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Distopia - Tiago Afonso
Fotografia: Festival Porto/Post/Doc/Divulgação

Crítica. ‘Distopia’ é a análise certeira das transformações do espaço urbano

Depois de vencer o prémio de melhor filme português no Doclisboa, o documentário de Tiago Afonso chega à cidade onde foi filmado.

Depois do sucesso no Doclisboa, Distopia, de Tiago Afonso, chega agora ao Porto, enquadrado na competição Cinema Falado da oitava edição do Porto/Post/Doc. O filme pretende chegar a quem mora na cidade, em duas exibições conjuntas com a curta-metragem Hotel Royal, de Salomé Lamas.

Segundo definição do dicionário, distopia é a “ideia ou descrição de um país, de uma sociedade ou de uma realidade imaginários em que tudo está organizado de uma forma opressiva, assustadora ou totalitária, por oposição à utopia”. Neste objeto documental, Tiago Afonso mostra-nos a mudança no tecido social da cidade do Porto entre 2007 e 2020, acompanhando em específico as demolições, expulsões e realojamentos que afetaram a comunidade cigana do Bacelo, a população do Bairro do Aleixo e os vendedores da Feira da Vandoma.

Tiago Afonso quer um espectador com pensamento crítico e voz ativa. Isso é evidente logo com a introdução que acompanha definições importantes dos momentos que vamos assistir, especificamente dedicadas ao termo gentrificação, “usado pela primeira vez por Ruth Glass em 1964 ao analisar as transformações sociais do espaço urbano londrino. Designa o processo de apropriação da cidade – em particular, do centro – pelas classes altas, a gentry, esta substituiu gradualmente as classes trabalhadoras que viviam nos bairros centrais”. Tem como ponto principal de partida a ideia de que “a gentrificação opõe-se ao direito à cidade teorizado por Henri Lefebvre em 1968”. O resto da definição chega-nos à medida que o filme evolui.

Esta procura da aproximação ao espectador vai ainda mais longe e ouvimos no início – e no fim – da longa-metragem uma gravação áudio em que Tiago conversa com a filha, que, à pergunta do pai “um pobre, o que é que quer dizer?”, responde perentoriamente que é “uma pessoa sem dinheiro e sem casa”. É essa a grande mensagem deste projeto que junta magistralmente imagens capturadas durante aproximadamente 13 anos e a vandalização do direito à habitação e o tratamento dado aos mais pobres nos processos de realojamento e readaptação.

Três casos que são apenas um exemplo do que se passa nos centros urbanos

O realizador não teve que procurar muito para encontrar três casos emblemáticos para representar esta problemática. O primeiro, e um dos mais violentos no passado recente da cidade do Porto, é o da destruição da comunidade cigana do Bacelo, no meio de um processo de negociação e realojamento, durante a presidência de Rui Rio.

Segue-se o processo com maior impacto mediático: o da demolição das torres do bairro do Aleixo. Em entrevista ao Público, Tiago Afonso assume que considera a demolição “com as desculpas mais esfarrapadas à face da terra”.

Distopia - Tiago Afonso
Fotografia: Festival Porto/Post/Doc/Divulgação

Por último, destaca-se um processo que passou mais despercebido, até porque acabou por coincidir a certa altura com o eclodir da pandemia de Covid-19. Trata-se do da mudança de sítio da feira da Vandoma, de um local central e já com história na cidade, para uma avenida mais afastada e que nunca permitiu voltar a encontrar a essência da feira de velharias que é sinónimo de sustento para tantas pessoas.

Por contar com um processo criativo longo e ter sido filmado durante mais de uma década, Distopia consegue expressar e fazer a ponte entre os três acontecimentos e, acima de tudo, mostrar-nos que não há finais felizes nestas histórias. Os processos negociais são demorados e, em grande parte, ineficazes para os habitantes que, independentemente das condições que tenham, têm a experiência de as viver em comunidades que são completamente destruídas em realojamentos que dividem as pessoas e as colocam na periferia. Muitas dessas pessoas deixam de conseguir encontrar qualidade de vida sem essa ligação e essa vida em conjunto.

Não há artifícios neste documentário, é a realidade nua e crua, a verdade de quem passa por este tipo de processo e é constantemente negligenciado e marginalizado em qualquer debate do espaço público. Há também um trabalho de proximidade notório. Tiago Afonso não é apenas mais um que fotógrafo ou realizador para estas comunidades, que se vêm muitas vezes assoberbadas por este mediatismo dos processos que nem sempre é capaz de as favorecer. Com tantos anos de convivência, passa a fazer parte delas e nota-se essa proximidade em vários pontos do trabalho, sendo claramente uma mais-valia para um projeto documental.

Distopia - Tiago Afonso
Fotografia: Festival Porto/Post/Doc/Divulgação

Sai-se da sala de cinema a entender o porquê do sucesso que Distopia tem feito nos festivais de cinema e a insistência que o diretor de filmes do Porto teve neste processo, prolongado por tantos anos. É urgente pensar estes temas e trazê-los aos grandes centros urbanos, para que estas ações, em espaços que são de todos, não se tornem banais.

Ainda no âmbito do festival, o documentário vai voltar a ser exibido no Passos Manuel no próximo sábado (27). No mesmo dia, vai saber-se o impacto que o trabalho terá no júri do festival, na cerimónia de entrega de prémios.

Distopia - Tiago Afonso
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