No final do segundo confinamento, o mercado livreiro perdeu cerca de 71% de receitas, devido à proibição da venda de livros, de acordo com a Associação Portuguesa de Editores e Livreiros [APEL]. Entre confinamentos e desconfinamentos, ficaram as editoras, que adiaram lançamentos de novos livros ou fizeram-nos online, sem o contacto com o leitor, tão importante para as vendas e para a sobrevivência das editoras mais pequenas.
O Dia Mundial do Escritor é celebrado esta quarta-feira (13). Para assinalar a data, o Espalha-Factos falou com três pequenas editoras que se mantiveram à superfície numa tempestade que durou quase dois anos e que agora parece amainar.
De poeta e de louco, todos temos um pouco
Numa pequena mesa de esplanada em frente à Igreja Santa Isabel, nas traseiras de Campo de Ourique, Nuno Moura enrola cuidadosamente um cigarro com os dedos. É escritor, apreciador de livros e cofundador da Douda Correria, uma pequena editora independente com “uma linha editorial tão ténue que quase não se vê” e que se resume apenas nisto: o próprio gosto – mas que publica, sobretudo, obras de poesia e teatro.
Nuno criou a editora em 2013, com Joana Bagulho, sua companheira à época, com o propósito de editar um dos seus livros: Canto Nono, uma unidade poética em três partes. “Já tinha o nome há anos na cabeça”, relata, sem que houvesse ainda projeto para batizar: Douda Correria, expressão retirada dos versos de Ângelo de Lima, “poeta louco“, contemporâneo de Pessoa na Revista Orpheu, e um dos “poetas de cabeceira” do autor. Do poeta, aliás, já tinham vindo os nomes para outros projetos: Mia Soave e Mariposa Azual, outras pequenas editoras que ajudou a fazer nascer.

Depois desse primeiro livro, com uma adesão surpreendente dada a pequena escala da publicação, seguiram-se outros. “Apareceram umas 70 pessoas na Casa do Alentejo e vendemos bastantes exemplares, depois ainda fizemos mais”, relembra, entre um golo e outro de café. “Ficámos com algum dinheiro de que não estávamos à espera – trocos, claro – e pensámos: porque é que não fazemos outro livro?”, acrescenta.
E assim foi. Com apenas oito anos de existência, contam com 156 títulos editados, entre eles textos dramáticos, banda desenhada, um livro de ilustrações e muita poesia, de autores nacionais e estrangeiros, novos e já estabelecidos. “Por alguma coisa [a editora] se chama Douda Correria”, brinca Nuno. As edições são contidas, na ordem dos 100 exemplares por edição – número que reduziu para a metade após o começo da pandemia – e apelam a um público fiel e conhecedor. “Como passámos do anonimato a um certo reconhecimento? Também não sei muito bem”, brinca.
A redução de produção, garante, foi uma precaução financeira, pois os autores continuaram a enviar obras ao mesmo ritmo intenso – e em que se refletem os temas do confinamento. Mas para uma pequena editora, que não aposta em promoção, as ocasiões de maior sucesso de vendas ocorrem no contacto direto com o público: em leituras e eventos de lançamento, sem os custos intermédios associados à venda em livrarias ou ao contacto com distribuidoras. Oportunidades que a pandemia afastou.
Pára-me de repente o pensamento/ Como se de repente sofreado / Na Douda Correria em que, levado, / Anda em busca da paz do esquecimento” – excerto de poema de Ângelo de Lima
No extinto bar Irreal, faziam-se leituras semanais com artistas convidados – poetas, músicos, bailarinos, coreógrafos -, a par dos eventos e lançamentos. “Houve ali uma movida em volta da Douda, criou-se um barulho. Passou de ouvido em ouvido – literalmente, porque muita gente ouviu ali leituras de textos da Douda. Aprendi muito cedo que isso é o que vende muitos livros. As pessoas compram por impulso, nem que seja por um poema que gostaram no livro”, explica Nuno. Foi o que ajudou a criar, no começo da editora, um sentimento de comunidade.
Dos tempos em que tinham a FNAC como distribuidora, nos idos anos de 2014 e 2015, Nuno não sente saudades. “As distribuidoras são um cancro. Pedem logo 55 ou 60% sobre o preço de venda de um livro. Se um livro custa 10 euros, a editora fica com 5,50 ou quatro euros“, menciona. O volume de vendas à época era certamente bem maior, mas para uma editora tão pequena, que só conta com a força braçal do fundador e da colega, Madalena Ávila, “ficava para a chatice”. Atualmente, contam com as livrarias independentes como porto seguro (como a Snob ou a Poesia Incompleta, em Lisboa, ou a Flâneur, no Porto).
Para “viver e pagar contas”, Nuno descreve-se como homem de sete ofícios, entre os quais leituras e dramaturgia. Nunca foi o objetivo da editora passar de projeto de paixão para meio de sustento. “Vende-se muito pouco” e almeja-se apenas o equilíbrio de vendas entre edições, “ganhar-se apenas o suficiente para editar outro livro”: uma obsessão que se tornou vocação. Com tanta “chatice” e sem anseio de lucro, o que justifica tantas edições num tão curto espaço de tempo?
“É o processo todo de fazer o livro. É isso que me dá mais prazer”, explica. Da conversa com o autor à edição do texto, até ver o livro materializar-se na gráfica e ficar impregnado com o cheiro da tinta, é no ato de trazer a obra para o mundo que Nuno Moura encontra o contentamento que o leva a seguir com o projeto. O respeito imenso pelo livro-objeto e a vontade de ser editor aprendeu com o falecido Vítor Silva Tavares, fundador da também extinta editora & Etc e editor do primeiro livro do autor.

“Comecei a acompanhar o Vítor nas idas às gráficas, onde aprendi muita coisa. Ele tinha sempre um cuidado extremo com as capas. E era tudo diferente, ele fazia aquilo em tipografia, havia provas, fotolitos… Era um processo muito moroso, muito cuidado, um trabalho manual com as máquinas“, recorda Nuno. Por isso, a Douda prima por publicar livros “bonitos de ver”, em que cada edição conta com uma capa, um projeto gráfico e um ilustrador próprios. “Se [o Vítor] fazia isso tudo, com todas as dificuldades que havia, porque é que eu não haveria de fazer?”, revela.
Um pequeno elefante de prata
Seja em Lisboa ou em Espinho, a nova poesia portuguesa espalha-se pelas mãos dos leitores e das pequenas editoras, como a Elefante Editores. Grande de nome, mas pequena de tamanho, assume-se como uma “micro editora” e não tem ambição de crescer mais. Fundada em 1997 por José Augusto Nunes Carneiro, a Elefante dedica-se à edição de poesia e à divulgação de novos autores.
Sentado em frente a uma grande estante de livros de poesia, o fundador conta que o nome da editora vem de uma memória antiga. Aos 15 anos, a avó deu-lhe um pequeno elefante de prata, que ele ainda “guarda religiosamente”, como conta em entrevista ao Espalha-Factos. Anos mais tarde, olhou para a sua coleção de elefantes e daí extraiu o nome para o projeto que estava a fundar. Ainda que o tamanho da editora não faça jus ao do enorme mamífero que lhe dá nome, a Elefante nasceu por “amor pela poesia, autores desconhecidos” e um desejo de lhes dar “uma primeira oportunidade”.

“Desde que tenhamos autores e que as pessoas gostem dos livros, é o importante”, diz. Sempre com uma dimensão micro, a editora nunca foi um meio de subsistência, mas sim fruto de uma grande paixão pela edição e pelos livros. A sede é na casa do fundador, todos os que colaboram o fazem pro bono – exceto os designers e as gráficas. Como “é impossível editar todos em papel” pelos custos associados, a Elefante edita alguns livros digitalmente e disponibiliza-os online no site, onde os leitores podem fazer o download gratuitamente, para que todos possam desfrutar da poesia, editada por puro prazer, como refere José.
“Editamos só o que gostamos, editamos por gostar de editar. Não estamos preocupados com dinheiro ou se o livro vai vender 300 ou 150 [cópias]. Essa é a liberdade de editar”, afirma o fundador. “A partir do momento em que pagámos a edição, já estou satisfeito. Aqui não buscamos o lucro”, acrescenta.
Anos antes de uma pandemia global ser sequer uma miragem, Carneiro conheceu Graça Guedes Vaz, utente num lar de idosos. Graça disse-lhe que tinha um conjunto de poemas que queria publicar, mas que, com o passar dos anos, tinha perdido. Com ajuda de contactos no Facebook, José encontrou os poemas numa disquete e surpreendeu-se com a qualidade dos poemas, perdidos durante tantos anos.
“Fizemos o lançamento no lar. Isso já foi muito bonito, mas o que foi mesmo lindo foi a cara dela quando eu lhe apresentei os primeiros dois exemplares [do livro]. Vocês deviam ter visto, a felicidade absoluta! Tive prejuízo com o livro, não vendi os exemplares necessários [para cobrir os custos], mas não faz mal. Ver a cara dela e a sua felicidade na sessão de autógrafos pagou o livro dez vezes”, recorda. Agora, desejam retomar este contacto que, afirma o fundador, não pode ser substituído pelas redes sociais.

A editora costuma vender cerca de 200 a 300 exemplares, essencialmente nas sessões de lançamento e nas tertúlias em que participa. Estes eventos, tão essenciais para a subsistência da editora, foram o que mais falta fez à Elefante durante a pandemia. Alguns destes eventos são feitos em colaboração com a União de Freguesia de Fânzeres e S. Pedro da Cova, no concelho de Gondomar.
Com a junta local, a Elefante participa no concurso de poesia da freguesia, que todos os anos premeia um vencedor. Para assinalar os 30 anos do concurso, editou uma antologia dos poemas premiados, com o apoio financeiro da junta, cujo lançamento teve de ser feito no Facebook, por causa da pandemia. É este contacto próximo com os leitores, que tanto gosto e vida dá à editora, que a Covid-19 roubou.
“Já fizemos o lançamento do prémio de poesia deste ano presencialmente com o autor, uma pessoa a declamar poemas e um momento musical contratado pela junta”, conta o editor. Agora que o país está a desconfinar, a Elefante quer “voltar à estrada” e também relançar os livros que, durante as fases mais restritivas da pandemia, foram divulgados online. “[Este contacto] faz-nos falta e acho que as pessoas também precisam disso. Mesmo que não sejam autores consagrados, gostam de os conhecer. Se leu o livro, o estar à frente do autor, pedir-lhe um autógrafo e conversar com ele cria uma outra relação com o livro. Acho que isso é fundamental”, reflete.
Saltar barreiras, crises e vírus
A aproximação entre o leitor e o livro também é fundamental para a Alfarroba Edições (na qual uma redatora do Espalha-Factos tem um título publicado). Já com 11 anos de atividade, a editora dedica-se principalmente à edição de livros infantis, com 90% do catálogo direcionado para a infância, explica Andreia Salgueiro, cofundadora e editora. A Alfarroba faz a divulgação de livros e sessões com autores em escolas e instituições. Este contacto entre as crianças, pais, autores e livros é extremamente importante, diz Andreia. “Os mais vendidos são os livros em que há mais aproximação entre o autor e o leitor”, adianta.
Apesar de serem uma equipa pequena, a fundadora considera que isso é uma força, porque aproxima a Alfarroba dos leitores, nomeadamente em eventos como a Feira do Livro de Lisboa (FLL). “Ao estar três semanas atrás de uma banca, eu sei que tipo de livros [o leitor] gosta e permite-me falar com eles. A FLL é a única em que as editoras podem falar com os leitores. E, se as grandes editoras põem vendedores, as pequenas editoras precisam de lá estar e mostrar o porquê do livro ser interessante. Isso é um ganho para nós e para o leitor, que tem uma visão muito diferente do que se fosse um vendedor”, explica.

Foi justamente este contacto enriquecedor, tanto para quem lê, como para quem edita, que faltou durante os meses de confinamento. Especialmente durante o primeiro, os envios de textos aumentaram drasticamente. “Foi a loucura”, revela a fundadora. Ao contrário da Elefante Editores, a Alfarroba não procura ativamente novos autores – trata-se de uma estrutura robusta profissionalizada.
Foi o isolamento das pessoas que motivou este aumento. “O que me faz mais feliz são os autores que fazem a manutenção do nosso catálogo, que crescem connosco e que vamos crescendo com eles”, revela.
Ao contrário de “nichos” como a poesia, a literatura infantil é mais rentável economicamente. Durante a pandemia, a internet foi um recurso muito usado para comprar livros, algo que tornou as vendas favoráveis para a editora. “Os últimos dois anos, apesar do contexto, foram anos que nos correram muito bem. Para já, estávamos preparados para o online. Depois, o que perdemos mais foram as atividades, mas conseguimos equilibrar com a venda direta [no site]. No segundo confinamento, já sabíamos o que aí vinha. É como uma onda em que mergulhamos e sabemos quando vir à tona. Desta vez, só não sabíamos quando iríamos à tona”, explicita.
Passados os tempos em que contavam histórias nas redes sociais, a Alfarroba tem esperança no futuro desconfinado. “Saltámos barreiras, crises e vírus. Acreditamos que vai tudo correr bem”, menciona Andreia Salgueiro.
Desconfinamento: que futuro para as pequenas editoras?
Após a crise de 2008, o mercado livreiro em Portugal sofreu duras perdas. No final de 2011, o mercado somava uma perda acumulada de 25% de receita, segundo dados da Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL). Só em fevereiro de 2020 é que o mercado português conseguiu recuperar estas perdas na totalidade – no mês anterior ao primeiro confinamento, que iria mudar tudo.
A contração no valor de vendas atingiu os 78%. Até ao final de 2020, o mercado conseguiu recuperar, estabilizando numa perda total de 17% de receitas no ano. Mas com um novo confinamento, logo em janeiro, e com o Governo a decretar a interdição total de venda de livros presencial, o setor voltou a registar quebras na casa dos 70%. Entre grandes grupos editoriais, livreiros e pequenos editores independentes – que o vice-presidente da APEL, Pedro Sobral, assevera não estabelecerem uma relação de competição, mas de complementaridade -, ninguém saiu vencedor.
“Se, por um lado, os pequenos livreiros e os pequenos editores poderão ter visto agravar a sua dificuldade em colocar os seus livros no mercado e em angariar clientes [em consequência da pandemia], também é verdade que, por terem uma pequena estrutura, têm menos dificuldade na adaptação às novas realidades e uma maior capacidade e rapidez em adaptarem-se às necessidades comunidade em que se inserem”, garante Pedro Sobral.
As vendas online dispararam durante a pandemia. No entanto, esse crescimento não foi suficiente para catapultar o formato de venda a ponto de suplantar o presencial – como acontece, por exemplo, na Bélgica, em que 56% das vendas de livros já são feitas online. Para enfrentar o pior, o Estado disponibilizou apoios às editoras e ao mercado livreiro, mas estes “foram de tal forma importantes, que nem nos lembramos de quais foram”, troça o vice-presidente da APEL. No primeiro confinamento, o valor fixou-se nos 600 mil euros para todo o setor e, no segundo, em 270 mil em bolsas de criação literária e 300 mil no programa de aquisição de livros a pequenas e médias livrarias independentes para a Rede Nacional de Bibliotecas Públicas.
Desde princípio que a APEL foi crítica em relação a estes apoios. Pedro Sobral considera que, com uma fatia tão pequena, não há condições para discutir o que seria um bom uso desse financiamento, mas é certo que deve começar pela base. Afinal, Portugal é um dos países da União Europeia com piores índices de leitura e de literacia, sublinha o vice-presidente. Os problemas são estruturais: rendimentos baixos das famílias, a ideia de que o livro é caro e uma falta de cultivo da leitura desde cedo.
O que é preciso criar para o futuro? “Para já, começar a construir uma estratégia de como é que a sociedade portuguesa pode encontrar na leitura uma ferramenta natural de trabalho”, propõe a APEL. “O que o Estado deve fazer é criar condições estruturais para que a médio e longo prazo os índices de leitura e literacia se aproximem da média europeia e que a esmagadora maioria dos portugueses, independentemente das suas restrições orçamentais e da sua situação socioeconómica, possa aceder à leitura”, defende.

Para os pequenos editores, há sinais positivos. “Todos os anos há novos editores no mercado e nem todos começam grandes. A maior parte até são projetos pessoais e [empresas] unipessoais”, diz Pedro Sobral. Na Feira do Livro de Lisboa, organizada pela APEL em parceria com a Câmara Municipal, houve 13 novas pequenas editoras presentes em 2020 e 24 novas editoras na edição de 2021 – que correu “extraordinariamente bem“, em clima de reabertura, e suplantou o volume de negócios da Feira de 2019. Já na Feira do Livro do Porto, que opera em moldes diferentes, organizados pela Câmara, as grandes editoras ficam de fora.
No entanto, dentro da liga dos pequenos, as opiniões dividem-se acerca dos apoios. Com um consenso: nos moldes atuais, não funcionam. Para Nuno Moura, ter uma pequena editora passa pela independência e não espera, nem deseja, ajudas do Estado nem do mercado. “[As grandes empresas] têm as suas próprias edições para defender. O grande negócio é esse, eles dominam tudo, desde a produção do livro até à entrega“, diz. “Faz parte das pequenas editoras serem a pessoa ou as pessoas que as dirigem. Têm a sua personalidade”, acrescenta.
Andreia Salgueiro, da Alfarroba Edições, considera que, mais útil do que distribuir apoios avulso, seria conceber financiamento público que apoiasse projetos específicos. “Nós não queremos subsídios, queremos que nos ajudem a criar”, afirma. Já José Augusto Carneiro propõe uma solução mais criativa. “Se as editoras de poesia recebessem 5% do dinheiro gasto em rotundas, éramos mais felizes e as pessoas eram mais felizes, de certeza“, brinca. “Valia a pena também pensar que, se calhar, a poesia também dá alguns votos”, finaliza.