A Cordoaria Nacional foi palco, na noite de dia 30 de setembro, da apresentação da nova grelha da RTP2 ao público e à imprensa. A programação conta com novidades para o público juvenil e novas produções nacionais no campo da ficção e do documentário, além da exibição de filmes portugueses, gravações de espetáculos ao vivo e o regresso das Magazines habituais.
O letreiro iluminado a néon denuncia o local de imediato. Em letras gordas, lê-se: “Ai Weiwei, Lisboa”, mas a hora não pertence ao artista plástico. Os convidados que vão chegando formam uma fila comprida e sinuosa, rumo à porta de entrada. Por cima das suas cabeças, paira a grande instalação artística de Weiwei que, por estes dias, oculta a fachada do edifício: uma estrutura de metal delicada, semelhante a centenas de bicicletas amontoadas, a que o letreiro em frente confere um tom avermelhado. Foi neste ambiente que se conheceram as novas apostas do canal dois.
São destaques a estreia de Cassandra, série protagonizada por Isabel Abreu e inspirada no texto teatral do mesmo nome, e a estreia do telefilme Maluda, biopic da pintora portuguesa com realização de Jorge Paixão da Costa. Já A Série conta com “estrelas da RTP1, SIC e TVI, todas juntas numa produção da Dois“, como exclama Teresa Paixão, a diretora do canal, do púlpito do evento.
“[A RTP2] não quer ser um bunker” dirigido a um público restrito, “mas uma ponte”, afirma no discurso. A diretora frisa que “a Dois é um canal para a classe média, para pessoas comuns“, e afasta a ideia de “elitismo” que prevalece sobre o canal. “Temos uma ausência total de formato e, apesar de sermos livres de preconceito, não nos falta pudor”, diz. Fica a dica de que elasticidade não significa quebra de missão – ou de espécie.
Ficção nacional compensa quebra do ano passado
A produção de Cassandra, com estreia na RTP2, é uma das grandes apostas do canal para a nova grelha. A série é composta por sete episódios e protagonizada por Isabel Abreu, que interpreta Cassandra, uma voz profética que apresenta sete visões para Portugal. A história é baseada na peça de teatro original do mesmo nome, com adaptação de autores como Tiago Rodrigues, e conta com um elenco de luxo.
Também em destaque está A Série, um título que se autoexplica para uma proposta arrojada. Para que não haja dúvidas nem confusões, Teresa Paixão esclarece: “É uma série sobre três tipos que estão desempregados e veem o anúncio para uma série para a RTP. Então resolvem convencê-los a ficar com a série deles e todos os dias arranjam uma vedeta. Como a Dois não tem vedetas, tivemos de ir buscar as vedetas aos outros”, explica, entre risos, ao Espalha-Factos.
O cinema não é esquecido do menu e todos os sábado serão dia de cinema português (e em português) na dois a partir do arranque da nova grelha. O grande destaque da noite vai para Vitalina Varela, o filme multipremiado de Pedro Costa baseado na história verídica da própria Vitalina e interpretado pela atriz cabo-verdiana. Todos os filmes de autor exibidos são coproduções com o Instituto do Cinema e Audiovisual.
O telefilme Maluda é uma biografia da artista portuguesa, protagonizado por Margarida Moreira no papel de Maluda e com realização de Jorge Paixão da Costa. A pintora das janelas de Lisboa é uma figura incontornável da pintura e da cultura portuguesa, que vai ser retratada no filme na relação com grandes personalidades da época e com a transformação histórica do país. Vai ser explorada ainda a rutura amorosa com a mulher que amava, um amor que o 25 de abril, com poucos sinais de possível transparência para a relação, não soube resgatar.
“Independência” é o mote da noite e as produções nacionais não se esgotam na ficção: “48,7% produções da RTP são em português“, destaca Teresa Paixão. “Na Dois o número é maior por causa dos desenhos animados dobrados”, cujos dobradores “merecem mais reconhecimento”, frisa. As quotas de programação em português do canal estão tabeladas em 50% de produções originalmente em língua portuguesa, mas o seu incumprimento no ano passado, com 44,2% de programas originais na língua nacional, foi causa suficiente para uma multa da Entidade Reguladora para a Comunicação (ERC) ao canal.
Scroll é a nova proposta para o público juvenil
Outra das grandes novidades da grelha é o talk-show Scroll, apresentado por Diogo Faro e Djay Bee (Beatriz Tavares), que se trata de uma série de 14 episódios, que já estreou em setembro. A aposta no público juvenil por parte da Dois não é inédita, mas também não é presença regular. O programa procura trazer a debate as questões que inquietam a Geração Z: saúde mental, crise climática, identidade de género, entre outras.
O que veio primeiro: a vontade de fazer uma proposta juvenil ou a ideia concreta de fazer o Scroll? Nem o ovo, nem a galinha: a equipa debateu longamente até aprimorar a proposta do novo formato, recorda Teresa Paixão ao Espalha-Factos. O objetivo era “debater temas que interessam às pessoas” e “ouvir toda a gente”, criando um veículo de informação para “a geração perdida”, que descreve como aquela que não vê televisão, por força da idade.
As manhãs e tardes da RTP2 vão permanecer povoadas pelo fiel ZigZag, ao qual regressam programas como os Exploradores da Natureza e Radar XS, para os mais pequenos. Vai chegar ainda um novo talk-show infantil, Falar para o Boneco, com produção portuguesa, bem como a estreia de uma nova série, DuArte, uma peça de arte, para ensinar as crianças a apreciá-la.
Magazines novas e recicladas, documentários em alta
As Magazines nacionais são o sustento da estatística dos 48,7% de produções originais em português no canal, entre produções próprias e de parceiros externos. Regressam Visita Guiada, Biosfera, A arte da cura, Nada será como Dante e Sociedade civil, o resistente. Teresa Paixão brinca com a colega, que ouve da audiência: “Se alguém fizer as contas de quantas pessoas já foram ao Sociedade Civil, já são mais que as que foram aos programas da Fátima Campos Ferreira”.
Há, no entanto, três novidades: Portuguese Soul, Só Joga Quem Quizzer e Jantar Indiscreto – todas produções nacionais, em português e com o selo RTP. “Uma programação portuguesa só com nomes em inglês”, troça Teresa Paixão.
A lógica para os documentários é a mesma: produções próprias ou de parceiros, já estreados no cinema ou pensados para a televisão – este ano, abundam. No País de Alice, Lyon de Castro, Prazer Camaradas, António Coimbra de Matos (sobre o próprio, com Raquel Varela a entrevistar o famoso psicanalista português) e um documentário dedicado a Natália Correia, com o mesmo nome, são alguns dos destaques.
Bunker ou Ponte?
“Quando se fala de teatro e bailado, somos os únicos que os exibem em canal aberto, o que não nos dá alegria nenhuma”, aponta a diretora do canal. Na dança, a exibição do espetáculo gravado Amar Amália, da Companhia Portuguesa de Bailado Contemporâneo, é destaque, ao lado de um concerto dos Bate Fado e da ópera de Ana Seara, Até que a morte nos separe.
Mas ser um oásis no deserto também tem os seus dissabores, mesmo quando a missão é fazer serviço público. A pergunta está na ponta da língua: o canal faz o suficiente para afastar o rótulo de elitismo? “Tem sido feito um grande esforço. Acho que essa é uma ideia feita – e alimentada”, sublinha Teresa Paixão.
“[Quando contamos] a história da medicina, da luz artificial, que toda a gente tem em casa, não é nada de transcendente. Mas criou-se essa ideia [de elitismo], essa ideia agarrou-se à pele das pessoas – e elas até o dizem como um elogio! ‘Vocês são um canal de nicho, um oásis’. Mas nós não somos isso”, assegura a diretora.
Do teto da Cordoaria, pende uma serpente gigante, feita de armação e tecido. É parte da exposição de Ai Weiwei, cenário que envolve o palco da RTP2 para o evento. Por baixo dela, o último discurso da noite encerra a apresentação e faz cumprir o mote da nova grelha: “ninguém se mede aos palmos, mas às palmas”.