A 8 de março celebra-se o Dia Internacional da Mulher em muitos países. Esta data foi reconhecida pelas Nações Unidas em 1975 e tem por objetivo, para além, da defesa dos direitos das mulheres também a igualdade de género, ou seja, “igualdade de direitos, de liberdades, de oportunidades, de escolhas, de participação, de reconhecimento e de valorização de mulheres e de homens, em todos os domínios da sociedade”, de acordo com a Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG).
O tema da igualdade de género tem ganhado uma dimensão significativa nos últimos anos e, neste sentido, o Espalha-Factos decidiu tentar perceber se, em Portugal, na grande área do Audiovisual, existe efetivamente paridade de género. Assim, para uma abordagem mais técnica do tema, falámos com a Comissão para a Cidadania e Igualdade de género e com Hilary Owen e Mariana Liz , coeditoras do livro Women’s Cinema in Contemporary Portugal. A edição portuguesa, intitulada, Realizadoras Portuguesas. Cinema no Feminino na Era Contemporânea está em preparação com a Imprensa de Ciências Sociais, com financiamento da Fundação Calouste Gulbenkian.
Qual o papel da mulher no Cinema?
Sendo que a produção artística é a construção de um olhar das pessoas sobre o mundo e os diferentes géneros experienciam o mundo de forma diferente, a experiência das mulheres sobre o mundo deve ser mostrada.
Com a pesquisa para o seu livro, Hilary reforçou a crença na importância da presença de mulheres e raparigas na TV e no cinema, para as “perspectivas das mulheres estarem corretamente refletidas e representadas, com o objetivo de educar a sociedade como um todo através do pequeno e grande ecrã”.
A evolução da presença da mulher no cinema português
Em Portugal, a indústria cinematográfica apareceu em 1918 e nestes primeiros anos houve algumas figuras femininas importantes como, Virgínia de Castro Almeida, que produziu alguns filmes nos anos 20. No entanto, o primeiro filme a ser realizado por uma mulher, Três Dias sem Deus, de Bárbara Virgínia, apenas estreou em 1946. Já o segundo filme realizado por uma mulher no nosso país só foi exibido passados 30 anos, Trás-os-Montes, realizado por Margarida Cordeiro em parceria com António Reis, seu marido.
Em 2016, Ana Catarina Pereira, através da Universidade da Beira Interior e com o apoio da Fundação para a Ciência e Tecnologia, publicava em livro A mulher-cineasta: Da arte pela arte a uma estética da diferenciação, um estudo minucioso sobre a evolução do papel da mulher no cinema. No capítulo dedicado a Portugal, a autora lembra que “falar de cinema português no feminino é analisar uma breve mas interessante História das mulheres que inverteram os tradicionais papéis de – atriz filmada por um realizador – assumindo o comando do olhar por detrás das câmaras”.
Para além das já enunciadas percursoras no cinema português, há um nome incontornável, na história mais recente da sétima arte no nosso pais, Teresa Villaverde. Durante os anos 90, a realizadora foi responsável por uma mudança de rumo na maneira de pensar a mulher no cinema português, “os anos 90 ficariam marcados pelo início do percurso de Teresa Villaverde, a menos invisível das cineastas estudadas”.
Com Mutantes, em 1998, o plano de reviravolta da sétima arte tornava-se mais claro, o filme já não era sobre a identidade nacional, sobre factos históricos ou sobre grandes figuras nacionais (na sua maior parte masculinas). Mutantes falava de forma crua e dura de Andreia, “na criação de uma personagem, Andreia, que constantemente foge de centros de reinserção social e que vagueia pelas ruas de Lisboa à procura do rapaz que a engravidou”.
De maior importância era ainda “a cena final do parto, particularmente impressionante pelo seu dramatismo, será uma das mais difíceis de assistir, em toda a História do Cinema Português. Nela se mimetizam a angústia e o desespero de uma mãe que dá à luz na mais profunda solidão”. Pela primeira vez fazia-se arte representando a mulher, num tema tabu e de forma crua.
À data do estudo de Ana Catarina Pereira, o filme realizado por mulheres com maior número de espectadores era Capitães de Abril (2000) de Maria de Medeiros, com 110 337 espectadores. Segundo dados do Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA) este era também o segundo filme português mais visto de sempre, no estrangeiro, somando 250 553 espectadores, a seguir a Vou para Casa de Manoel de Oliveira.
Foram precisos mais de 20 anos para realizadoras estarem de novo no primeiro lugar em número de espectadores nas salas de cinema. Segundo dados públicos do ICA sobre os filmes exibidos e estreados, só em 2020 uma mulher volta a estar em primeiro lugar na lista.
Filmes com mais espectadores em 2020 e 2021 têm realizadoras e mulheres no elenco principal
Nos últimos anos a tendência é de mudança. Segundo os dados do ICA, os pódio dos filmes mais vistos em 2020 e 2021 é escrito no feminino, na realização e nas histórias. O primeiro é Listen (43 757) , de Ana Rocha Sousa, com Lúcia Moniz no papel principal. No ano passado destacou-se Bem Bom (807 905 espectadores), de Patricia Sequeira, com Bárbara Branco, Lia Carvalho (Teresa Miguel), Ana Marta Ferreira (Laura Diogo), Carolina Carvalho (Lena Coelho) nos papeis de Fátima, Teresa, Laura e Lena, as mulheres que pararam Portugal nos anos 80.
É necessário considerar que ambos foram distribuídos durante dois anos conturbados para as salas de cinema portuguesas, muitas vezes fechadas e quando abertas com um grande limite de lotação devido às medidas articuladas para travar o avanço da pandemia.
Em Bem, Bom, ou Doce na versão série transmitida na RTP1, temos o retrato dos anos dourados da primeira girlsband portuguesa, num filme que fala da importância da igualdade de género desde o primeiro minuto, com a representação de mulheres a quererem fazer o seu trabalho, num mundo pertencente totalmente aos homens e em que só são valorizadas pelo seu físico.
A sexualização das quatro mulheres por parte dos portugueses terminou na invenção de um boato que nada mais é que a prova de que ainda muito havia para fazer na emancipação feminina. Mulheres como as Doce, filmadas pelos olhos de outra mulher, servem para nos lembrar o esforço extra que as mulheres precisam de fazer desde o primeiro instante, para provar todos os seus passos, todo o seu talento e profissionalismo, para ocuparem lugares que à partida deveriam de ser para qualquer um de nós.
Já Listen fala-nos no desespero de uma mãe, Bela, a viver nos subúrbios de Londres, em condições precárias, com o marido Joca e os três filhos, no desespero de ter a guarda dos seus filhos retirada pelos serviços sociais ingleses, de forma injusta e inultrapassável pelas vias legais.
O que nos dizem os números
Embora as mulheres em Portugal apenas tenham realizado 40 longas metragens, ou seja, menos de um filme por ano, entre 1946 e 2009, será que nos últimos anos a situação se tem vindo a alterar e as mulheres têm ganho mais espaço, será que a sua visão tem tido lugar na indústria cinematográfica?
Um estudo do Observatório Europeu do Audiovisual, assinado por Patricia Simone, analisou a presença de mulheres entre os profissionais de cinema na Europa, entre 2016-2020, e os dados mostram uma profunda desigualdade de género nas profissões de bastidores e, nos últimos anos, não houve qualquer evolução em sentido contrário.
Este estudo olha para a presença feminina no cinema de três pontos de vista – percentagem de mulheres entre os profissionais ativos, qual a proporção média de profissionais do sexo feminino por filme e qual a proporção de filmes dirigidos por mulheres.
Relativamente à realização as mulheres representam 23% dos realizadores europeus no ativo, entre 2016-2020. No entanto, se olharmos para a média de realizadoras por filme esta percentagem baixa para 21%, pois é menos provável que sejam as únicas realizadoras de um filme, ao contrário dos seus homólogos masculinos que têm maior facilidade em trabalhar a solo.
A proporção média de realizadoras por filme varia entre 8% e 35% em toda a Europa, Portugal está abaixo da média europeia (23%) com uma proporção média de realizadoras por filme de 15%.
No caso da escrita de guião a situação melhora um pouco, sendo que 27% dos argumentistas em atividade na Europa, entre 2016-2020, são mulheres. Embora tenham estado envolvidas na escrita de 37% das longas-metragens europeias realizadas no período de tempo considerado, a proporção média de argumentistas do sexo feminino por filme foi de apenas 25%, no caso de Portugal piora pois a proporção baixa para 20%.
É de notar também que só 18% dos filmes que estrearam nestes quatro anos foram escritos por equipas lideradas por mulheres, pois quando as mulheres coescreviam um filme, geralmente a equipa era composta por uma maioria de argumentistas do sexo masculino.
Relativamente à direção de fotografia e à composição os números são muito alarmantes, pois existem apenas 10% de diretoras de fotografia e 9% de compositoras a trabalhar para cinema. A proporção média de diretores de fotografia do sexo feminino por filme variou entre 1% e 25% nos países europeus, Portugal está abaixo da média (10%) com uma proporção de 5%, a Suécia lidera. Nas compositoras, a proporção média por filme foi de apenas 7%, em Portugal diminui para 2%.
Entre 2016 e 2020, na Europa, as produtoras femininas representavam 33% dos profissionais ativos. E a proporção média de produtoras por filme foi de 30%, tal como em todas as categorias aqui analisadas, exceto na distribuição de papéis principais, esta proporção aumenta no caso dos documentários (38%).
Em Portugal o cenário não é tão animador baixando esta proporção para 25%, no topo dos países europeus está a Dinamarca com uma proporção média de produtores do sexo feminino por filme de 55%.
No relatório pode ler-se que “a presença feminina é mais equilibrada frente às câmaras” e o os dados mostram mesmo isso, pois as mulheres representam 39% dos atores principais de um filme. E a proporção média de papéis principais femininos por filme, nos países europeus, variou entre 23% e 45%, sendo que neste campo Portugal ficou acima da média europeia (38%) com uma proporção média de 40%, na liderança encontra-se a Islândia.
Os números sugerem que as mulheres têm ganhado mais espaço nos bastidores de cinema, no entanto, apesar do caminho trilhado, ainda continuam em segundo plano na indústria cinematográfica.
Como se materializa a desigualdade de género neste setor
Desigualdade Salarial
Uma eterna questão que perpetua a desigualdade de género é a questão salarial. Em fevereiro de 2021 duas produtoras portuguesas, Pandora da Cunha Telles (Ukbar) e Isabel Machado (C.R.I.M. Produções) subscreveram a Gender Equality Charter – Carta para a Igualdade de Género -, elaborada pelo Clube dos Produtores Europeus. Esta carta pretende chamar a atenção para a igualdade de género no setor do cinema e audiovisual, que reclama por igualdade salarial, melhores oportunidades de trabalho e diminuição de preconceitos.
De acordo com a CIG, e apesar da “participação feminina há muito [estar] presente quer no cinema e televisão, como em todas as áreas da comunicação e das artes”, os seus desempenhos acabam por ficar “muito invisibilizados, o que provoca um significativo desconhecimento geral do seu valor, e presença, nas respetivas áreas”. E a “questão do gender pay gap é indissociável do fenómeno da segregação sexual do mercado, em particular a distribuição por ramo de atividade”.
Na indústria audiovisual, o facto de estar instituída uma diferenciação para aqueles que são os cargos para mulheres e para homens, aumentar desigualdade salarial e diferenciar as condições de trabalho, no estudo feito para o livro Women’s Cinema in Contemporary Portugal, Hillary Owen verificou que “os lugares típicos que as mulheres ocupam na indústria do cinema e TV, como edição, guarda-roupa, cabelo e maquilhagem e continuidade, têm sido subvalorizados, subestimados e obscurecidos”. Hillary acredita que para além deste motivo para uma diferença salarial, acrescenta a urgência de “políticas específicas para combater a desigualdade” e assim “apagar esta diferença”.
A verdade é que “por trás das câmaras, mulheres e homens têm diferentes práticas de trabalho, métodos de trabalho e histórias para contar” e este é o ponto da importância da igualdade de género, “assegurar a melhoria das condições de trabalho e amplificar a diversidade”.
Assédio Laboral
Nos últimos anos, o assédio laboral na indústria do cinema e do audiovisual têm ganho uma visibilidade muito importante, com o movimento #MeToo, que nasceu nos Estados Unidos, contra o assédio sexual no trabalho, e que pretende amplificar a voz das vítimas e prestar acolhimento.
Em abril de 2021, este tema saltou para a esfera mediática em Portugal com várias caras conhecidas a virem a público dizer que já tinham sofrido de assédio laboral e abuso de poder. No entanto, no nosso país há falta de apoio jurídico especializado às vítimas e também falta orientação e estudos sobre o tema.
Para Hillary Owen este é um dos temas mais prementes em contexto laboral, em todos os contextos e acontece como consequência da desigualdade salarial e de oportunidades. A investigadora acredita que “as mulheres geralmente são mais suscetíveis a ataques porque é um meio para aqueles que historicamente controlam recursos, progressão na carreira e oportunidades, para continuar impondo esse poder e mantendo o status quo sexista”, sublinhando que “a divisão sexista do trabalho, os recursos e as redes de poder que são mantidos pelo assédio permanecem assim e continuam a beneficiar grupos específicos e privilegiados de homens, as mulheres claramente não são, no entanto, o único grupo a sofrer a esse respeito, e as dificuldades claramente interseccionais relacionadas à raça, cor, status de minoria étnica, classe social, orientação sexual, status LGBTQ+ e deficiência também precisam ser levadas em consideração”.
Isso leva a outra questão que perpetua a desigualdade de género: a questão da liderança e dos cargos de decisão. Nos últimos anos, vários estudos, que analisaram a desigualdade de género nas profissões do cinema e audiovisual, têm mostrado que equipas lideradas por mulheres tendem a empregar mais mulheres e, por isso, a diminuir a disparidade de género no acesso ao mercado de trabalho.
De acordo com a CIG, é este fenómeno de segregação hierárquica silenciosa que dificulta e muitas vezes impede as mulheres de ascenderem a cargos de topo, designado “Telhados de Vidro”. Uma das principais motivações que levam a que aconteça são “as responsabilidades de cuidado e de afazeres domésticos, funções que socialmente continuam a ser atribuídas às mulheres”.
O que tem sido feito para mudar a realidade
Têm existido várias iniciativas que têm por objetivo promover a igualdade de género na indústria do Cinema e audiovisual em Portugal, como a Convocatória Aberta para Mulheres Cineastas Portuguesas, uma parceria entre a Academia Portuguesa de Cinema e a Netflix , ou o Festival Olhares do Mediterrâneo – Women’s Film Festival, um festival internacional cujo objetivo é promover a exibição de filmes feitos por mulheres cineastas da área do Mediterrâneo, ou o Porto Femme – Festival Internacional de Cinema, que tem por objetivo de promover os trabalhos artísticos realizados por mulheres.
No entanto, será que estas iniciativas de “discriminação positiva” fazem realmente diferença?
Segundo a CIG podem fazer a diferença, pois este tipo de desafios acabam por ser “incentivos encorajadores para se atingir uma concreta igualdade entre homens e mulheres”.
Hillary Owen assume que “de um modo geral, continua a ser mais difícil para as diretoras obter financiamento para filmes do que para os homens. Também é mais difícil para as mulheres conseguir financiamento para longas de ficção e projetar as suas próprias narrativas e visões criativas, do que para fazer documentários e/ou curtas que tendem a ser significativamente mais baratos”.
Grande parte da questão desta desigualdade e desta dificuldade em ultrapassar a barreira da diferenciação entre o investimento feito em obras criadas por homens e mulheres, assim como a subida de carreira dos mesmos nos locais de trabalho, está ainda fortemente associada à maternidade, uma questão ainda decisiva no mundo laboral.
Além disso, apesar de os estudos e os números mostrarem que a desigualdade com base no género é algo que existe e está bem presente na sociedade portuguesa, muitas mulheres têm dificuldade em percecioná-la. Para a CIG isto acontece porque “os estereótipos de género desde muito cedo são interiorizados e adotados como comportamentos ditos normais”.
Também existe a ideia de que para que se chegue à desejada igualdade não é necessário denunciar a desigualdade e isto tem levado várias mulheres com uma presença mediática significativa, que poderiam ter um papel importante na causa, muitas vezes a mascararem o facto de serem mulheres como se isso diminuísse o percurso profissional. Isto leva a um grau de desinteresse e alienamento dos indivíduos e das instituições, que se tem sentido no Portugal Contemporâneo.
No caso do cinema e do audiovisual, muitas medidas podem ser aplicadas para que seja possível atingir a paridade de género. A European Women’s Audiovisual Network, fundada em 2013, lista várias medidas que se podem aplicar nas diferentes áreas do setor, desde a formação ao desenvolvimento, da produção à distribuição e exibição.
É positivo considerar todas as alterações conseguidas nos últimos anos e os esforços para que as mesmas se mantenham e as condições laborais evoluam, apesar do muito que ainda há para fazer. Até lá, será sempre necessário lembrar neste dia que uma sociedade igualitária é uma sociedade mais justa.
O Dia Internacional das Mulheres celebra-se hoje, a 8 de março, em homenagem e agradecimento ao primeiro Dia das Mulheres, criado pelo Partido Socialista da América, a 20 de fevereiro de 1909, em Nova Iorque, como uma jornada de manifestação pela igualdade de direitos civis e em favor do voto feminino.