uma mudança que fez cair esta comunidade num poço que parecia sem fundo, queda promovida pelo privilégio e esquecimento dos que sempre se acharam um degrau acima daqueles que lhes são iguais.

O doce sabor da liberdade, no entanto, é o que cativa e faz sorrir desde o primeiro momento. O Parlamento britânico descriminalizava a homossexualidade em 1967 – 15 anos antes de o mesmo acontecer em Portugal, apenas em 1982. A geração dos 80s foi a primeira no Reino Unido a poder ceder à natureza humana e amar quem quisesse sem que isso fosse considerado um crime. Desde que não fosse à frente de todos, claro.

Para Ritchie (Olly Alexander), a saída de casa, de uma recatada zona na Ilha de Wight, para a fervorosa Londres das últimas décadas do século passado foi o passo para viver a sua verdade; ainda que contida, forçada pela sua educação e pelo reprimir de emoções que era quase obrigatório para um jovem homossexual. Para Roscoe (Omari Douglas), que se liberta da sua família nigeriana conservadora, e Colin (Callum Scott Howells), um envergonhado jovem de Gales, a possibilidade de finalmente viver e experimentar tudo o que nunca puderam tem o mesmo efeito.

It's a Sin
Fotografia: Channel 4/Divulgação

É com alegria e emoção que, ao lado de Jill (Lydia West), a melhor amiga de Ritchie, formam a sua própria família, aquela que escolheram e que os acolheu. Juntos habitam o Pink Palace, uma casa aberta, livre e com muitas vidas a acontecer.

Uma alegria que escurece – mas nunca desaparece

Não tarda até que o verdadeiro propósito de It’s a Sin, passada ao longo de uma década, comece, lentamente – como quem rompe a carne com uma faca afiada milímetro por milímetro -, a dar de si. Ao início, são factos negáveis e, como é obvio, ‘qualquer um com espírito crítico saberia que se tratava, apenas e só, de uma manobra para limitar a liberdade gay’. Era este o pensamento, errado, de muitos destes jovens, que era tudo menos sua culpa: era tal a perseguição homofóbica (e transfóbica) que tudo parecia uma maneira de limitar a vida a estas pessoas, que tinham dificuldade em aceitar o perigo em iminência.

Mas o VIH e a Sida estavam à espreita. E atuaram. Não tardou até que esta família escolhida começasse a ver os outros a sucumbir, os amigos dos amigos; depois os amigos; depois eles próprios. E o problema propagou-se, por muitos e muitos por simples (e há atenção à leviandade deste adjetivo) razões: a do medo, da ignorância, de varrer para debaixo do tapete uma ameaça por puro preconceito e pela estadia duradoura num pedestal de quem acha que não tem de se preocupar com as pessoas do (seu) mundo.

It's a Sin
Fotografia: Channel 4/Divulgação

Um dilema que se estendeu aos sistemas de saúde e ao tratamento desumano dado aos que eram diferentes. Que se estendeu à própria comunidade LGBTQ+, enterrada na sua própria vergonha, que se dividiu entre aqueles que tentaram fazer frente a cuspidelas na cara (literais e figurativas) e os que se esconderam no preconceito, causado pela sociedade, de achar que não mereciam melhor.

A dor pelas vidas que não foram vividas

É surpreendente, mas nem por isso, ver de forma nua e crua a maneira como mesmo os médicos trataram estas vítimas durante a incerteza, inundados num oceano de preconceito e práticas antiquadas. Mas um dos verdadeiros traumas reside na forma como os pais e famílias foram capazes de injetar as suas próprias doses de crueldade. Primeiro, ao longo das vidas dos seus filhos, cegos pelo desejo de normalidade. Depois, ao atingi-los com a sua raiva por terem sido deixados para trás em detrimento daqueles que os aceitaram como realmente são. Por fim, na própria doença, perante a qual, envergonhados, tudo fizeram para desacreditar a realidade à frente dos seus olhos.

Val, a mãe de Ritchie – interpretada brilhantemente por Keeley Hawes, que desembrulha esta personagem ao longo dos episódios de uma forma lenta, magistral que se torna uma verdadeira aula de representação – é um dos maiores exemplos do que uma mente fechada presa em negação acabou por causar.

It's a Sin
Fotografia: Channel 4/Divulgação

No último episódio, Jill, ao descobrir que o seu melhor amigo tinha sucumbido, faz um discurso para Val que é aqui reproduzido na íntegra e tão bem resume a dor da realidade:

É isso que a vergonha faz. Fá-lo sentir que merece isto. O mundo está cheio de homens que acham que merecem isto. Eles estão a morrer e uma parte deles pensa «sim, isto está certo, eu trouxe isto para mim mesmo, a culpa é minha, porque o sexo que eu amo está a matar-me». Quer dizer, é surpreendente. O vírus perfeito chegou para provar que estava certa. Então foi isso que aconteceu. A sua casa. Ele morreu por causa de si. Todos morrem por causa de si”.

Uma batalha que nunca estará ganha

It’s a Sin é uma ode a quem se levantou e, no fundo continua a levantar por um mundo mais igual. Porque, e regressando ao início deste texto, deste lado da bolha o progresso foi algum, mas insuficiente; do outro lado, há cerca de 70 países onde amar uma pessoa do mesmo sexo é um crime literal.

Ainda há demasiadas pessoas a morrer, demasiadas pessoas sem direitos, que não são reconhecidas como aquilo que são: seres humanos, naturais, iguais, dignos. O mesmo se estende a outras lutas, tão ou mais importantes, que no fundo estão todas interligadas. Lutar por direitos LGBTQ+ faz mais sentido quando também se trabalha para acabar com atrocidades cometidas em detrimento de género, da etnia, do próprio mundo em que vivemos, em desigualdades climáticas, económicas e demais flagelos sociais.

It's a Sin
Fotografia: Channel 4/Divulgação

A mestria da escrita de Russel T. Davies (responsável por outro sucesso LGBTQ+, Queer as Folk, ou produções como a aclamada Years and Years) está na representação real, credível, baseada nas suas próprias experiências de quem viu demasiados amigos a ir embora, de quem foi a demasiados funerais para um jovem a seguir os seus sonhos. Esta é uma série sobre as vidas que não foram vividas. Ou, talvez, sobre as que foram vividas tão intensamente que tiveram um desfecho trágico anunciado pelo desprezo à sua volta.

Com interpretações radiantes – especialmente dos protagonistas Olly Alexander e Lydia West, mas todo o elenco, que é extremamente diverso e de própria voz, brilha ao lado de participações especiais como as de Neil Patrick Harris ou Stephen Fry -, é encapsulada a vivacidade de uma geração que merecia melhor, mas que também foi aquela que mais lutou e continuou a montar o caminho que ainda hoje se percorre rumo à igualdade.

Além do elenco e do guião de It’s a Sin, que é prosa em laivos de poesia catártica, a realização de Peter Hoar, as localizações, a cinematografia, o guarda-roupa, a edição; tudo se complementa em bem. Isto embalado por uma banda sonora brilhantemente selecionada, que captura a essência da época e as emoções variantes ao longo dos episódios.

Esta é a dádiva de It’s a Sin. São constantes murros no estômago que relembram a todos quem veio antes, quem lutou e quem se foi. É um conjunto de capítulos duro, vivo, real. Mas também emocionante, carinhoso, colorido, celebrativo. Quente, chocante e entorpecido. Tudo ao mesmo tempo, a fazer rir e emocionar com segundos de diferença.

Quando termina o último episódio e rolam os créditos, letras brancas sobre um fundo preto, fica o aviso à navegação: as lágrimas irão certamente escorrer. De tristeza, pela dureza de um tempo que foi só ontem. De conforto, por quem se levantou e continua a levantar pela igualdade. De orgulho, em viver a verdade que cada um tem em explosões dentro do seu ser.

Os cinco episódios de It’s a Sin estão disponíveis em streaming no catálogo da HBO Max.

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