A Universidade Católica de Lisboa recebeu na quinta-feira (12) os responsáveis pela criação da primeira série portuguesa na Netflix, Glória. Pedro Lopes, criador e argumentista; Miguel Nunes (João Vidal) e Afonso Pimentel (Gonçalo) foram recebidos numa sala cheia de fãs para assistir à primeira das MCC Talks, conjunto de conferências organizadas pela instituição. Também estiveram presentes José Fragoso, diretor da RTP1, e José Amaral, manager diretor da SP e um dos produtores executivos da série.
O tema principal da conferência foi o impacto que a Netflix teve na produção de Glória. O investimento da plataforma streaming – nunca antes visto numa produção nacional – permitiu ter tempo suficiente para preparar tudo com calma, principalmente a reconstrução dos cenários, admitiu José Fragoso.
O financiamento da plataforma também possibilitou que o próprio elenco tivesse uma experiência diferente do que tivera até então. “Percebi de facto que a equipa era muito grande, uma máquina que tinha sido montada e uma estrutura que [se não fosse pela Netflix], não permitiria que a série tivesse este corpo tão sólido em termos de imagem, elenco e produção”, comentou Miguel Nunes. O ator confessou ainda que “nunca tinha trabalhado com jovens em produção tão eficientes e dedicados”.
Para Afonso Pimentel, trabalhar em ficção para esta plataforma causou-lhe alguma pressão acrescida. “Quando soube que era Netflix, obviamente [senti] o peso de perceber que tínhamos de fazer algo especial, por todos os motivos e mais alguns: primeiro, por ser Netflix; segundo, por ser o primeiro; e porque todos nós queríamos o óbvio, que era que não fosse o último”.
Apesar de não confirmar uma segunda temporada, Pedro Lopes já está concentrado nessa possibilidade. “Em Portugal, estamos em primeiro [lugar nos conteúdos mais vistos da Netflix] e no Luxemburgo estamos no top. A nível mundial estamos em 36.º, o que é muito bom para uma série que ainda não está a ter essa promoção internacional. Obviamente que neste momento já estou concentrado em preparar eventualmente um novo capítulo”.
A história desconhecida
A ideia de fazer uma série sobre a Guerra Fria surgiu, por um lado, de ter uma produção com “uma identidade portuguesa muito forte”. E porquê a RARET? Porque era “uma história desconhecida da maior parte dos portugueses. A RARET era um objeto estranho. Durante 45 anos funcionou como um posto retransmissor numa herdade com 200 hectares e 500 trabalhadores e pouca gente conhece e isso foi atrativo quando fizemos a proposta porque teria um grau de novidade muito grande”, avançou.
O próprio criador conheceu de perto a história do centro retransmissor desde pequeno. “Esta história chegou-me porque a minha família trabalhava na Radio e cresci a ouvir historias na RARET, da Rádio Moscovo e de outros pormenores que não tornei públicos nem falo na série”. O argumentista revelou que, apesar de as casas na série serem filmadas na Glória do Ribatejo, as instalações de rádio são as de Pegões. As gravações não se puderam fazer todas na RARET porque as próprias instalações estavam demasiado degradadas.
Por outro lado, o ângulo de abordagem da história deveria ser abrangente o suficiente para que fosse atrativo à audiência internacional. “Há um interesse bastante grande [do público] em histórias baseadas em factos reais. Esta época interessou-me muito, não só por ser uma série de época, mas também porque tem ecos na atualidade. Quando falamos na intromissão de determinados países nos atos eleitorais de outros ou em fake news”, por exemplo.
No entanto, a chave para que qualquer produção consiga singrar lá fora é ter sucesso primeiro no país de origem. “A nossa ficção só vai funcionar fora de Portugal se as pessoas em Portugal gostarem da nossa ficção. Não há nenhum país que consiga exportar ficção quando, localmente, as pessoas não gostam da ficção. A manager da Netflix dizia que isto pode ser o maior sucesso no resto do mundo, mas se falhar em Portugal, para nós falhou”, reforçou José Fragoso.
Um projeto pioneiro com alguns desafios
Regressemos ao início década de 2010, quando nasceu a RTP Play, “muito antes de alguém falar em streaming”, nas palavras de José Fragoso. Nessa época, muitos achavam que o canal público era “louco” por apostar em algo que “ninguém sabia bem o que era”. Anos passaram, os tempos mudaram e as plataformas surgiram. Hoje, o serviço público de televisou voltou a tornar-se pioneiro, afirma o direto de programas.
As discussões sobre fazer esta série já tinham começado há três anos, sendo “o primeiro projeto a ter a ambição” de se expandir para o streaming internacional. A ideia demorou algum tempo a tornar-se realidade devido à complexidade dos contratos. “O contrato desta série é o mais complexo que eu já vi e eu já tenho mais de trinta anos de televisão!”, exclamou, merecendo risos da plateia.
Já para José Amaral, Glória é a prova de que a economia dos media está em mudança. “Estamos a assistir a uma revolução. O desafio com a Netflix foi entendermos que os modelos de negócio que conhecíamos há 25 ou 2o anos estão a mudar. É isso que Glória representa, sendo pioneira em vários sentidos. É hora de apanharmos esta onda nova que está a acontecer. Podemos fazer uma coisa de cinco ou uma coisa de 500. É trabalharmos com os melhores e para os melhores. É tudo mais exigente, mas sabe bem”.
“Deixar a relva crescer”
Às discussões acerca de financiamento somaram-se os desafios de se gravar uma série durante a pandemia. “Nós gravámos numa altura em que precisávamos de documentos passados pela SP para circular pelo país”, recordou Afonso Pimentel.
Apesar das dificuldades e incertezas, a pandemia também deu “tempo para a relva crescer”. “O novo confinamento provocou um atraso e um arranque. Embora tivéssemos medo, porque as moedas continuavam a cair e projeto a andar, nós tínhamos muito mais condições. Contudo, essas condições eram quase virtuais porque, a qualquer momento, poderíamos ter de parar a produção e a hipótese de fazermos as cenas com mais calma podia desaparecer”, explicou Afonso Pimentel.
“Só se consegue ultrapassar tudo isso de forma heroica. Assim, mantivemos a calma e aproveitámos o tempo em que não pudemos arrancar com o projeto para fazer tudo o que poderia ser feito para que, quando tivéssemos mesmo de arrancar, o projeto estivesse o mais pronto possível. A direção de arte teve tempo de pegar numa ruína e reconstruir casas feitas nos anos 1950 pelos americanos. Houve tempo, literalmente, tempo para a relva crescer, porque a diretora de arte plantou a relva e, graças ao ‘bicho mau’ que foi a Covid, ganhámos um bocadinho de tempo extra durante o qual a relva cresceu”, concluiu.