Numa sessão totalmente esgotada, uma plateia aplaudiu de pé a família de Alcindo Monteiro, presente na Sala Manoel Oliveira do Cinema São Jorge. Miguel Dores, antropólogo e realizador do documentário que estreou este domingo (24) no Doclisboa, que só existiu com a ajuda de um plano de crowdfunding, sublinha: “não estamos a fazer um filme que seja um produto, isto é um documento”.
Enquadrada na secção Cinema de Urgência, a estreia de Alcindo era um dos pontos fortes da programação da 19.ª edição do Doclisboa. Geralmente em salas mais pequenas, que convidam à partilha de histórias e discussão, a secção que faz parte do festival desde 2012 teve pela primeira vez uma grande sessão de estreia. Vão ser ainda apresentados mais três filmes, programados por coletivos convidados da Colômbia (Cacerola), Hungria (FreeSZFE) e Portugal (União Audiovisual).
Miguel Dores agradeceu à família de Alcindo Monteiro “pela coragem com que olha para este caso” e lembrou: “nós não devíamos estar aqui todos reunidos, não devíamos ter feito este filme”. No entanto, o realizador revela que o grande objetivo vai ser sempre “prestar homenagem e lutar para que não volte a acontecer o que aconteceu”.
Em representação da família convidada para a estreia do documentário, o sobrinho procurou “parabenizar” a família: “não só por estar cá hoje, mas pela coragem que tiveram desde o triste acontecimento e pela postura que tomaram desde sempre”. Sobre a tragédia afirma ainda que acredita num “Portugal de amor”, apesar de todos os acontecimentos e lembra que é importante não isolar acontecimentos, pois “vivemos numa luta constante, uma luta pela aceitação, pelo fim do ódio e uma luta pelo amor”. Tal como Miguel Dores, relembra o que não devemos nunca esquecer: o que aconteceu Alcindo não deveria ter acontecido.
Na recente newsletter que escreveu para o Fumaça, o cineasta explica os pontos centrais da criação do documentário. Procurava o tema para a tese de mestrado em Antropologia, quando se viu confrontado com o episódio da entrevista de Mário Machado a Manuel Luís Goucha. “Vim a compreender mais tarde que aquela era uma das primeiras etapas de um período de higienização de figuras e discursos fascizantes, inserida num contexto mundial de recrudescimento de projetos conservadores e nacionalistas”, revela.
Nesse contexto, acabou por escolher a história de Alcindo Monteiro ao aceder a “uma revista organizada pela Frente Anti-Racista, em 1997, com uma compilação de recortes de jornal sobre o caso”. “Abrir esta revista foi o início de Alcindo”, acrescenta.
Alcindo Monteiro, o caso que não podemos esquecer
A 10 de junho de 1995, um grupo de nacionalistas portugueses saiu para o bairro alto num ato consertado de violência que consistia em espancar todas as pessoas negras que encontrasse pelo caminho. No total, e segundo os dados oficiais, foram dez vítimas, uma delas mortal.
Alcindo passava no local errado na hora errada e, na Rua Garrett, com pouco movimento, foi espancado violentamente e acabou por falecer no hospital. O processo judicial foi denominado “o caso Alcindo Monteiro” e foi a primeira vez que um crime de genocídio foi levado a tribunal em Portugal, tendo essa acusação em específico acabado por cair.
Na mesma newsletter, Miguel Dores sublinha que “Alcindo não se constrói como um close up em 17 jovens neonazis, mas como um grande plano sobre Portugal”. “A 25 anos de distância, no país com a mais longa tradição colonial, os conflitos raciais parecem não perder a sua plena atualidade – o caso da esquadra de Alfragide, do Bairro da Jamaica, do Giovanni, da Cláudia Simões, do Bruno Candé, do Danijoy –, são apenas exemplos de uma conta não saldada”, reflete.
O filme que só aconteceu com a ajuda dos outros
Alcindo, apoiado institucionalmente pela SOS Racismo, só foi possível graças ao projecto de crowdfunding que pedia dez mil euros de “forma a custear a finalização e pós-produção da longa-metragem, que deverá estrear-se em outubro”. Acabou por conseguir 12 337 euros e estrear num festival de cinema reconhecido em Portugal.
A trama é essencialmente um documento para uma noite que Portugal não deve esquecer. Construído a partir de imagens de arquivo da RTP e excertos de notícias da época, é resultado de uma pesquisa profunda que comprova a formação de Miguel Dores. O cineasta recebeu o apoio de Beatriz Carvalho na pesquisa e entrevistas e de André Mendes na montagem. A produtora Maus da Fita também é parte essencial do projeto.
Para melhor entendermos quem era Alcindo, e para uma maior aproximação ao caso, são utilizadas memórias de entes-queridos, sobretudo a partir de fotografias do jovem. No início há ainda o recurso a testemunho dos colegas que trabalhavam com o jovem há vários anos e que sustentam a figura humilde e trabalhadora.
Mas o documentário não se centra apenas neste caso, mas sim parte dele para um pensamento profundo do momento que vivíamos nos anos 90 e o que vivemos agora. Em Alcindo, Miguel Dores não se limita a contar uma história, mas a pensar sobre ela. É impossível ficar indiferente ao caminho que traçamos desde o trágico acontecimento até aquilo que pensamos poder vir a ser o nosso futuro.
A julgar pela reação da plateia que berrou de pé “racismo, fascismo, não passarão”, estamos no caminho certo. Mas Portugal não começa ou acaba naquela sala e é preciso pensar em tudo o que é urgente fazer para não voltarmos a dizer que já foi tarde demais.
Alcindo está em votação para o Prémio do Público do Doclisboa. Os vencedores da categoria vão ser conhecidos no próximo domingo (31), último dia de festival.