Shang-Chi é o mais recente herói a ser apresentado pela Marvel Studios. Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis, dirigido por Destin Cretton, traz ao público um lado mais místico do Universo Cinemático da Marvel e funciona como um exercício de desconstrução de estereótipos asiáticos, primando pelo incrível desenvolvimento das personagens.
*O texto que se segue contém spoilers de Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis*
O filme começa por contar a história de Xu Wenwu (Tony Leung), o antagonista, através do formato de retrospetiva. Há milhares de anos, Wenwu descobriu artefactos mágicos capazes de conceder poderes místicos e imortalidade a quem os usasse: os Dez Anéis. Na posse dos mesmos, o vilão cria a Ten Rings, uma organização clandestina e exército, que usa para derrubar governos e conquistar terras ao longo dos tempos.
Ansiando por mais poder, o personagem de Tony Leung procura a mítica vila de Ta Lo, onde encontra alguém que o iria fazer abdicar dessa demanda: Ying Li (Fala Chen), a guardiã da vila e sua futura mulher. Os cidadãos de Ta Lo rejeitam a paixão de ambos, o que os obriga a abandonar a vila, a voltar para a China e a perseguir uma nova vida juntos. Tempos depois, têm dois filhos: Shang-Chi (Simu Liu), o protagonista, e Xialing (Meng’er Zhang).
É a morte de Ying Li às mãos de um clã de inimigos de Wenwu que causa toda a problemática do filme. Wenwu reergue-se como líder dos Ten Rings e promete vingança. Inconsciente de que a sua fúria e desejo de vingança o estavam a cegar, submete o filho a um treino intensivo de artes marciais durante toda a infância.
Revoltado com a tirania e métodos sangrentos do pai, o rapaz foge para a América, onde vive durante vários anos sob um outro nome, com o intuito de se manter indetetável pelo pai. Só após os eventos de Vingadores: Endgame é que Wenwu encontra o filho e o força a enfrentar os traumas do seu passado.
Desenvolvimento das personagens como prioridade
Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis marca posição como um dos melhores filmes de origem da Marvel logo pelo protagonista. É um homem modesto, calmo e ponderado, que não partilha da arrogância de algumas outras personagens principais do mesmo Universo. Tony Stark, Stephen Strange, Carol Denvers e Thor são apenas alguns dos heróis cujos traços de personalidade convergem. Egocêntricos, excessivamente confiantes, por vezes impulsivos e irresponsáveis – são aspetos que não vemos em Shang-Chi, o que nos traz mais diversidade e acaba por ser uma lufada de ar fresco. Contudo, o protagonista não é o único a brilhar no próprio projeto.
Um dos grandes destaques da longa-metragem é o pai de Shang-Chi. Tony Leung confere a Wenwu toda uma complexidade que permite ao espectador compreender as motivações do personagem e até a identificar-se com ele. A atuação do astro de cinema de Hong Kong é demasiado boa para terminar em apenas um projeto. Ainda que o antagonista tenha sofrido um final fatídico, sabemos que viveu durante milhares de anos, algo que poderia muito bem ser explorado numa série na Disney+.
A presença feminina no filme é forte e variada, na medida em que o desenvolvimento e exploração da história de cada uma é completamente distinto. A química entre Shang-Chi e Katy (Awkwafina), a melhor amiga, é contagiante, frenética e desprovida de qualquer romantismo, o que só por si é mais um passo para a inovação e diversidade criativa em filmes de super-heróis, onde a maioria dos protagonistas tem um interesse amoroso. Katy serve essencialmente como alívio cómico e como meio de representação do público. Sim, podemos dizer que Awkwafina se interpreta a ela mesma neste papel. Que mais podemos nós querer?
Já Ying Li tem todo o desenvolvimento mostrado por meio de narração e retrospetivas, o que a faz diferir dos restantes personagens. O seu talento para as artes marciais, os poderes que possui, a dedicação pela família e a sua história, embora trágica, aproximam a personagem do público de uma maneira especial. Após a sua morte, continuamos a ver mais do legado de Ying Li, através da irmã, Ying Nan (Michelle Yeoh), que passa a ser a guardiã de Ta Lo e funciona como mentora de Shang-Chi, após a chegada do protagonista à vila.
Xialing, a irmã de Shang-Chi, transpira valores feministas do início ao fim da trama. Por ser mulher, não estava autorizada a treinar juntamente com os homens, pelo que treinou sozinha até se tornar uma mestre das artes marciais. Após ser abandonada pelo irmão, Xialing escapou das garras do pai e tornou-se numa empresária de sucesso, jurando que um dia criaria o próprio império.
Mensagens importantes nas entrelinhas
A Fase 4 da Marvel introduziu uma temática que tem estado presente em vários dos seus projetos até então: o luto. Wandavision, Loki e agora Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis demonstram como é que os protagonistas lidam com a perda e, mais importante ainda, que escolhas fazem durante as suas jornadas.
Igualdade, feminismo, diversidade, representatividade e desconstrução de estereótipos são alguns dos valores que a longa-metragem faz questão de incorporar na narrativa de forma clara, natural e pouco forçada. Aliás, quebrar barreiras e estereótipos foi um dos principais objetivos do diretor Destin Cretton, desde o início da produção do filme, algo que faz de forma esplêndida.
A diversidade começa logo pelo protagonista, visto que Shang-Chi é o primeiro herói asiático a ser apresentado no UCM. O projeto prima também pela representação de vários aspetos da cultura asiática, seja através da música, das lendas, ou até pelas criaturas mitológicas que aparecem na vila de Ta Lo. É de se elogiar também o respeito e tempo de ecrã dado à língua asiática, já que grande parte dos diálogos são em mandarim.
Relativamente aos estereótipos, o pai de Shang-Chi nas comics é um vilão chinês que possui uma imagem excessivamente estereotipada: bigode longo, mantos longos, aparência mais velha, poderes místicos e motivações demasiado genéricas. Tudo isto fez com que a essência e identidade da personagem fossem alteradas na trama.
Outro dos estereótipos quebrados ao longo da trama está relacionado com a utilização do humor. O povo chinês é muitas vezes apontado erroneamente como sendo mais frio e sem grande sentido de humor. Estamos habituados a humor direcionado aos asiáticos, mas raramente o contrário. Neste trabalho acontece o oposto, com a presença de muitos momentos cómicos vindos de várias personagens, tanto através da dupla Shang-Chi e Katy, como também através de surpresas como Wong (Benedict Wong) e Trevor Slattery (Ben Kingsley).
Shang-Chi não era uma personagem conhecida do público, justamente por estar envolvida em algumas polémicas. Isto porque a banda desenhada protagonizada pelo herói, lançada nos anos 70, continha inúmeros estereótipos asiáticos e ataques racistas, o que fez com que caísse no esquecimento. Destin Cretton consegue, de forma exímia, não só desconstruir estes problemas óbvios da narrativa base, bem como trazer Shang-Chi de volta à ribalta.
A inspiração nos clássicos
As inspirações em algumas produções cinematográficas asiáticas são notórias ao longo de toda a trama. Os trajes da personagem Ying Li fizeram-me lembrar da Princesa Kitana da franquia Mortal Kombat e tenho a certeza de que estas referências e influências não passarão despercebidas ao público. Os fãs de clássicos como Crouching Tiger – Hidden Dragon (2000), que também conta com Michelle Yeoh no elenco, Kung Fu Hustle (2004) ou de qualquer filme com Jackie Chan vão certamente delirar ao ver Shang-Chi.
Este é provavelmente o trabalho da Marvel com as melhores coreografias de cenas de luta. É de destacar a poética luta de abertura do filme entre Ying Li e Wenwu, que é minuciosamente bem executada. Grandes elogios a Simu Liu por fazer ele próprio grande parte das suas cenas de ação.
De destacar ainda o trabalho do coreógrafo Andy Cheng, que soube conjugar o estilo clássico de artes marciais, como o Kung Fu, com o toque “marvelesco” de super-herói a que estamos acostumados. O resultado? Um enredo repleto de cenas de ação intensas e extasiantes, com uso mínimo de CGI (excluindo a batalha final do terceiro ato), o que acaba por ser refrescante, após filmes de grande complexidade visual como foram Vingadores: Guerra do Infinito ou Vingadores: Endgame.
Como não podia deixar de ser, toda e qualquer longa-metragem da Marvel Studios deverá ter influência noutros projetos, sejam eles no grande ou no pequeno ecrã. As cenas pós-créditos deixaram água na boca e perguntas por responder, algo que também já é familiar nestas andanças. Num diálogo entre Wong, Shang-Chi e Katy – que mais se assemelha a uma mensagem para o público – o feiticeiro garante uma coisa: o que quer que seja vem por aí, é só o começo da jornada.
Numa altura em que o Universo Cinemático da Marvel conta já com mais de 25 trabalhos, seria natural afirmar que cada vez se torna mais fácil repetir fórmulas e cair nos mesmos padrões criativos de filmes de super-heróis. Isto não se aplica a Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis, que serve como um exercício fantástico de desconstrução de estereótipos, que prima pelas sequências de ação e que goza de um protagonista diferente daqueles a que estamos habituados a ver no UCM.