A estrear-se no papel de realizadora, Mónica Franco filmou Ljubomir entre 2010 e 2020, em vários locais de Portugal e também num regresso emotivo a Sarajevo, cidade natal do chef. O filme-documentário Ljubomir Stanisic – Coração na Boca estava já disponibilizado na OPTO, em formato de minissérie, e chegou agora ao grande ecrã este domingo (21), numa sessão especial do festival Porto Post Doc.
Ljubomir Stanisic – Coração na Boca não é um filme apenas sobre um dos mais famosos chefes de cozinha em Portugal, nem sobre o seu trajeto na televisão. Esta é uma viagem de introspeção ao homem, refugiado e emigrante, que subiu a pulso e ultrapassou várias quedas e golpes.
Estando casada há mais de 12 anos com Ljubo, e sendo uma jornalista especializada em gastronomia, Mónica Franco consegue chegar assim mais longe e, acima de tudo, captar a mudança que ocorre em qualquer pessoa durante dez anos. Esta característica, aqui particularmente visível, é o ponto mais positivo de toda a construção desta história.
A ideia inicial não seria de filmar durante tantos anos. No entanto, a realizadora assume durante o filme: “o atraso, que tanto me atormentou todos estes anos, afinal trouxe-nos sorte. Em dez anos, muito mudou. O mundo mudou, nós – eu e o Ljubo – mudámos”. Esse anúncio veio para enquadrar que “o filme acabou onde tinha que acabar: com a festa do anúncio da estrela Michelin”, que o restaurante 100 Maneiras conquistou no final de 2020.
Dez anos de filmagens de alguém tão próximo dão uma quantidade indescritível de material. Essa dificuldade fica percetível no projeto, algo que se justifica também por ser a primeira longa-metragem da jornalista. Fica a sensação de que há uma tentativa de mostrar toda a história, não abdicando de nada para encurtar a longa-metragem, que se torna a determinada altura um pouco confuso, com saltos constantes no tempo e no espaço.
A meio do filme temos o que poderia dar um outro por si só – o regresso de Ljubomir a Sarajevo, onde mergulha nas memórias da infância e nos traumas pessoais e históricos que ultrapassou durante o cerco de Sarajevo, o mais longo da história da guerra moderna, entre 1992 e 1996. Com lugar aproximadamente a meio da obra documental, ajuda-nos a perceber a base em que se desenvolveu uma personalidade que se distinguiu sempre de forma tão marcante no panorama nacional.
Mas nem tudo são más memórias neste embarque pelo passado, que Mónica Franco assume ter sido difícil de convencer. As partilhas com os amigos de infância, com direito a uma visita à escola primária, assim como os passeios pelo mercado da cidade e convivência com os locais, fazem desta viagem um misto de sofrimento e de esperança. Fica a mensagem de que, no final, quer ficando na terra natal, quer tentando outras oportunidades noutros lugares, estes amigos sobreviveram e continuam lá, com a mesma ligação e a mesma alegria de partilhar as vitórias dos últimos anos.
Após 100 minutos de longa-metragem, ficamos com a sensação de que algumas partes poderiam ter sido descartadas e que só fazem do trabalho um produto mais comercial e televisivo. Todos têm algo de bom a dizer sobre Ljubo, quando poderíamos ficar apenas pelas imagens que já dão a perceção de ligação de proximidade que o chefe tem, principalmente com quem trabalha. Numa parte final, as imagens são misturadas com frases que caem quase como discurso motivacional e a mesma lógica de ideias é repetida várias vezes. É esta a grande fraqueza do produto. Tantos anos de produção levaram a alterações de caminho e de foco e não houve o cuidado de retirar momentos dispensáveis.
Ljubomir Stanisic – Coração na Boca quer passar tudo: a infância, o percurso profissional, os ataques da imprensa nos momentos mais negativos, o que é enquanto pai, o que é enquanto amigo e na parte final o que pretende ser no futuro. Aquim a casa no campo e as idas à pesca ganham especial destaque.
O arco da “personagem” Ljubo é notório entre o momento inicial, o regresso ao passado e os olhos no futuro, com uma divisão muito bem conseguida. Fica a ideia de um homem que evoluiu imenso durante estes anos, com o final a deixar em aberto “os caminhos que Ljubomir continuará a percorrer e que passam pela propriedade que tem com Mónica na serra da Grândola e pelo sonho de uma cozinha sustentável, nascida da terra”, completamente em contraponto com o momento inicial da carreira, em que assume que chegava a expulsar do seu restaurante em Cascais quem lhe dissesse ser vegetariano.
Ser um projeto feito por alguém tão próximo tem coisas boas e más. Chegamos de facto a um nível de intimidade e acompanhamos momentos que, de outra forma, seria difícil recriar ou alcançar, mas também vemos alguém a partir de um olhar apaixonado, que por vezes confunde o que realmente pode ou não interessar o espectador. “Esta não é uma obra documental cheia de verdades ou razões”, escreve a realizadora no final. “É um olhar. O meu sobre o meu marido. Não é certo nem errado. É só apaixonado. Por ele. Pela vida. Pelo sonho que representa a vida dele. E a esperança contida nela”, explica.
A fotografia do filme ficou a cargo de Abel Rosa e Pedro Fonseca, a montagem é de Márcia Costa e, no grafismo e animação gráfica, estiveram Mário Belém e Daniel Sardo. Depois da estreia ao grande público no Grande Auditório do Teatro Rivoli, Ljubomir Stanisic – Coração na Boca, trabalho que Mónica espera ser o primeiro de muitos outros, deverá seguir para o circuito internacional de festivais de cinema.