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joana espadinha
Fotografia: Joana Linda

Entrevista. Joana Espadinha: “Agora sinto que estou em casa no palco”

Joana Espadinha regressa aos álbuns munida de confiança e uma bola de espelhos. Em Ninguém Nos Vai Tirar o Sol, disco editado hoje, dia 24 de setembro, pela Valentim de Carvalho, a cantora mostra que a pop, que entrou de rasgão em O material tem sempre razão, veio para ficar. Passagem do tempo, maternidade, ser mulher – são estes alguns dos temas explorados pela cantautora e professora de jazz que considera a escrita de canções uma terapia. Ninguém Nos Vai Tirar O Sol são as certezas de uma Joana Espadinha que ultrapassou as dúvidas do álbum anterior. Regressa, dois anos depois, decidida na pop e confortável no palco.

Espalha-Factos conversou com a artista sobre este o novo disco, sobre estar na pop enquanto mulher e sobre a certeza de que, por mais nuvens que tapem o céu, é certo que Ninguém Nos Vai Tirar O Sol.

No disco passado, O Material Tem Sempre Razão, começavas a mergulhar no universo pop. Em Ninguém Nos Vai Tirar O Sol, o teu estilo já está bastante mais instituído – tanto tu como as canções parecem estar mais seguras de si. Quais foram as maiores diferenças entre o processo de gravação do disco passado e deste que revelas agora? 

O processo foi de facto muito diferente. Eu já tinha tentado fazer essa transição para a pop no Avesso, que é um disco ainda muito ligado ao jazz. Tenho muito carinho por esse disco porque os erros que cometi nele permitiram-me avançar para os próximos. A grande diferença n’O material tem sempre razão foi ter começado a trabalhar com um produtor, o Benjamim. Ele ajudou-me a encontrar o som das canções – na verdade, ajudou-me mesmo a encontrar as minhas canções. Quando conheci o Benjamim, tinha outras canções escritas em inglês e ele lançou-me o desafio de escrever em português. Isso foi determinante, porque foi aí que surgiram a ‘Leva-me a Dançar‘, a ‘Pensa Bem‘, a ‘Material Tem Sempre Razão‘… O processo desse disco foi muito mais introspetivo, no sentido em que eu levava algumas maquetes que tinha feito no Logic ao Benjamim e ele ouvia. Aproveitou algumas – na verdade, pouca coisa – e ficámos vários meses em casa dele a trabalhar. Ele dizia “hoje vamos gravar o baixo desta música” e pegava no baixo e ficava imenso tempo à procura do som certo. Foi um processo que levou muito tempo mas que permitiu que as canções maturassem. Depois chamámos o Pir [guitarrista], a Margarida Campelo [teclas], o Benjamim gravou a bateria… Foi um disco que fizemos os dois juntos, em casa dele.

Para o Ninguém Nos Vai Tirar O Sol, eu já estava mais segura nos arranjos e já tinha aprendido um pouco mais sobre a estética pop e como arranjar para a pop. Voltei ao Logic e fiz as maquetes das canções todas. Quando mandei ao Benjamim, achei que ele ia mudar aquilo tudo, mas ele disse que já dava para ensaiar com a banda. Houve uma ou duas músicas que ainda trabalhámos em casa, porque precisavam mesmo de algumas alterações no groove e nos teclados, mas o resto levei para o estúdio para ensaiar. Neste disco, a banda envolveu-se no processo muito mais cedo e fomos todos para estúdio. Gravámos praticamente tudo numa semana. O facto de eu ter tido mais mão nos arranjos também é algo que só pôde acontecer por causa da experiência do disco anterior.

Por um lado, sinto que neste [disco] estou mais madura e que as canções são, ao mesmo tempo, uma continuação do disco anterior e uma reflexão inevitável da fase que estamos a viver e da forma como o mundo se transformou. Eu escrevi canções antes do confinamento e outras depois. Acabam por estar um pouco numa “terra de ninguém”, na medida em que estão entre as duas fases. A música, inevitavelmente, bebe das nossas experiências e de quem nós somos.

É engraçado falares que o disco anterior foi introspetivo, porque também no Ninguém Nos Vai Tirar O Sol tens várias canções onde adotas uma voz bastante autorreflexiva.

É verdade, essa componente não desaparece. Eu estava a falar mesmo no processo de pré-produção e gravação, mas esta parte da composição é verdadeiramente introspetiva, e é quase uma terapia. Eu romantizo as coisas que me acontecem para trazer alguma beleza e para me resolver em relação aos acontecimentos. Sinto que este disco tem ainda mais isso. Eu engravidei durante o confinamento, e lidar com a incerteza de saber como é que vai estar o mundo daqui a um ano, e a incerteza natural de uma gravidez, foi algo que me transformou a vida e o meu olhar enquanto autora.

Inevitavelmente, isso afeta todo o processo criativo…

Sim… Mas o meu processo criativo é muito caótico. Tenho muitas músicas abertas, faço umas logo ao piano, outras começo com letra, depois vou fazendo mais do que uma ao mesmo tempo. O meu processo criativo não mudou assim tanto, o que mudou foi mais aquilo sobre o qual eu falo. O que é comum é o facto de usar a música que eu canto dessa forma ser terapêutico para mim.

Tu também tens escrito canções para outras pessoas. São canções que escreveste para ti mas que já não fazem sentido, canções que escreveste de propósito para essas pessoas ou canções encomendadas? Como é que isso acontece?

Acontece de tudo. Já me aconteceu escrever uma canção que já não faz sentido cantar, mas a maior parte das vezes escrevi de propósito para a pessoa que me pediu ou, no caso da Carminho, que não me pediu, eu enviei na mesma e ela gostou. Eu gosto de escrever muitas coisas diferentes e percebi muito tarde que não podia cantar tudo o que escrevia. Queria ir a todas e, de repente, não sabia quem eu era enquanto artista porque escrevia muitas coisas diferentes. Escrever para outras pessoas permite-me canalizar essa outra escrita. E é muito surpreendente estares a escrever uma coisa a imaginar uma pessoa a cantar e depois ela cantar e ainda te surpreender pela positiva, mas é aquilo que tu imaginaste. É muito especial.

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Fotografia: Joana Linda

Dreamy (sonhador) é o adjetivo que associo imediatamente ao Ninguém Nos Vai Tirar O Sol, desde as canções até às componentes visuais. Como é que chegaste a essa estética?

Por um lado, são as influências. Eu e o meu companheiro, o Pir, ouvimos muito Tame ImpalaMelody’s Echo Chamber, Terno – houve uma fase em que estivemos super mergulhados nessa estética. Depois, há uma parte que tem a ver com a concretização dessa estética. Como eu venho do jazz, inicialmente não tinha muito esse sentido apurado dos teclados. Não sabia muito bem como construir uma estética nem o que é que iria surgir da música nova que eu estava a escrever. Aqui foi mesmo essencial o trabalho do Benjamim como produtor porque ele é muito eclético. Eu tinha algum receio de trabalhar com um produtor, porque eles às vezes têm uma visão muito própria, mas o Benjamim faz vários trabalhos diferentes e por ser autor compreende a música de uma maneira mais profunda. Neste disco, eu já tinha muito mais certezas acerca da estética e já tive muito mais mão nisso, mas houve toda uma fase de pós-produção onde ele também esteve envolvido, o que ajudou imenso a manter e aprimorar essa estética.

Foi engraçado mencionares o Terno, porque a primeira vez que ouvi a ‘Mau Feitio‘ pensei-a como uma “canção-irmã” da ‘Culpa‘. 

Da ‘Culpa‘?! É engraçado dizeres isso, porque a ‘Culpa‘ inspirou a ‘Qualquer Coisa‘, do disco anterior! De facto, a repetição do som é algo que me interessa muito e acontece também na ‘Ninguém Nos Vai Tirar O Sol‘. Já me disseram que essa canção fazia lembrar Feist e ela também tem um bocado essa característica [da repetição]. A ‘Mau Feitio‘, em particular, foi inspirada na ‘Lança Perfume‘, da Rita Lee. Eu queria uma canção que, sendo um bocadinho mais gourmet, desse vontade de dançar e que fosse bem-disposta, e fui buscar isso à Rita Lee.

A canção ‘Ninguém Nos Vai Tirar O Sol’ mostra que, apesar de todos os obstáculos que vais narrando ao longo do disco, há sempre uma certeza. Foi por isso que a escolheste para dar nome ao disco? 

Aconteceu repetidamente estarmos a ouvir a música em estúdio e alguém dizer que não era mau nome para o disco. Já nem me lembro quem é que foi que disse, só sei que não fui eu a ter a ideia, mas fez-me todo o sentido. Esta canção foi mesmo como um mantra, no sentido de procurar alguma tranquilidade e concentrar-me nas coisas mais simples e mais importantes. Só nos podemos agarrar a essas. Tentei, num exercício de “wishful thinking”, trazer essa tranquilidade, até porque o sol, a praia e a água são coisas que realmente nos salvam. Temos a sorte de viver neste país que nos permite desfrutar dessas coisas todas. É um statement quase naïve, esse de que “ninguém nos vai tirar o sol”, mas também é verdade e eu quis que o disco tivesse esse lado esperançoso.

Também falas sobre o tempo e como ele é traiçoeiro. No outro dia li que, quanto mais crescemos, mais o tempo se parece com uma névoa porque começamos a confundir tudo – coisas que aconteceram na semana passada parecem ter acontecido há anos, e vice-versa. Como é que foi para ti navegar o tempo ao longo da execução deste disco?

Já várias pessoas têm dito isso: este tempo, em que vivemos em confinamento, foi super atípico. Como os dias eram todos iguais, nós perdíamos a noção de quando é que as coisas tinham acontecido. Foi ontem? Hoje? Há dois dias? Será que sonhei com isto? Foi como se estivéssemos, precisamente, numa névoa. Interessa-me muito esta questão da passagem do tempo, de saber envelhecer. Eu sou obcecada com a velhice e a maneira como o Chico Buarque, por exemplo, fala sobre isso é muito inspiradora para mim. A questão da memória e das memórias se confundirem nos seus vários planos. Há um livro que ele escreveu, Leite Derramado, onde, no início, há uma pessoa que está num asilo e confunde dois nomes. No fim, percebemos que as trocas fazem sentido porque existiam duas pessoas de gerações diferentes com o mesmo nome. A passagem do tempo é quase subjetiva. Agora, nesta fase da minha vida, já sinto o tempo de uma maneira diferente e já o sinto mais lento, novamente. Sinto que o meu filho está a crescer muito rápido. Na fase em que estava com muitos concertos, a trabalhar muito com coisas que agora deixaram de ser tão importantes, o tempo passava muito rápido e eu não desfrutava tanto. Sinto que a pandemia nos obrigou a viver um dia de cada vez e tenho gostado dessa desaceleração. Foi das poucas coisas positivas que ela nos trouxe.

Na canção que dedicas ao teu filho, ‘A História do Pé de Feijão, vens dar um novo significado à ideia de “contramão”, que já estava presente no disco passado. 

É engraçado teres pensado nisso, porque contramão é um movimento que, no outro disco, é empregue numa perspetiva mais romântica. Neste tem toda a carga do parto ser o caminho de entrada no mundo, e eu nunca tinha pensado nisso dessa maneira. Então, “navegar o mundo em contramão” é a entrada dele no mundo. Essa canção é muito especial porque eu comecei a escrevê-la também na perspetiva do wishful thinking, porque ainda nem estava grávida. Depois acabei de a escrever já grávida, e quando fui gravar para o estúdio estava com um barrigão de oito meses [risos]. Essa é assumidamente sobre o meu filho.

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Fotografia: Joana Linda  

Durante todo o álbum, mas em específico na ‘Dar Resposta’, buscas uma troca de valores e um quebrar de padrões; na ‘Príncipe e o Sapo’, desmistificas contos de fadas. Esta é a tua maneira de “dar resposta” ao mundo em que vivemos? 

Uma das coisas que eu tento sempre incorporar é o humor. Acho importante que nos saibamos rir das situações e de nós próprios porque, se levarmos isto demasiado a sério, estamos sempre a sofrer e não vale a pena. A vida é curta. Eu acho que na minha geração, e não só, as mulheres convivem muito com os contos de fadas e com expectativas completamente irrealistas em relação ao que são os relacionamentos. Isso tem sido uma aprendizagem para mim, perceber o que é o amor real, que tem dias bons e tem dias maus. Às vezes é quase como uma dança, o ‘Leva-me a Dançar’ já falava nisso, e agora continuo. 

Na ‘Dar Resposta’ tentei resolver-me, procurando alguma leveza para certos assuntos e acontecimentos. Essa música também tem um lado de cansaço, em querer corresponder às expectativas de toda a gente – o que vem na linha do que estava a dizer sobre o que deixa de ser tão importante e o que realmente é o “sucesso”. O sucesso é estar bem, ser feliz e ir desfrutando daquilo que faço profissionalmente. Mesmo que não seja um sucesso comercial enorme, é esta a vida que me permite estar a fazer o que realmente gosto e é essa a minha prioridade.

A ‘Dar Resposta’ dá voz também a questões mais femininas, o peso da imagem, a pressão sobre ser mulher e conseguir conciliar tudo. Agora que sou mãe percebo que há vantagens que vêm, e que trazem também desvantagens. Para que haja realmente igualdade é preciso que o sistema e as leis estejam voltadas para compensar os desequilíbrios que existem. Não somos iguais, mas merecemos direitos iguais. A ‘Dar Resposta’ é um resumo de tudo isso.

Pegando nisso da imagem, de ser mulher e de conciliar tudo, a Joana Espadinha em palco, a solo, é a Joana Espadinha do fato monocromático, do glamour. Essa é uma imagem que adotaste para, de certa forma, te distanciares da Joana Espadinha em banda? Há algum alter ego que encaixes em algum destes formatos? 

Quando estou com os Cassete Pirata, existe um fenómeno engraçado onde a pressão de estar à frente e dar a cara desaparece. Posso estar só a tocar o meu teclado, a fazer vozes e a divertir-me com os meus amigos relaxadamente. Não é bem um alter ego, mas é uma outra vida que eu desfruto bastante e que me dá muita aprendizagem para quando toco em nome próprio. Eu não diria que tive de arranjar um alter ego [para me apresentar a solo], mas foi de facto um processo. No início da minha carreira lidei com muita ansiedade de palco. Às vezes notava-se, outras não, mas não tinha a ver com isso. Tinha a ver com eu poder desfrutar do que estava a fazer, e isso não acontecia. Talvez a culpa disso fosse de algum academismo, porque depois de passar muitos anos na escola, trazemos essa racionalidade e essa consciência do erro. Mas na verdade o erro, para a maior parte das pessoas que está a assistir, é irrelevante. Às vezes, as pessoas nem percebem que houve um erro. O peso que eu dava a isso era enorme. Foi um longo processo que se resolveu com O material tem sempre razão. Voltei a desfrutar da música e a concentrar-me no que é essencial. Não é um alter ego, mas às vezes tem de ser um bluff, aquilo de fingir que vai correr bem e só por isso corre mesmo bem!

Fake it ‘till you make it!

Exato! Vimos a mesma Ted Talk. Estou sempre a falar dessa Ted Talk aos meus alunos porque, de facto, essa postura influencia-nos fisicamente e traz-nos melhores resultados. Não é um mito. Tudo é aprendizagem, e a prática ajuda muito. Acho que o meu último concerto no Teatro Maria Matos foi o meu melhor concerto até hoje e agora sinto mesmo que estou em casa no palco.