A 8 de abril de 1971 realizou-se o Primeiro Congresso Mundial Romani e a data passou a ser reconhecida pelas Nações Unidas como o Dia Internacional do Cigano. Em Portugal, a data é comemorada no dia 24 de junho e tem como propósito promover a inclusão das pessoas de etnia cigana na sociedade e também consciencializar para a necessidade de adotar políticas públicas que mitiguem os efeitos da pobreza e da exclusão social que esta comunidade sofre.
Um estudo da Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia (FRA), realizado em 2016, revelou que uma grande parte da comunidade cigana, maioritariamente cidadãos nascidos em Estados-Membros da União Europeia, é vítima de preconceito, intolerância e discriminação. Neste Dia Nacional do Cigano, o Espalha-Factos esteve à conversa com duas investigadoras, Maria Manuela Mendes, que tem desenvolvido investigação na área do estudo sobre e com ciganos, e Olga Magano, que tem estado envolvida em algumas pesquisas sobre integração e exclusão de Ciganos em Portugal, e ainda com Vanessa Lopes, cigana e jornalista estagiária no Público, para desmistificar alguns mitos que envolvem esta comunidade.
Através de alguns estudos, foi possível concluir que a diáspora cigana terá começado há cerca de 1 500 anos, no noroeste da Índia, devido a uma invasão islâmica. A entrada na Europa deu-se através dos Balcãs, mais precisamente através da Bulgária, há cerca de 900 anos e, a partir daí, começaram a espalhar-se por todo o continente europeu. A Portugal, as pessoas ciganas terão chegado em 1462, no entanto, as primeiras referências a esta comunidade só aparecem no princípio do século XVI, mais precisamente em 1516, no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, e em 1521, na Farsa dos Ciganos, de Gil Vicente.
Apenas em 1822 é que a cidadania portuguesa foi atribuída aos ciganos e atualmente de acordo com dados do Alto Comissariado para as Migrações (ACM) de 2017, estima-se que existam 37 mil pessoas de etnia cigana a viver em Portugal. O valor corresponde a cerca de 0.3% da população portuguesa.
Porque são alvo de discriminação
Apesar de estarem em Portugal há mais 500 anos, as pessoas de etnia cigana continuam em muitas circunstâncias a ser mal vistas e alvo de discriminação, racismo e desigualdades sociais. De acordo com Maria Manuela Mendes, isto acontece por vários motivos, entre os quais destaca o facto de “continuar a haver pouca investigação histórica em Portugal sobre as origens dos Ciganos”. A investigadora relata também uma falta de “estudos sobres as relações entre os Ciganos e os outros grupos sociais” e uma “ausência de dados estatísticos com carácter de recenseamento”. Esta falta de informação, defende, leva a desconhecimento e “o desconhecimento é um terreno fértil para a construção de estereótipos e de preconceitos”.
Para a investigadora Olga Magano, o estereótipo em relação às pessoas ciganas “perdura pelas imagens negativas que foram construídas e que, de alguma forma, continuam a ser transmitidas em relação aos que menos conhecemos”. Para além disso, estas pessoas continuam a ser vistas como “como alguém que não é português” e talvez “a questão mais negativa disseminada é a ideia pré-concebida de que “não trabalham” e de que vivem à conta do Estado”, acrescenta a investigadora.
Vanessa Lopes destaca também que “o facto de ter havido maus exemplos também criou um estereótipo, um rótulo à volta da comunidade cigana”. A jornalista justifica esta questão com a própria “tendência do ser humano em focar-se muito no que é mau e esquecer-se daquilo que é bom”. “Toda a gente já teve alguma má experiência e isso são coisas que ficam nas pessoas e que elas depois passam a lembrar-se só disso. Não há mais nada, só isso. Pode até ter acontecido uma coisa boa com algum, alguma vez, mas isso parece que ficou apagado. O que fica é o que é mau”, explica.
Contudo, Vanessa questiona o conceito de integração com a questão do trabalho. “Se trabalham, estão integrados e contribuem”, defende. Por outro lado, admite que as grandes diferenças são a nível cultural, à diferença de princípios e forma de estar na vida que, sendo rejeitada, “faz com que a comunidade cigana nem sequer tenha vontade de se envolver e misturar”. Isso, acredita, pode tornar-se uma barreira: “Isso pode ser uma barreira, mas acho que isso é em todas as culturas. Há sempre um a barreira, uma diferença. E a diferença é sempre difícil. Acho que é um pouco por isso”.
Mito ou verdade
As pessoas de etnia cigana não querem trabalhar e preferem viver à custa do estado?
A questão do Rendimento Social de Inserção (RSI) tem sido largamente debatida no espaço público português e, mais uma vez, são apresentados dados que contestam a tese largamente difundida de que as pessoas ciganas vivem à conta deste apoio social e não querem trabalhar. Maria Manuela Mendes apresenta dados de 2008 do Instituto da Segurança Social que mostram que apenas “3,9% das famílias ciganas beneficiavam do RSI (5 275 )”. De acordo com o mesmo relatório, à data, “de um total de 135 428 famílias que beneficiavam de RSI, apenas 5 275 estavam identificadas como sendo ciganas”.
Para Vanessa Lopes, não há “nada melhor do que provar alguma coisa com factos e dados estatísticos, porque o que acontece muito é que as pessoas deixam-se levar por aquilo que ouviram falar”. Em relação aos dados do Instituto da Segurança Social, a jornalista assegura que a comunidade cigana é “uma minoria” dentro dos portugueses que recebem RSI. “A grande percentagem são portugueses não ciganos que recebem este apoio social”, refere.
No entanto, para Vanessa, a visão que é preciso mudar é que quem recebe este apoio social, seja ou não parte da comunidade cigana, “não quer trabalhar”. “O problema é que as pessoas que falam essas coisas não veem de perto as dificuldades das famílias. As pessoas que recebem, recebem porque têm dificuldades”, sublinha.
Se há pessoas a receber o RSI indevidamente? A jornalista acredita que sim, dentro e fora da comunidade cigana, mas assegura que, “se existe uma má organização, o problema é do Governo, é de quem dá, não é das pessoas que o recebem”. “Todos somos seres humanos. A uma família com filhos para cuidar, se lhe disseres ‘eu dou-te o ordenado mínimo e ficas em casa com os teus filhos’ ou ‘dou-te este trabalho e recebes o mesmo valor e ainda tens que pagar a cresce dos teus filhos’, o que é que vai escolher?”, questiona, reiterando que “se existem pessoas a receber indevidamente o RSI, a culpa é de quem gere e não de quem recebe”.
O estado paga para os menores ciganos frequentarem a escola?
Hoje em dia, já existem alguns exemplos de pessoas ciganas que chegaram a frequentar o ensino superior. Vanessa Lopes é um desses casos, frequentou o curso de Ciências da Comunicação e contou-nos um pouco deste percurso escolar.
“Os meus pais não queriam muito que eu continuasse a estudar, então fui retirada muitas vezes da escola, só depois com o tempo, à medida que fui crescendo e conversando, começaram a aceitar”, conta a jornalista. A estagiária do jornal Público revela que apenas conseguiu concluir o 9.º ano, “com muito sacrifício”, aos 17 anos, devido a ter sido muitas vezes retirada, e só mais tarde concluiu o 12.º ano e tirou a licenciatura em regime de maiores de 23. “Até hoje, [os pais] ainda não entendem muito bem, mas pelo menos já aceitam, já é um passo, mas não foi assim muito fácil para mim”, acrescenta.
A grande ajuda de Vanessa foram os professores, que tentaram sempre explicar aos pais a importância da escola. “Tive muita sorte, porque, por norma, os professores limitam-se a lecionar e a dar as aulas e não querem saber minimamente disso. No meu caso, não. Tive professores incríveis que me ajudaram nesse processo”, conta.
“Os processos de escolarização das pessoas ciganas têm vindo a mudar e a situação atual é melhor do que a verificada nos anos 80, 90 e início de 2000, como é óbvio”, conta a investigadora Maria Manuela Mendes. Também segundo Olga Magano “sempre houve pessoas ciganas escolarizadas e as que fizeram ensino superior, em todo o caso, o abandono escolar e a não conclusão da escolaridade obrigatória continua a ser um dos principais problemas uma vez que limita a possibilidade de inserção no mercado de trabalho”, embora se verifique “um aumento de escolaridade entre gerações”.
Vanessa Lopes explica esta taxa de abandono escolar dentro da comunidade cigana, especialmente nas raparigas, com o facto de a educação ainda não ser “considerada algo assim tão importante dentro da comunidade”. “Por norma, o que uma pessoa dentro da comunidade cigana pensa quando crescer é ir vender na feira, casar e, para isso, digamos que não é necessário ter um curso superior, ter formação, por isso é que ainda não é dada assim tanta importância”, explica.
No entanto, a jornalista assegura que as coisas estão a melhorar, já que as pessoas também começam a perceber que os “tempos de hoje já não são o que eram antigamente”. “As coisas estão a mudar e até os próprios pais já estão a mudar um pouco essa mentalidade de que não é necessária a formação. E já vemos muitos jovens a entrar no ensino superior. Não tanto quanto gostaríamos, mas já é um grande passo nesse sentido”, frisa.
O facto de começar a haver mais casos de sucesso a nível escolar dentro da comunidade também é essencial, segundo Vanessa, que acredita que “ter uma referência faz toda a diferença”. Aos jovens estudantes, explicita, mostra “que é possível e só isso já é uma alavanca gigante, que tem um impacto tremendo”. À restante comunidade traz a normalização da questão da formação. “À medida que a comunidade vai vendo que existem várias pessoas nesse registo, as coisas começam a normalizar. E quando se começa a normalizar já não parece assim tão mal e as coisas também se tornam muito mais fáceis”, afirma.
Relativamente à questão de o Estado pagar para as crianças ciganas frequentarem a escola “é mais um dos mitos que tem alguma difusão entre alguns segmentos da sociedade portuguesa”, afirma Maria Manuela Mendes, que garante que “as medidas e políticas sociais em Portugal têm um caráter universalista”. “Os apoios sociais que os ciganos têm acesso não diferem dos que são disponibilizados a todos os cidadãos, sejam ciganos ou não ciganos”, acrescenta a investigadora.
As raparigas casam quando ainda são menores
A questão do casamento dentro da comunidade cigana em idades inferiores aos 18 anos é também discutida no seio da sociedade e é algo que, como revela Vanessa Lopes, continua a acontecer, dependendo sempre da vontade da rapariga. “Hoje em dia, continuam a querer casar muito cedo, por volta dos 15 ou 16 anos, mas cada vez mais vemos mulheres a casar aos 18, aos 19 ou aos 20, porque já começam a querer outras coisas”, adianta a jornalista.
Se Vanessa vê isto como errado? Garante que não e que não entende a razão de ser muitas vezes visto como um problema. “Porque é que não tem mal ter relações sexuais sendo menor, mas tem mal casar? Eu prefiro que, um dia, os meus filhos casem e tenham relações sexuais no casamento do que tenham com todos os namorados enquanto menores de idade”, frisa.
Não têm de pagar casa pois é-lhes oferecida pelo estado
Questionada sobre mais um mito muito comum, Vanessa Lopes brinca até com a situação: “Eu pago uma casa e não é pouco. Não sabia disso. Têm que me dizer onde é que isso se faz”. A jornalista garante que não só as pessoas da comunidade cigana têm de pagar casa, como lhes é muito mais difícil conseguir, por exemplo, arrendar uma casa. “Há[casas], de certeza, mas a maioria dos senhorios não quer pessoas ciganas nas suas casas. Depois, tendo em conta que a maioria da comunidade cigana não tem posses suficientes para comprar uma casa, vai ter sempre que arrendar. Isso torna-se um desafio”, declara.
Uma arma no discurso político
A importância deste Dia Nacional do Cigano deve-se ao facto de “as desigualdades e disparidades entre Ciganos e outros grupos sociais” ainda serem “muito expressivas”, afirma Maria Manuela Mendes. Para além, das medidas do Estado português na mitigação destas desigualdades terem sido insuficientes ao longo dos anos, as pessoas de etnia cigana têm sido usadas como arma de arremesso político, sobretudo naqueles que usam um discurso marcadamente populista.
“Com o aparecimento do partido Chega, o foco não foi para os imigrantes e/ou refugiados, como acontece em partidos similares na Europa Ocidental e do sul, mas sim os Ciganos”, explica a investigadora, acrescentando que “esta focalização sobre os ciganos tem sido uma dimensão central e instigante por parte deste parido e que ganhou simpatia, sobretudo em territórios periféricos e com vulnerabilidades”. No entanto, Maria Manuela Mendes acredita que é também interessante perceber que “os ciganos têm-se mobilizado e têm acionado estratégias de resistência contra esses partidos e movimentos que os desqualificam e subtraem a sua humanidade”.
Para Olga Magano, “o uso da situação das pessoas ciganas por parte de um partido político deve-se ao facto de disseminar ideias populistas e que assenta na ideia de “pária”, de que estas pessoas são “parasitas sociais” que vivem por conta do Estado”. Mais uma vez, “a ideia de que estas pessoas não contribuem para o Estado é a dominante”, embora já tenha sido desmontada inúmeras vezes.
“Honestamente, continua a chocar-me como é que, em pleno século XXI, em plena Assembleia da República, é permitido tais discursos”, desabafa Vanessa Lopes. Para além de admitir que “não é bom de se ouvir”, a jornalista demonstra “pena que muita gente não pense também por si mesma, porque é um discurso populista e já vimos muito isto na história em Portugal e não só”. “É um discurso populista que as pessoas adoram e também, de alguma forma, vem alimentar e dar força aos sentimentos que as pessoas já tinham em si, mas que não exteriorizavam e que agora têm toda a legitimidade para o fazer, porque se um deputado da Assembleia da República o faz, porque é que eu não hei-de fazer? Não tem mal nenhum”, frisa.
Em relação ao que fazer em relação a este problema e outros mitos tão concentrados na sociedade? Vanessa acredita que não há muito a fazer além de “continuar o bom trabalho que temos feito até agora”. “Há muitas coisas que nós podemos levantar como problema e isso não tem mal nenhum, o problema é a forma como o fazemos, como o dizemos. Acho que tem a ver com a forma de comunicarmos a mensagem, isso faz toda a diferença”, termina.