O cantor João Couto é natural de Vila Nova de Gaia e foi o vencedor da sexta edição dos Ídolos. O músico português lançou esta sexta-feira (1) lança o segundo álbum, Boa Sorte. Em conversa com o Espalha-Factos, João Couto explica o conceito do projeto e como que é foi desenvolvido.
Podemos começar logo pelas perguntas que verdadeiramente interessam: qual é o teu rissol favorito?
O meu rissol favorito… Eu sou muito básico, é o rissol de carne. Mas há uns rissóis que às vezes a minha mãe frita, que é uma vizinha que faz, que é com frango e ervas aromáticas e é muito bom. Eu tenho uma regra com rissóis: sou muito a favor que rissóis que não sejam de carne têm que estar bem identificados. Têm de ter aquelas cristas, aquela forma, porque nada me dói mais do que olhar para um rissol que eu acho que é de carne e trincar e é de camarão. Não tenho nada contra os rissóis de camarão, agora ao menos identifiquem. Mas todos os rissóis são bem-vindos na minha festa.
Assim sendo, prometo que não há mais perguntas sobre comida: qual dirias ser a tua massa do meio-dia?
A minha massa do meio-dia é massa de atum com molho arrabbiata – que é basicamente com conservas de atum e aquilo leva pimentos vermelhos, tomate, pimentão doce, aquelas coisas clássicas, mas ponho ali sempre um bocado de tabasco (eu sou viciado em tabasco). Essa é a minha massa do meio-dia. Mas a coisa bonita da massa do meio-dia é que nunca é igual para ninguém. O meu top 3 é essa massa que acabei de descrever, gosto muito também de spaghetti gamberetti, ou aquela spaghetti aglio e olio.
Gosto das minhas massas picantes, essa é a cena. Outra que também gosto é, claro, esparguete à bolonhesa, que é se calhar a mais icónica. Por isso é que, na altura de fazer o videoclipe… aliás, eu até posso dizer como é que fiz no videoclipe: no vídeo, foi esparguete que eu fiz no dia anterior, trouxe aqueles boiões de tomate e manjericão do Pingo Doce e pedi à minha avó para fazer almôndegas no dia anterior à filmagem. A minha avó faz as melhores almôndegas do mundo.
Quando estavas no Ídolos, tinhas de ir frequentemente para Lisboa. Já foi há algum tempo, mas como é que comparas essa experiência, em que estavas basicamente em Lisboa, com aquilo que fazes agora? Que claro, é diferente em si, porque uma coisa é estares nos Ídolos, outra coisa é estares a fazer música, mas o contacto com as próprias pessoas nesse mundo, no mundo da música, acaba por ser diferente?
A questão é: eu quase só vou a Lisboa por motivos de promoção e de contactos, porque a verdade é que grande parte da televisão e do entretenimento e de todo o universo promocional está em Lisboa e, no caso da música portuguesa, está tudo muito concentrado em Lisboa. As grandes editoras estão em Lisboa, não tens propriamente um escritório desses grandes no Porto, se bem que evidentemente há muitas editoras independentes aqui. Mas lá está, aquilo que nós chamamos de “a indústria da música”, esse bicho-papão, está em Lisboa.
A coisa fixe da música é que dá muito bem para separar a parte criativa e a parte promocional. Uma coisa de que eu nunca abdiquei desde o momento em que saí dos Ídolos foi que toda a parte criativa, toda a parte que fosse efetivamente música, seja criar, compor, gravar, fiz de tudo para que não tivesse que sair da minha zona.
A parte que é tua, por assim dizer.
Exato. A verdade é que no Norte, primeiro, felizmente tenho um espaço em casa onde escrevo as canções e trabalho nelas, e claro que as coisas são muito mais sinceras e muito mais enraizadas por eu também estar no sítio onde moro. O sítio onde cresci. Por outro lado, há músicos e artistas incrivelmente talentosos no Porto e eu nunca quis abdicar dessa característica na minha música – a de trabalhar, sempre que possível, com pessoas do norte.
E a verdade é que os melhores estúdios de gravação em Portugal estão cada vez mais concentrados no Norte. Eu, por exemplo, gravei o primeiro álbum no Groovewood, que é um estúdio ali perto do cais de Gaia. Recentemente abriu um estúdio em Campanhã, o Arda – o meu disco novo foi masterizado lá. Está a tornar-se assim num hub artístico e acho que se vai tornar num dos estúdios mais entusiasmantes em Portugal, se é que já não o é. E mesmo os estúdios pessoais – o meu novo álbum foi gravado todo no estúdio pessoal do meu produtor, que é o Pedro Pode. Há todo um talento e um génio por parte do Pedro em criar um espaço em que ele consegue, à maneira dele, sacar o melhor nele e o melhor nas pessoas com quem ele trabalha.
E, enfim, cria-se uma boa distância. A partir do momento em que a música está escrita, está gravada, a matéria-prima está feita e sabe a norte e é norte, aí é que eu sei que tenho que partilhá-la com o resto do mundo.
Claramente, sorte é o tema deste novo álbum. Nas quatro canções que saíram antes do lançamento [a 1 de outubro], tu dizes a palavra sorte 12 vezes. De onde é que vem isto? De onde surge a sorte para este álbum?
Houve uma altura, mal o primeiro disco acabou, o Carta Aberta, em que eu comecei logo a escrever coisas e sentia que as coisas que estava a escrever estavam a ser uma extensão desse disco e não estavam a ir a um sítio particularmente novo ou entusiasmante. Eu gostava das melodias e de frases de que me lembrava às vezes, mas havia constantemente a sensação de que faltava qualquer coisa.
A minha vida deu entretanto uma grande volta. A nível pessoal mudei bastante e a nível de carreira também. Deixei de trabalhar com a editora e com a agência com as quais trabalhava, toda a estrutura que eu tinha ganho no primeiro disco, perdi-a.
Voltei à estaca zero, e isso aconteceu mais ou menos na altura após o Festival da Canção, que foi uma altura muito curta, mas muito intensa. Cheguei ao final desse processo bastante exausto, bastante bloqueado e sem grande inspiração. No meio daquela derrota, aquelas conversas todas que temos com os amigos, as de “ressabianço”, sabes? Eles respondem sempre “ah, não tiveste sorte”. Estava sempre a surgir esta palavra. Sorte, sorte, sorte.
No mundo artístico deve ser ainda mais comum.
Sim. Depois tens aquelas conversas do “ah, se fosses mais assim” ou “se fosses não sei quê” e aquelas suposições constantes que, lá está, é a tal coisa que eu descrevo na canção ‘Boa Sorte’, o tentar justificar os meus shortcomings com circunstâncias ou coincidências. “Não foi o ano certo”, por exemplo, era uma desculpa que surgia muito. A Covid-19 veio aumentar esse sentimento ainda mais, no sentido em que toda a gente passou por uma coisa tão avassaladora e tão aleatória que surge malta com teorias da conspiração que quer à força toda fazer sentido disto tudo – “não, isto não pode ser aleatório”. Nós tentamos sempre justificar as coisas nas circunstâncias ou na sorte e no azar.
Depois deste período, a palavra sorte foi aparecendo muito naturalmente nas minhas músicas. A palavra “aposta” também. Havia sempre esta ideia de risco.
Isso é uma ideia de superstição?
Sim, talvez. Eu tinha de jogar a minha sorte. Desta vez, sentia que, se viesse a fazer um segundo disco – e fiz -, seria a começar do zero. Ia arriscar, só que sem estrutura. As pessoas que se mantiveram comigo, a minha banda, a malta que trabalhava comigo em parte visual, toda a parte criativa ficou praticamente intacta. Eu tinha de repensar a forma de atacar isto. As músicas surgiram com uma outra naturalidade.
Olha, o caso dos amigos [single ‘Os Meus Amigos’]. Essa música surgiu muito naturalmente, porque estava a conviver muito com amigos meus que, como eu, são de uma área artística qualquer também e, malta freelancer em especial, passam por picos de muito trabalho e picos de muito pouco trabalho de forma cíclica. Estás um bocado às ondas.
Era o que estava a acontecer comigo na altura, em 2019 – houve o Festival da Canção e logo a seguir, um momento completamente a seco. Nessa altura, os meus amigos estavam a começar a sair do país, alguns a sair do distrito, a ficarem cada vez menos disponíveis, a terem horários cada vez menos compatíveis e eu estava, numa quarta-feira, a tentar, a rezar, para que uma música me saísse naquele dia, mas depois ia para o Instagram e estava um bro qualquer com quem andei no secundário de férias nas Caraíbas, e eu tipo em Perosinho.
Honestamente, o que são as Caraíbas perto de Perosinho?
Eu ficava com a sensação de “eu estou a conduzir em contramão”. Só que as redes sociais também fazem isso, de exibir o melhor que há na vida dos outros e, por isso, sentes que não consegues acompanhar as pessoas que segues e admiras. Depois, as próprias conversas com a família, com os mais velhos, por exemplo, os meus pais nos 20 e tais anos já estavam casados e eu estou nos meus 20 e tais e nem sequer penso nisso.
Há muita comparação. Ficas com a sensação de que és pequeno em comparação ao outros e se, por exemplo, vais a uma festa e as pessoas perguntam “então, está tudo bem?” e tu dizes “sim, está tudo”, mas pensas “não, eu preciso de falar com alguém”, mas não o fazes por te sentires embaraçado – isso foi um pouco o que inspirou ‘Os Meus Amigos’. E eu pensava “mas isto é sorte, isto é circunstância?”.
O tema da sorte chegou de forma muito vincada. E eu tenho muito esta coisa de obsessões esporádicas. Nesta altura, tive uma obsessão por snooker e bilhar. Por isso é que eu insisti que, na altura, aparecesse no videoclipe um grupo de amigos a jogar bilhar, a dar a ideia de que eles estão todos a jogar o jogo da vida e eu estou literalmente deitado no tabuleiro, eles continuam a jogar à minha volta.
E eu que não sou uma pessoa nada supersticiosa comecei a pensar: “E se eu começasse a entrar na brincadeira das superstições? Porque é que eu não ando com um trevo de quatro folhas comigo?”. Então desenhei aquela T-shirt que eu tenho usado em todos os vídeos, e vou a todas as atuações com ela, pareço uma personagem de banda desenhada.
Comecei a levar isso ao ponto de querer brincar com o assunto, porque nenhuma das minhas canções neste disco, mesmo o ‘Boa Sorte’, fala propriamente em superstições, brinca com essa ideia apenas. Nós usamos as superstições para fazer sentido das coisas, tentamos dar sentido às coincidências e a maneira que informam a nossa vida.
As músicas que saíram até agora são bastante relacionáveis para as outras pessoas. Mesmo sendo a tua experiência e uma coisa muito focada no mundo artístico, acaba também por tocar as pessoas que não estão nessa área, o que pode ter a ver com a incerteza do último ano.
A incerteza de 2020 influenciou imenso estas músicas novas. Eu tive o cuidado de, ao escrever as letras, não estar a ser específico demais ao ponto de, por exemplo, falar demasiado do mundo em que me movimentei durante 2018, o da indústria da música. Eu próprio, como ouvinte, sinto um turn-off imediato quando descubro ou percebo que músicas que estou a ouvir são sobre a indústria da música. É demasiado específico e nenhum ouvinte casual quer saber de dramas desses, a menos que esse ouvinte também conheça muito bem o meio e isso é um nicho minúsculo.
E é sempre diferente estares a cantar, enquanto ouvinte, uma música com a qual te relacionas. Cantar uma música em que a letra não te dá nada, estás ali só a cantar porque sim, enquanto que, quando a letra te diz algo, tu pensas: “sim, eu vou berrar isto”.
Sim, aliás, ‘Os Meus Amigos’, o facto de ter sido a primeira música que eu consegui descodificar, descobrir que “esta sim, é a primeira música do álbum”.
O grande desbloqueio que essa música fez foi a tal coisa de: quando temos um problema na nossa vida e temos alguma vergonha ou embaraço de confessar aos nossos amigos, quando pensamos “este assunto é demasiado específico” ou “estou a ser dramático” ou “isto só é um problema para mim e nunca foi para mais ninguém”, quando temos estas vozinhas na nossa cabeça a dizer essas coisas ficamos paralisados, mas se ganharmos um bocado de coragem e nos abrirmos aos outros e explicarmos porque é que estamos inseguros, podemos julgar que a resposta vai ser, por exemplo, rirem-se do assunto, fazerem-te chacota, mas na esmagadora maioria dos casos a resposta acaba por ser algo do género: “epá, aconteceu-me essa cena há dois anos também”.
Por isso na música ouve-se o coro a responder: “cada um na sua contramão”. A questão não é tu estares na contramão, todos estamos na nossa própria contramão. Todos temos problemas mega específicos mas conseguimos ultrapassá-los se confiarmos uns nos outros, nos amigos.
Certo. Voltando a perguntas menos formais e tendo em conta este forte tema da sorte: tens mais sorte no amor ou no jogo?
No amor, acho que sim. Eu sempre que vou a casinos corre mal. Quer dizer, nem é preciso casinos, nem sou gajo disso, fui para aí uma vez ou duas. É mais raspadinhas, correm-me sempre mal. O máximo que me acontece em raspadinhas é comprar uma de dois euros e ganhar dois euros. Eu sou a pessoa que, quando ganha esses dois euros, foge. Penso: “não houve prejuízo, ótimo”.
Definitivamente, tenho mais sorte no amor, na família, na amizade. O facto de todo o material do disco, seja música, vídeos, capas, ter trabalhado só com amigos foi o meu maior luxo como músico. Eu só trabalho com amigos, com malta com quem tenho completa confiança. Vejo muitos artistas que não é o caso e, por muito que sejam bem sucedidos, vejo-os muito inseguros. Neste aspeto, sou um privilegiado.
Um sortudo, por assim dizer.
Um sortudo.
Há umas semanas, deste uma entrevista em que dizias que, quando estavas a escrever a ‘Massa do Meio-Dia’, te inspiraste numa cena da série Community. Há mais alguma referência que tenha aumentado o leque de recomendações no álbum?
Existem várias referências cinematográficas. Algumas nós colocamos nos videoclipes, outras nas músicas. No videoclipe da ‘Massa do Meio-Dia’ há duas referências cinematográficas muito específicas.
Uma é ao Punch-Drunk Love (2002), do Paul Thomas Anderson, que é um dos meus filmes favoritos, também relacionado com uma pessoa insegura e constrangida que finalmente arrisca no amor, que é de certa forma o tema da ‘Massa do Meio-Dia’. Aquela imagem do Adam Sandler com o piano no início do filme chama-me muito a atenção. Para mim, o piano naquele filme é uma analogia ao que vai acontecer para a frente, que eu não quero “spoilar”, mas aconselho mesmo o filme.
E depois a cena final do videoclipe tem a referência mais óbvia do vídeo todo, que é do Say Anything (1989), do Cameron Crowe, também um filme muito importante para mim no ano passado. Quis que houvesse um shout-out a esse filme. Existem poucas cenas tão icónicas como a cena da boombox no Say Anything. Uma pessoa não pode pôr uma boombox na cabeça sem lembrar a imagem do John Cusack nesse filme.
E, claro, o Shrek 2. Óbvio. Clássico.
Neste mundo [artístico], tudo o que tu fazes tem sempre referências, umas mais óbvias e outras nem tanto.
Sim. No caso de Community, foi literalmente aquele diálogo numa cena. Eu estava muito preso à ideia [que transmite]. Todos os diálogos da série são super snappy e engraçados, mas uma das frases afetou-me particularmente naquele dia, que foi quando a Britta pergunta como é que eles vão explicar aquilo ao Troy e à Annie e o Jeff responde: “They’re part of the ‘adulthood starts at 30’ generation”. Eu fiquei só: “ei, ataca menos!”.
Ainda no outro dia vi uma cena parecida no Pôr-do-Sol. O personagem do Diogo Amaral a virar-se para o pai e dizer que “mal pode esperar por ter 35 anos para finalmente ser autónomo. Para fumar no quarto, ir à Madeira”.
O ‘Massa do Meio-Dia’ é um pouco isso. É aquele amigo que ainda vive aquela segunda adolescência e só sabe fazer aquela massa com atum. Toda a gente tem esse amigo. Alguns de nós somos esse amigo. E essa pessoa dizer: “Oh pá, que se lixe isto! Vamos fazer a coisa mais maluca que se pode fazer hoje, que é tentar ter uma vida segura”. Porque é de doidos estar sempre seguro na vida, é tão difícil.
Para a nossa geração, é.
Sim, nesta altura ainda mais. Mas sim, como podes imaginar, estive a ver séries e muitos filmes na quarentena. Quis muito que certas referências cinematográficas entrassem no disco e nos videoclipes.
O que é que podemos ainda esperar do Boa Sorte?
É o álbum mais João Couto que podia fazer nesta altura da minha vida. Junta muitas coisas que eu ouvi no ano passado e soa a uma pessoa num quarto cheio de instrumentos e cheio de tralha, a tentar fazer sentido de tudo.
Eu acabo por fazer algumas das músicas mais catchy e mais divertidas e mais pop que fiz na minha carreira, mas por outro lado também faço as músicas mais arriscadas e mais abrasivas, algumas desconfortavelmente sinceras. Isso foi uma coisa fixe de ter trabalhado com a malta com que trabalhei, especialmente o meu produtor, o Pedro. Houve sempre essa exigência: “Porque é que queres cantar esta música? Porquê esta letra? O que é que queres dizer com isto? Tens a certeza que esta música devia fazer parte do alinhamento?”. E senti-me mesmo exigente e sem medos.
Senti que não tinha de corresponder a nenhuma expectativa. Tinha de fazer uma coisa que eu gostaria de ouvir, simplesmente. E a verdade é que as minhas referências eram, na altura em que comecei a fazer este disco, outras. No meu primeiro disco, tive uma necessidade de citar as minhas influências mais clássicas, como o Rui Veloso e o Bruce Springsteen.
Mas cheguei a uma altura em que, sei lá… Para mim, foi muito mais importante o que estava a ser lançado no ano em que estava a escrever, o disco das HAIM, o Women In Music Pt. III, por exemplo. Discos como o último da Phoebe Bridgers, da Jessie Ware, dos Vampire Weekend. Principalmente os Vampire Weekend foram super influentes neste disco. E o Jack Antonoff nem se fala, com todos os álbuns que ele produziu.
Que homem. E que mulheres!
Sem dúvida. Toda a filosofia que ele tem no estúdio e na composição é muito inspiradora.
Segui religiosamente os conselhos que artistas como ele davam em entrevistas e sinto que consegui aplicá-los no Boa Sorte, tudo coisas que deviam ser mais a norma na música pop. Em nenhuma altura, quando nós estávamos em estúdio, estivemos preocupados com um “será que esta rádio vai tocar?”, “será que esta música é curta o suficiente?”, “será que o refrão chega cedo o suficiente?”. Não tivemos essa preocupação, tivemos antes a preocupação de “porque é que estamos a cantar isto?”, “qual é o propósito disto?”, “isto é sincero?”. Eu gostaria daquilo? Eu mudaria de estação, se isto começasse a tocar?
Houve muito a mentalidade de nunca querer ser bem-sucedido com uma coisa que não adoro. Essa, para mim, é uma regra de ouro. Eu não quero ser bem sucedido com uma coisa com com a qual não estou absolutamente apaixonado. Posso dizer que estou absolutamente apaixonado pelo meu álbum novo. Desde que o acabei que o tenho ouvido quase todos os dias, naquela coisa de “eu nem acredito que eu trabalhei nisto”.
Identifico-me muito com a pessoa que está lá. Desde que acabei o álbum que sinto que estou a entrar numa nova fase da minha vida – vai chegar uma fase em que não vou estar a usar trevos, vou estar a usar outra coisa qualquer. Talvez chapéus.
Quando eu ouço este disco, penso “estava num sítio fixe, ainda bem que fiz isto”. Tens tópicos mais leves, como no ‘Queimamos Tempo’, que é uma música sobre como até os momentos aborrecidos podem ser divertidos e memoráveis, se tiveres com a pessoa certa. Tens o ‘Tira-me Desta Festa’, sobre aquela ansiedade de estar numa festa em que só conheces literalmente uma pessoa. A ‘4 da Manhã’ é sobre uma noite que correu mal.
Vai a muitos sítios. Tem uma música disco, uma música com um quarteto de cordas, talvez a música mais rock que fiz até hoje e um interlúdio eletrónico também. Neste disco, a meio do processo, senti: “estou-me nas tintas, eu gosto disto, bora!”.
Talvez estejas também mais livre por estares a fazer isto com pessoas tuas. Não estás sujeito a uma grande editora, não tens essa pressão externa de fazer algo que seja tocável, consegues fazer algo mais pessoal, mais experimental.
Sim, não tenho a pressão para fazer algo tocável e vendável. Não que artistas não consigam fazer coisas pessoais numa editora grande. No meu caso, obviamente sou um artista pop e, acima de tudo, cresci a ouvir Queen e ABBA, faço de forma instintiva coisas catchy e melodiosas, porque é o que me é natural. Eu quero ser os ABBA de Perosinho! Para mim, o maior elogio que me podem dar é dizerem-me que estiveram com a minha música presa na cabeça a semana toda, mesmo que não gostem da música.
Curiosamente, isso aconteceu-me com a ‘Canção Só’ durante imenso tempo.
É a mesma coisa que me dizerem: “bom trabalho, fizeste bem”. Para mim, a música pop é uma festa para a qual está toda a gente convidada – e, para mim, má pop é pop em que só pode entrar meia dúzia de pessoas. Não és rico o suficiente, não és fixe o suficiente para entrar aqui. Quando eu ouço a ‘Dancing Queen’, eu penso: “isto é uma festa para a qual está toda a gente convidada”.
Essa a minha missão, quando eu faço uma canção pop. Será que está toda a gente incluída? Será que eu estou a dizer a alguém “tu não podes entrar aqui”? A partir do momento em que há essa falta de pretensão e abertura numa canção, especialmente na pop, fazes magia.
Há algo muito nobre em [uma música] ter essa capacidade, de convidar toda a gente, ser uma festa, ser catchy. No Boa Sorte, eu pude exercitar várias vertentes da pop que eu gosto, a mais rock, a mais indie, a mais disco, a mais clássica. De alguma maneira, mexer em todas e fazer com que o disco tenha uma narrativa.
Quero mesmo que as pessoas sintam que isto é um disco que começa numa festa. Aliás, o disco começa com barulho, literalmente de uma festa de amigos meus, que eu gravei com o telemóvel, e acaba com a pessoa sozinha no quarto a finalmente fazer aquela chamada que já devia ter feito há muito tempo. Tu segues essa pessoa e, a certo ponto, és essa pessoa.
Apesar de todas as circunstâncias que podiam ter impedido [o álbum] de ser gravado, a pandemia especialmente, chegamos a porto seguro e fizemos o disco que sempre quis fazer. O álbum podia ter sido lançado a meio de 2020, se calhar, mas por outro lado penso: “ainda bem que foi assim”. Pude dar a conhecer quatro músicas antes, com calma, e essas músicas são, cada uma, um vértice do quadrado que é este disco.
Se as pessoas gostaram de alguma dessas quatro músicas, vão encontrar qualquer coisa de que gostam no álbum e, quem sabe, encontrar a favorita lá no meio. É a coisa pela qual estou mais entusiasmado, saber as favoritas, que aspetos do álbum chamaram mais à atenção das pessoas.