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Diogo Morgado

Entrevista. Diogo Morgado: “Esta coisa do ‘lá fora é que é’ está tudo na nossa cabeça”

Irregular, a terceira longa-metragem de Diogo Morgado, está em exibição nos cinemas portugueses

O filme Irregular, realizado por Pedro e Diogo Morgado, acabar de chegar às salas de cinema. Esta é a terceira longa-metragem realizada pelos irmãos, depois de Malapata e Solum.

Irregular conta a história de Gabriel, um homem que presencia o rapto da filha e percebe que esta foi substituída. Quando chega a casa e tenta avisar Patrícia, a sua mulher, depara-se com uma desconhecida no seu lugar. Assim, Gabriel vai tentar descobrir o que aconteceu e quem está por trás de toda esta história. O filme é protagonizado por nomes como Pedro Teixeira, Maria Botelho Moniz, Júlia Belard e Diogo Faria.

O Espalha-Factos esteve à conversa com o Diogo Morgado sobre este novo projeto no âmbito do cinema nacional.

Para começar, gostava de saber porquê este filme. De onde é que veio a ideia?

Essencialmente, veio do caminho que nós temos vindo a fazer. A primeira longa-metragem foi uma comédia, a segunda foi ficção científica. Estreámo-la agora no Japão, com o nome de Um Oitavo, porque ao que parece a palavra Solum, que era o título do filme, é um palavrão em japonês. Estreámos no Japão e muito nos orgulha, porque muito da proposta deste filme era a sua internacionalização, assim como o nosso país.

Neste, queríamos que o filme fosse um filme de atores e de argumento. Queríamos que a mecânica do argumento fosse em si um puzzle, algo que não fosse normal, que nos levasse numa direção e nos trouxesse para outro lado, e que nos dá voltinhas e voltinhas em que nós passamos mais de metade do filme na mesma perspectiva da personagem, a perceber o que é que se está a passar. Nessa medida é a história de alguém que tem a sua vida feliz e a quem de repente retiram absolutamente tudo. Pior do que isso, é-lhe colocada, no lugar da família dele, uma outra.

Porquê, porque razão, o que raio é que se está a passar, quem é que está envolvido nisto? De facto há pessoas envolvidas nisto, há uma história à volta do que aconteceu. E isso é o que nós vamos descobrir ao longo do filme. Nós queríamos um filme que fosse um murro emocional logo nos primeiros dez minutos, que nos pusesse muito rapidamente na pele da personagem. Depois no fim de o escrevermos pensámos “um título para este filme? Isto é tudo menos regular“. A narrativa não é linear, as personagens não são lineares e daí o título Irregular.

Este é um filme que deixa o espectador um pouco confuso. Não sabemos o que se está a passar de todo, tal e qual como a personagem. Também sentiste que os atores ficaram confusos quando leram o argumento?

O mais importante é perguntar se quando acabas o filme não o percebeste. Acho que isso é o mais importante. Que me digas que o filme é um puzzle, é confuso, é. Está escrito para ser dessa forma. No entanto, dos atores eu nunca tive esse feedback porque leram o argumento inteiro. Quando chegam ao fim tudo está abordado e tudo está explicado. Ou pelo menos tenciona estar dessa forma.

Irregular Diogo Morgado
Fotografia: Divulgação

E ficaram surpresos?

E ficaram surpresos. Perceberam e ficaram entusiasmados, pelo que foi um convite a que eles se sentissem envolvidos nesta mecânica de não mostrar e não revelar tudo imediatamente. E tens aqui pelo menos duas personagens que aparecem a achares que é uma coisa e de repente não podiam ser mais o oposto daquilo que tu achavas.

Estavas há pouco a falar sobre o facto de teres um filme que está agora a ser exibido no Japão. Tu próprio tens experiência na indústria internacional. Essa experiência ajudou-te, deu-te alguma inspiração para criar este filme?

Sim. A experiência sim. Eu posso dizer que a primeira vez que eu fui para os Estados Unidos não foi para trabalhar como ator, mas sim para estudar realização. E lembro-me perfeitamente de uma visita que nós fizemos na escola ao backlot da Universal, aos estúdios da Universal, e de ter visto a parede onde filmaram o primeiro Spider-Man. É a parede onde o Tobey Maguire aprendia a subir a paredes com os seus poderes.

E eu perguntei “mas é esta parede?” “É esta parede.” “Podemos ir lá?” “Podes, podes ir lá.” E eu cheguei ao pé da parede, toquei-lhe e pensei “isto é igual àquilo que se vende na Leroy Merlin“. Foi o pontífice máximo do fascínio a cair para uma realidade que está na nossa cabeça. Esta coisa do “lá fora é que é” está tudo na nossa cabeça. Se nós quisermos, nós fazemos isto. Eu acho que esse foi um dos momentos em que aquilo que tu perguntavas, sobre a passagem por trabalhar lá fora, se aplica. Neste caso foi a estudar, mas aplica-se a mesma coisa para os sets em que eu estive internacionalmente.

Uma pessoa pensa “é o set do CSI” e eu vou a ver e o placard é o mesmo, o tipo de madeira que usam é igual, onde é que muda? Na luz, claro. Na quantidade, porque há mais dinheiro. Embora que haja muita coisa que tenha a ver com o dinheiro, há muitas outras que não têm nada a ver com o dinheiro. E o exemplo disso está aqui. Tu tens aqui um filme que foi feito…

De forma independente.

Com o que eu gostava que fosse um décimo de qualquer filme subsidiado pelo Estado, qualquer filme português. Um décimo. E no entanto tu vês este filme ao lado de outros e não está assim tão aquém, do ponto de vista de produção. Portanto isso é eficiência da produção. É por o dinheiro no sítio certo do filme.

Irregular Diogo Morgado
Fotografia: Divulgação

Nesta nota, vi uma entrevista em que falavas sobre como este não é um género tão trabalhado no cinema português. Achas que o facto de teres conseguido fazer isto, de forma independente, pode abrir caminho para que este género seja mais visto no cinema português?

Mais do que este género, a nossa ideia, minha e do meu irmão, é que isto provoque os novos criadores, novos realizadores, novos argumentistas, os novos produtores a saírem de uma ideia errada de que precisas de um subsídio para concretizar as tuas ideias. Não vamos esconder que é difícil, não vamos esconder que é preciso muito foco e muita concentração, é preciso ter as coisas muito detalhadas para conseguir chegar a bom porto. Mas é possível. E portanto, como tu perguntas e bem, se abre para esse género? Abre para este e abre para milhares de géneros que estão à espera de oportunidade e que ainda não conseguiram ver a luz do dia. Nós queremos não só dinamizar uma relação com o público português mas queremos também que os novos criadores que apareçam encontrem nestas propostas formas de concretizarem os seus projetos que não sejam só subsídios.

Então achas que há espaço para mais projetos deste género.

Eu acho que há. Eu acho que há criadores e sem sombra de dúvida há gente talentosíssima a escrever e a realizar. Saem todos os dias das escolas de cinema para o desemprego. A verdade é esta. Se não houver mercado e se o cinema independente não for uma alternativa estes criadores nunca vão expressar a sua criatividade. E eu acredito piamente que o argumento candidato ao Oscar esteja algures  à espera de oportunidade. A nossa conversa não é só uma conversa para o público, é uma conversa também para os criadores que não têm ainda oportunidade de ver as suas coisas a serem criadas.

E acreditas que vão conseguir mobilizar o público com este filme?

Isso aí já é com os cartomantes e com as Mayas, tarólogos e astrólogos. Não consigo adivinhar o futuro.

Há sempre um objetivo.

Se não acreditasse que era possível nunca o teríamos feito. Agora se vai acontecer de facto, não faço ideia. Gostava muito.

Irregular Diogo Morgado
Fotografia: Divulgação

Ouvi-te dizer que este filme já está pronto desde março do ano passado.

Sim. A primeira data de estreia foi quando a pandemia se deu, em março. Por isso estamos há um ano e tal, quase dois anos, há espera da altura certa para que o filme chegue às salas de cinema. Porque foi para as salas de cinema que foi concebido. O filme teve propostas para avançar noutros formatos e nós recusámos. Dolorosamente, porque como deves calcular é um investimento privado que está aqui e está empatado. Dependemos de que o filme siga uma carreira normal para conseguirmos continuar esta batalha. Portanto foi uma proposta tentadora que nós declinámos porque nós acreditamos mesmo que a nossa conversa é com o público do cinema português.

E este espaço de tempo que tiveram, e tendo em conta todo o mal que trouxe, trouxe algum benefício?

Eu acho que se há benefício é porque há aqui paralelismos com o que aconteceu da pandemia. Acho que a personagem principal é um tipo a quem de repente foi retirado tudo e nós todos vivemos isso. De uma maneira ou outra tínhamos a nossa vida mais ou menos organizada e esta pandemia apanhou-nos de surpresa a todos. Há quem ainda esteja a recuperar do aconteceu, houve gente que perdeu pessoas, entes queridos. E nessa medida é muito mais pertinente a saga deste Gabriel do que seria se tivesse estreado antes da pandemia. O desespero e aquilo que ele nos leva a fazer, por exemplo, é muito mais pertinente hoje. O que o Gabriel faz é produto do desespero dele de querer recuperar a família. Está muito mais próximo daquilo que todos nós vivemos com a pandemia.

Talvez toque mais o público dessa forma.

Eu julgo que sim.

Este foi o argumento que mais demoraram a escrever. Foi por causa da narrativa não ser linear?

É. É um puzzle. Queríamos que o argumento fosse isso. O filme anterior por exemplo, de ficção científica, o Solum, a proposta era claramente uma proposta de produção. Um filme gravado em cinco ilhas, arquipélago dos Açores, ficção científica; tudo o que fosse componente visual era a primazia do filme. Não era uma viagem emocional. Este não. Este é um filme de atores, para atores e para que o espectador participe. E o participar é tentar resolver o puzzle com que nós nos deparamos. Como nós queríamos fazer isso, desde o primeiro minuto que o argumento tinha de ser muito bem mastigadinho. E assim foi. Daí que demorou mais tempo.

Alguns dos atores comentaram que tiveram reuniões contigo e que tudo estava muito bem pensado, ao pormenor, que tinhas muitas indicações. Foi também por isso?

Sim, claro, claro.

E tu e o teu irmão, inspiram-se em alguém? Algum realizador, algum escritor? 

Há inspirações para nós. Por exemplo, os meus realizadores favoritos de todos os tempos são o Robert Zemechis e o David Lynch. O do meu irmão é o Christopher Nolan. Todas essas referências, quem vir os nossos filmes encontra-as. O Solum tinha muita coisa do estilo e do mood do Interstellar, por exemplo, do Christopher Nolan.

Fotografia: Divulgação

Neste momento, têm planos ou projetos para fazerem mais longas metragens? Ou estás mais dedicado a outros tipos de projeto?

Temos em cima da mesa projetos que vão passar para a fase seguinte dependendo de como este correr. Porque se é cinema independente depende da ida do público ao cinema. Se as pessoas corresponderem e forem ao cinema, eu julgo que este trabalho vai continuar. Se não, torna-se cada vez mais difícil.

Quanto ao processo de gravação, qual foi a cena que demorou mais tempo a gravar?

As duas cenas que demoraram mais tempo a gravar foram a cena do… espera.

Okay, não pode haver spoilers. Por alto, sem entrar em detalhes.

Então vamos dizer assim. As cenas que demoraram mais tempo a gravar foram as cenas que envolviam sempre dois atores em lados opostos das suas verdades.

Tem então a ver com o facto de a narrativa não ser linear.

Exatamente. Tem a ver com o facto de tu teres mil e uma formas de dizer a mesma coisa. Portanto demorou mais tempo porque como não é linear, não é regular, tu tinhas takes em que uns atores iam mais num sentido, outros iam noutro sentido, e tudo era válido. Tu ficavas ali a explorar ao máximo o que os atores estavam a dar de propostas para uma mesma cena. Como a coisa não era tão, lá está, linear, não havia uma verdade. Havia várias. E todas elas válidas. Essas cenas demoraram muito mais tempo porque todos os takes eram interessantes. E depois a edição então mais tempo ainda, porque muitas vezes tínhamos de um e de outro coisas completamente diferentes que não tinham nada a ver.

Este deve ter sido um filme em que a edição deve ter demorado bastante tempo. Foi um processo complicado?

Foi. Porque o filme não é linear. E tudo tem de estar harmonioso, uma coisa a seguir à outra, ter uma cadência, um tempo próprio.