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Boca de Cena #14: Ana Bola, a atriz sem filtros

Para a décima quarta entrada da rubrica Boca de Cena, escolhemos falar de Ana Bola. A atriz é profissional, curiosa, apaixonada e, o mais importante, tem um sentido de humor fora de série. Divide a sua atividade de atriz com a de autora de textos humorísticos, o que lhe dá um pleno reconhecimento entre diferentes gerações. O humor nasceu com ela e desenvolveu-se ao longo dos 63 anos da atriz. Sem filtros, falamos agora de Ana Bela dos Santos Simões, a nossa Ana Bola.

Filha de dois persistentes trabalhadores, Ana Bola foi colocada no Liceu Francês com apenas 3 anos, um colégio onde se podia aprender uma segunda língua e tornar-se bilingue. Sendo uma das poucas escolas mistas na altura, Ana Bola acredita que esta característica a ajudou a ficar uma pessoa mais liberal. Tornou-se numa mulher pouco ambiciosa, pois cedo percebeu que os bens materiais são apenas isso e que há coisas mais importantes.

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Formou-se em Secretariado no Instituto Superior de Línguas e Administração, em Lisboa. Foi nesta altura que começou a experimentar o teatro, numa versão amador. Foi também nesta altura que conheceu o ator Henrique Viana, figura incontornável do teatro português, e que a levou a estrear-se no Teatro Adóque, com a comédia 1926 Noves Fora Nada, em 1976.

A partir desta estreia, Ana Bola nunca mais parou. A paixão pelo teatro, pelo público e pelo palco foi tal que a sua vida esteve sempre ligada à arte. Em 1977 integrou o grupo Os Amigos, ao lado de Paulo de Carvalho, Luísa Basto, Fernando Tordo, Eduardo Silva e Fernando Piçarra, que vence o Festival RTP da Canção. A banda portuguesa venceu a edição de 1977 com a canção Portugal no Coração, da autoria do poeta Ary dos Santos e do músico Fernando Tordo. No mesmo ano, o grupo Os Amigos representaram Portugal no Festival da Eurovisão com a mesma música, ficando em 14.º lugar.

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Em 1981 juntou-se ao coro de Carlos Paião para a música Playback, vencedora do Festival RTP da Canção desse ano, que representaria Portugal no Festival Eurovisão da Canção. A música preenchia-a, mas apenas como brincadeira. A verdadeira paixão estava na comédia e, por isso, Ana Bola iniciou a sua carreira como atriz de comédia em participações no programa Fungagá da Bicharada, em 1976, apresentado por Júlio Isidro, e em que encenou várias personagens.

Mais tarde, entrou também noutras produções apresentadas por Júlio Isidro como O Passeio dos Alegres, em 1981, Festa é Festa, em 1982, A Festa Continua, em 1983 e Arroz Doce, em 1986. Em 1987, Ana Bola é convidada para ingressar no elenco de Humor de Perdição, emitido pela RTP, em que encenava o papel de Pureza de Madredeus Teixeira da Cunha. Esta era uma personagem que pretendia criticar os novos-ricos do Portugal pós-CEE que aterravam de pára-quedas no jet set nacional e que tentavam a todo o custo esconder as suas origens humildes. Ao lado de Herman José, em tempos em que era considerado o melhor humorista português, esta foi uma das melhores séries da altura. Personagens inesquecíveis, situações divertidíssimas, piadas fabulosas, foram a chave para o sucesso de Humor de Perdição, exibido aos domingos à noite.

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Em 1988, ano que marcou o fim de Humor de Perdição, Ana Bola passa também a ingressar elencos de telenovelas. Em Passerelle, emitido pela RTP, interpreta Leonor Pessoa. Escrita por Rosa Lobato Faria e Ana Zanatti, esta foi uma novela que nos contou a história de duas famílias: Cardoso e Guimarães. Ana Bola não se vê a fazer um papel sem humor. Em entrevista ao Jornal de Notícias, em janeiro de 2014, a atriz afirma: Tem de ter sempre uma pitada [de humor]… E de preferência sem ser protagonista que é para não ter de lá ir muito“.

A série Os Bonecos da Bola, projeto da sua autoria, foi transmitida pela RTP em 1994. Esta série foi uma comédia de situação com 26 episódios, gravados em estúdio com público a assistir. Ana Bola, personagem principal, encenou ao lado de Vítor Sousa, José Pedro Gomes, Maria João Luís, entre outros. Cada episódio revelava histórias com diferentes personagens, e procuravam abordar temas em torno de problemas reais da sociedade, como conflitos conjugais, relações entre pais e filhos, a mania das dietas, o novo “riquismo”, entre outros. Mas claro, sempre em tom de comédia.

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A crítica esteve sempre presente nos projetos de Ana Bola. No entanto, os anos passam e tornaram-na mais matura. Hoje não julga com julgava, admite que as pessoas são diferentes e todas erram e têm o direito de se enganar e, portanto, Ana Bola admite que deverá haver uma condescendência e essa vem com a idade. Assim como a crítica, o humor está presente na atriz desde sempre e pode ser visto como uma arma contra a timidez. Desta forma, o humor pode ser uma arma contra tudo o que é complicado mas com que tem de lidar. O humor ajuda a atriz a ultrapassar situações complicadas como a morte e a doença, e neste campo, o humor negro é fantástico.

Após escrever Os Bonecos da Bola, a atriz passou a escrever tantos outros textos humorísticos. Em 1994, escreve A Mulher do Senhor Ministro, exibido pela RTP entre esse ano e 1997. Este projeto contou com a realização de Nicolau Breyner, em que Ana Bola era Lola Rocha, a mulher de um ministro de Portugal. Um formato crítico, como não poderia deixar de ser.

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Vip Manicure foi um dos maiores sucessos de Ana Bola. Foi ao lado de Maria Rueff que a atriz encenou o papel de Denise de Magalhães, a patroa ambiciosa que tinha o sonho de receber personagens vips no seu salão. A série, exibida em 2008, em formato de sitcom, mostrava a relação entre as duas personagens, como o que lhes ia acontecendo nas suas vidas privadas. Vip Manicure foi retirado do ar pela SIC sem justificações, sendo que ficaram por emitir quatro episódios. Mais tarde, Ana Bola decidiu passar a série a livro, inspirado nos sketchs que passaram na estação de Carnaxide.

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Outro grande sucesso da atriz foi, sem dúvida, a participação em Estado de Graça, emitido pela RTP1 em 2011. Foi um programa semanal dirigido a todos os públicos. No formato, o elenco comentava e analisava com humor e sátira os principais assuntos da atualidade.

Estado de Graça ficou marcado pelas ousadas imitações, desde Teresa Guilherme, protagonizada por Maria Rueff, ou Betty Grafstein, protagonizada por Ana Bola. Manuel Marques, também integrante no projeto, representou personagens como Cátia Palhinha ou Yannick Djaló. Joaquim Monchique e Eduardo Madeira completaram o elenco. Feito e escrito por comediantes, Estado de Graça terminou em 2012 e, sobre isso, Ana Bola não consegue compreender as razões. “O que nos foi dito foi que tínhamos feito umas quantas séries e que estava na altura de acabar para fazer coisas novas. Se o programa fazia audiências e ainda cumpria serviço público, então porque é que acabou? Se calhar porque era incómodo.”, lê-se na entrevista ao Jornal de Notícias de janeiro de 2014.

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Durante algum tempo, Ana Bola sentiu-se zangada com a televisão portuguesa. Chegou mesmo a pensar não regressar à televisão. Na mesma entrevista ao Jornal de Notícias de janeiro de 2014, Ana Bola referia as abruptas diferenças que existem hoje em televisão, e para pior. “Se as novas tecnologias ajudam em algumas coisas, a incompetência dá cabo das outras. Durante a maior parte da minha vida tive a sorte de trabalhar com profissionais muito bons e numa altura em que os realizadores eram realizadores, os atores eram atores, os comediantes eram comediantes e os produtores eram produtores. Hoje, e como todas as pessoas têm necessidade de trabalhar para comer, às vezes contratam-se pessoas pouco experientes ou pouco profissionais. E isso põe sempre um pauzinho nas engrenagens.”, diz Ana Bola na mesma entrevista.

2014 foi o ano do teatro para Ana Bola. Levou a cena o seu monólogo Ana Bola Sem Filtro, texto da sua autoria e única protagonista. Este espetáculo surge como uma crítica ligeira e bem-disposta a uma realidade gritante: a total falta de respeito pela arte, pelos artistas e pelo trabalho sério que tem vindo a ser substituído por atentados ao talento e à experiência. A peça fala dos seus 63 anos e da falta de trabalho, fala da apresentação e de reuniões com as direções de programas que resultam em nada e do que lhe resta: castings para programas de talentos. Conquista a público a cada teatro que vai, e este one-women-show valeu-lhe o prémio Personalidade Lux 2014, na categoria de teatro.

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O regresso de Ana Bola está para breve. Irá voltar à RTP com a série Donos Disto Tudo em que irá representar várias personagens, à semelhança de projetos que fez. É a fazer humor que Ana Bola se sente confortável, e onde vemos as suas competências de atriz elevadas ao máximo. No entanto, o humor é uma área que, como qualquer outra, está sujeita ao machismo. Fazem falta mulheres na comédia e nesta área, Ana Bola luta pela mudança de mentalidade. Não é, nem será justo vê-la fora dos palcos ou dos ecrãs. Esperamos pelo seu regresso em Donos Disto Tudo que, de certo, fará rir miúdo e graúdo, como sempre.