Se embarcarmos no Terreiro do Paço, em Lisboa, e fizermos a travessia de cerca de vinte minutos pelas águas do Tejo, encontramos um local que se distingue de qualquer outro em torno da Área Metropolitana da capital portuguesa.
Se a primeira impressão que alguém pode ter do Barreiro quando o barco atraca no cais é a de que este é um local frio e distante perdido entre Almada e Setúbal, ao mesmo tempo próximo e longe de Lisboa, rapidamente irá perceber como primeiras impressões podem estar erradas. Por trás do nevoeiro industrial que parece submergir a cidade, esconde-se um local caloroso, com uma efervescente cena musical, cuja história já se faz estender.
Iniciando-se com a presença da música nas associações no período da ditadura, a cena cultural do Barreiro tem-se vindo a reescrever ao longo do tempo, indo buscar influências à cena lisboeta inicialmente mas começando a criar, eventualmente, a sua própria identidade. Nos anos 80, o ar industrial da cidade viu nascer grupos de post-punk como Soberano Veste Chanel ou Rocócó. Na década seguinte, a música de dança passava a imiscuir-se nas discotecas barreirenses, mas seria no rock que o Barreiro encontraria a sua identidade principal, com bandas como Gasoleene ou Unladylike Scream a preparem o caminho para o que se viria a viver na década de 2000. Seria nesse ano que viria a surgir a editora-associação-produtora Hey, Pachuco! que, ao longo dos próximos 21 anos – 15 desses como associação -, se estabeleceria como um dos principais (se não, o principal) foco do rock barreirense.
Albergando uma estética DIY, a Hey, Pachuco! albergou projetos como Nicotine’s Orchestra, The Sullens ou Fast Eddie & The Riverside Monkeys, e foi a produtora do festival Barreiro Rocks entre 2000 e 2019, um dos mais acarinhados e aclamados festivais dedicados ao rock em Portugal. Passados dois anos e uma pandemia que abrandou os planos da associação, a Hey, Pachuco! regressou no último sábado (20) à organização de eventos, com o Chamem os Amigos Fest, um novo festival que pretende “trazer o espírito jovem de regresso à editora, mas sem esquecer de onde viemos“, assim nos conta Guilherme Firmino, membro da associação e da organização e vocalista e guitarrista dos Humana Taranja, que subiu ao palco improvisado pelo grupo de jovens responsáveis pela organização do evento na Sociedade Democrática União Barreirense – Os Franceses.
O Espalha-Factos esteve presente neste novo festival e apresenta o relato de um final de tarde e início de noite que marca uma passagem de testemunho para o rock barreirense.
Walter Walter
Uma das características principais do Barreiro Rocks era o seu ambiente quase familiar. Não no sentido único de que era apropriado para miúdos e graúdos – certamente o era -, mas no sentido de que quem visitava o festival parecia que se conhecia, fosse da cidade ou não. Havia uma facilidade na interação e no ambiente que se amplificava no conforto em palco das bandas que ali tocavam.

Quando os Walter Walter, banda da “casa”, subiram ao palco para abrir o evento pelas 18h30, o mesmo espírito de comunhão fez-se sentir e ouvir pelo espaço d’Os Franceses. Rapidamente, o trio constituído por André Amado (voz e guitarra), David Yala (baixo e coros) e Afonso Ferreira (bateria e coros), que se estreava ao vivo neste final de tarde, colocou o público que se havia juntado à sua volta em sintonia, encantando-os com o seu garage rock a fazer lembrar bandas como Arctic Monkeys ou Yeah Yeah Yeahs, mas tingido das harmonias pop do indie rock português pós-Capitão Fausto. Guitarra ao leme, linhas de baixo pomposas e uma bateria intensa, quase punk, marca as primeiras faixas do grupo ao vivo: ‘Rosa’, ‘Tentei Dizer‘ e o seu single de estreia, ‘Verão‘, piscando o olho ao seu disco de estreia que está em preparação.
Na reta final do concerto, o espírito familiar que se fazia sentir pelo ar d’Os Franceses foi mostrado em palco, quando os Walter Walter receberam alguns amigos para tocar uma espécie de medley a seguir a ‘Verão’. Apresentando um espírito mais punk, a fazer lembrar Sunflowers ou Cave Story, este momento culminaria em mais uma nova cantiga e, a fechar o concerto, uma cover intensa e celebratória de ‘I Wanna Be Your Dog‘, faixa seminal dos The Stooges, acompanhado das perguntas que verdadeiramente interessam: “Quem veste as meias antes das calças“?
Apolo 70

Se suspeitas houvesse que o calor familiar que se fazia sentir no espaço d’Os Franceses se devia ao facto dos Walter Walter serem uma banda da casa – saídos da fornada do Programa Jovens Músicos da Hey, Pachuco! -, quando os Apolo 70 subiram a palco elas foram dissipadas, pois a receção foi praticamente igual. A energia e o humor estavam em altas na sala e o punk dos Apolo 70 manteve o ritmo, atraindo certamente quem na rua passava.
Ainda sem nenhum single lançado oficialmente – mas com uma sessão ao vivo disponível no Youtube – o punk dos Apolo 70 é eclético e ensurdecedor. São notórias várias influências: há a componente de post-hardcore dos Linda Martini a surgir nas estruturas da faixas, mas há um toque de post-punk e krautrock no baixo e bateria, com esta última a soar crua e a ser o motor principal da banda ao vivo. Em momentos até puxando a toques de Franz Ferdinand para meter o público a dançar, os Apolo 70 foram uma surpresa para os barreirenses e abriram o apetite para a hora de jantar que se avizinhava, pois era necessário repor as energia depois deste show extremamente energético.
Humana Taranja

Ainda as pizzas e as cervejas estavam a terminar de ser consumidas quando os primeiros acordes do concerto dos Humana Taranja se fizeram ecoar pel’Os Franceses. A expectativa de ouvir o quinteto formado por Guilherme Firmino (voz, guitarra), David Yala Rodrigues (guitarra), Marta Inverno (baixo), Filipa Tulipa (teclado, voz) e Afonso Ferreira (bateria) era alta na sala, sendo o grupo o nome mais cotado desta nova era para a Hey, Pachuco!. Ainda a recuperar da atuação no Festival Emergente no passado mês de outubro, a capacidade criativa dos Humana Taranja, que em disco já não engana – a banda já conta com um EP e está a preparar o disco de estreia que, “em princípio, sairá na primavera do próximo ano”, como nos revelou Guilherme – em palco, ganha uma nova dimensão.
A componente pop que se pode observar em faixas, como a psicadélica melodia ‘Fado Tropical‘, é aumentada ao vivo, soando mais energética e pujante. Perto do final do concerto, as influências ecléticas do grupo, que passam pelo jazz, post-punk e rock alternativo, fazem-se progressivamente notar. Primeiro, a épica ‘Destino’ – ao vivo, há aqui potencial para uma espécie de ‘Wake Up’ português – abre os apetites para indicar que o fim está próximo. Ouve-se um segundo rearranjo de uma faixa antiga do grupo, seguindo-se uma explosão sonora que faz lembrar Sonic Youth, antes do caos total se declarar entre pedidos para um ‘Copo de Vinho‘, faixa do primeiro EP do grupo, para fechar o concerto.
Há uma qualidade camaleónica nos Humana Taranja ao vivo que, aliada à sua química – nota-se a amizade entre os membros neste ambiente que claramente lhes é familiar -, permite que este tipo de coisas aconteçam com naturalidade. Não há momentos iguais e, seguramente, nenhum concerto do grupo se espera que seja igual ao anterior. Por aqui, as expectativas foram cumpridas, com o carinho do público a fazer-se sentir antes do último concerto da noite.
Thee O.B.’s

A fechar a noite n’Os Franceses subiu ao palco os Thee O.B.’s, uma espécie de supergrupo da Hey, Pachuco! que, em palco e disco, se identificam apenas por números. O punk rock dos Thee O.B.’s é energético, mas é infundido com um toque de blues, tanto no trabalho de guitarra, como na entrega do vocalista que podemos dizer que é suave. Na harmonia, uma agressividade e emoção bem rock’n’roll, os Thee O.B.’s fazem a plateia sentir-se verdadeiramente em casa, e esta responde. Passando por faixas do seu disco III e por algumas que o grupo diz serem novas – mas “que já confundem” -, o concerto do Thee O.B.’s termina com um anúncio por entre os cânticos clássicos de “só mais uma!“: “vemo-nos em breve, que isto vai acontecer mais vezes“.
A promessa fica no ar, e Guilherme confirmamo-nos que pretendem ter mais edições do festival no futuro e que esperam que vão além do showcase que foi este primeiro momento do Chamem os Amigos Fest. Pelo meio da promessa, existe outra que se confirma pelo ar d’Os Franceses – a presença de uma banda experiente como os Thee O.B.’s depois de três grupos de jovens, revela outra coisa. O que se assistiu no passado sábado foi um momento em que se abraçou o futuro da Hey, Pachuco!, enquanto o seu passado foi celebrado. O testemunho do rock barreirense foi passado para uma nova geração, pronta a levar a Hey, Pachuco! e o rock do Barreiro a novas alturas. Pelo ar, passa a confirmação de que esse futuro está em boas mãos.