Numa mesa de esplanada comprida no jardim das Oliveiras, Centro Cultural de Belém (CCB), a administração junta-se aos programadores da temporada 2021/22 para uma conferência de imprensa atípica. Foi por entre garfadas de ovos mexidos que foram apresentados, esta terça-feira (20), os destaques da nova programação do CCB, que se pretende que seja “um regresso à normalidade” depois do duro embate da pandemia na temporada anterior.
“Esta é uma apresentação mais informal, no registo de cidade aberta e de esplanada que queremos trazer para [o CCB]”, diz o presidente em funções, Elísio Summavielle, que abandonará o mandato em março de 2022, ainda antes da conclusão da temporada. E porque “cautela e caldos de galinha são sempre recomendáveis”, a opção este ano foi fazer uma apresentação mais reduzida: só é divulgada a programação completa até dezembro, apesar de já serem conhecidos destaques para toda a temporada.
Entre eles, está o bailado contemporâneo Transverse Orientations, do artista multidisciplinar e coreógrafo grego Dimitris Papaioannou. A nova ópera de Phillip Glass, Orphée, a ser apresentada na segunda metade da temporada, merece destaque no campo da música, ao lado de artistas de fado, jazz, pop e eletrónica. Também a reinterpretação contemporânea de As Cortes de Júpiter, de Gil Vicente, tem lugar de honra, com partituras inéditas escritas pelo dramaturgo a ser adaptadas à ópera no ano em que se celebram 500 anos da sua obra.
Nova programação responde a sentimento de mudança
“Vivemos entre ideias e entre mundos e é evidente que algo está a mudar”, afirma Summavielle. Desta ideia de mundo em rápida mudança, surge a nova temporada, com artes performativas, dança, jazz, música erudita e teatro a voltar em força. Chama-se Mundos e remete para o lugar de diversidade, de artes e de públicos, que o CCB procura tradicionalmente capturar.
“O CCB tem esta especificidade de poder acolher mundos culturais muito diversos — e acolher públicos muito diversos também”, explica o administrador da entidade, Delfim Sardo. Depois da temporada passada com o mote “Entre”, o novo ciclo pretende alargar esse horizonte de troca a “mundos geográficos, pessoais, idiossincráticos e culturais” distintos.
A nova programação conta com a lotação das salas a 100% a partir de outubro, mas a administração mantém-se alerta para novas recomendações da Direção-Geral da Saúde (DGS), caso a situação pandémica se altere. “Houve perturbação na vida normal desta instituição [em consequência da pandemia], com muitas interrupções e adiamentos”, em que o streaming se tornou fundamental, refere Elísio Summavielle. O objetivo agora é evitar imprevistos e contradições na comunicação ao público, apesar de já estar construída a programação completa.
Da ópera ao pop, “diversidade” é palavra de ordem para 2021/22
No campo da música, mantém-se o trabalho de continuidade com orquestras parceiras. O norte-americano Philip Glass é um dos artistas internacionais de renome vão pisar os palcos do CCB, com Orphée — uma composição própria e a primeira ópera de um conjunto de três, inspirada no filme Orpheus, de Jean Cocteau, sobre o mito de Orfeu e Eurídice. A ópera conta com encenação do brasileiro Felipe Hirsch e chega ao CCB a 27 de janeiro.
Na iniciativa Carta Branca, o CCB dá “carta branca” a um artista convidado para uma curadoria a gosto — tradição recente que se repete este ano, com Carta Branca a Jonathan Uliel Saldanha. O músico apresenta-se a 29 de janeiro no Pequeno Auditório, com o grupo HHY & Kampala Unit, um coletivo musical futurístico do Uganda que ajudou a fundar e que mistura os universos da música eletrónica e trance com percussão tradicional.
Outra parceria que se mantém é entre a entidade e o Museu do Fado, com um ciclo dedicado ao género. Há Fado no Cais traz, nos próximos meses, ao Centro Cultural de Belém, Luís Coelho, Mísia, Hélder Moutinho, Bernardo Couto e Cuca Roseta, a última num concerto de Natal com a Orquestra Metropolitana de Lisboa. É ainda dada atenção a músicos portugueses, consagrados e emergentes, desde a música de improviso ao pop, numa temporada de concertos que começa já em setembro.
Gil Vicente como nunca o vimos, com música e dança
O espetáculo As Cortes de Júpiter, uma fusão de teatro e ópera, estreia em fevereiro para celebrar os 500 anos da obra de Gil Vicente. A produção mostra a faceta oculta de compositor do pai do teatro português, desconhecida pela maior parte da população, e surge de uma colaboração com o Teatro do Elétrico na produção e com o CESEM (Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical da NOVA FCSH) e a APAM (Associação Portuguesa de Artes Musicais) para a recuperação museológica de partituras inéditas escritas pelo dramaturgo.
“Queríamos reforçar a figura de Gil Vicente e demonstrar como ele foi um humanista completo e polivalente à frente do seu tempo, nomeadamente, tendo deixado música escrita”, afirmou o programador de música erudita e ópera do CCB, André Cunha Leal, na conferência desta terça-feira. Com a recuperação das partituras, pretende-se afastar o dramaturgo da “faceta mais popular que lhe conhecemos pela trilogia dos autos e pelas farsas”.
“É uma pequena provocação aos nossos amigos italianos: nós, em 1500, já dávamos passos [em direção] ao teatro total do qual a ópera deriva” e que tem origens “nesse género tão ibérico que é a farsa”, completa o programador. Cunha Leal é também o responsável pelo ciclo de concertos ambulatórios, uma novidade do Centro para a música clássica a começar em 2022. Serão uma série de concertos com periodicidade quinzenal, num horário fixo, em vários locais inusitados do espaço cultural, dentro e fora de portas, para cativar um público diferente do tradicional da música erudita.
Transverse Orientations e O Duelo são destaques na dança e no teatro
A dança ocupa um lugar de honra na programação para 2021/22, numa temporada especial, pensada para um público vasto e grandes produções no Grande Auditório. É o caso do bailado Transverse Orientations, de Dimitris Papaioannou, grande destaque da temporada, com estreia nacional a 10 de dezembro. O espetáculo estava programado para a temporada anterior, mas foi adiado em consequência da pandemia.
Ainda na dança, a coreógrafa nacional Olga Roriz regressa com a performance Insónia, a 13 e 14 de janeiro. O bailado é antecedido por Segunda 2, da Companhia Paulo Ribeiro, a 29 e 30 de outubro. Já a peça O Duelo, com encenação de Carlos Pimenta, é o grande destaque para o teatro, com estreia marcada para 25 e 26 de novembro.
Na sala intimista da Black Box, Sara Barros Leitão vai interpretar Monólogo de uma mulher chamada Maria com a sua patroa. Um monólogo a solo, criado pela atriz, e inspirado no livro Novas Cartas Portuguesas, obra de referência do feminismo português. Será a estreia mundial do espetáculo, com data marcada para 4 de novembro.
Para além disso, mantém-se ativa a parceria com o Teatro S. João, no Porto, à qual se acrescentam dois novos parceiros esta temporada: o Teatro Tivoli, na cidade invicta, e o espaço Rua das Gaivotas, na Graça, de apoio a artistas emergentes. Da colaboração entre Gaivotas e Belém, sai um projeto destinado a novos artistas, que poderão apresentar os seus segundos ou terceiros trabalhos na sala Black Box.
À apresentação de O Duelo estão associadas um conjunto de quatro conferências sobre justiça. As conversas fazem parte do ciclo de conferências Pensamento, em que o conjunto Nosso Tempo traz, entre outros, a filósofa francesa Marie-José Mondzain ao espaço do CCB. Vai haver ainda um ciclo sobre Visualidades Negras, onde se vai discutir a representação da negritude.
Arte e educação para miúdos e graúdos na Fábrica das Artes
A programação infantil do Centro Cultural de Belém, uma parceria com a Fábrica das Artes, é a única da temporada que se apresenta já completa. São destaques o Festival Big Bang LX21, um projeto internacional de experiências musicais para crianças, que chega à sua 11.ª edição nacional nos dias 22 e 23 outubro, e o projeto Garagem sul, um trabalho a longo prazo com escolas, dirigido ao público infantil em Lisboa.
Já na próxima terça-feira, dia 28 setembro, são inauguradas duas exposições no CCB dedicadas ao mais novos: At Play: Arquitetura & Jogo e Fragmentos Arqueológicos, ambas sobre a arquitetura como espaço lúdico de existência.
Ainda para os mais novos, estreia-se a peça Paradoxos de Alice, residente do CCB de 3 a 5 de novembro. A performance recupera o imaginário de Lewis Caroll em Alice no País das Maravilhas e Alice no Outro Lado do Espelho e é uma coprodução da Fábrica das Artes com o Teatro do Silêncio.
Ampliação do CCB para hotel em espera, futuro da coleção Berardo também
O pequeno-almoço convivial vive momentos de maior tensão quando os jornalistas questionam o futuro financeiro do Centro Cultural de Belém face à construção dos módulos 4 e 5. Uma ampliação do espaço, cujo processo se previa já ter sido iniciado, mas que teve de ser adiada. Qual o seu destino? Um hotel com mais de 150 quartos e um polo para serviços e comércio, respetivamente, com o objetivo de trazer novo financiamento para a programação do CCB.
A empresa Mota Engil foi a vencedora inicial do concurso para o contrato de expansão, mas o negócio caiu em saco roto quando a empresa desistiu durante a escalada da pandemia. O PIP (Pedido de Informação Prévia) para a construção feito à Câmara Municipal de Lisboa expira em breve, pelo que será necessário fazer um novo antes da construção dos módulos. Dele e da prospeção inicial dos terrenos dependerá a velocidade do processo: ou seja, espera-se que não haja vestígios arqueológicos no solo que obriguem a novo adiamento da obra.
Depois de um ano atípico com quebras de receitas, principalmente no aluguer dos espaços do CCB (com a feliz exceção da sua ocupação pela presidência europeia, durante oito meses), é especialmente necessário encontrar novas fontes de rendimento, frisa o presidente, Elísio Summavielle . “Não fosse [o aluguer à presidência], teríamos seríssimas dificuldades em manter a própria estrutura do CCB, que tem 151 funcionários”, revela. A previsão da administração é que a construção comece dentro de dois anos e o funcionamento dos módulos dentro de quatro.
A Summavielle foi ainda confiado o título de fiel depositário da coleção Berardo à luz da investigação às dívidas milionárias a bancos credores ao empresário José Berardo, fundador do Museu Joe Berardo, cujo processo ainda decorre em tribunal. O museu faz parte do espaço do Centro Cultural de Belém e Summavielle deve preservar a responsabilidade de depositário, em nome da instituição CCB, até à data em que prevê abandonar a presidência, março de 2022.
Sobre o futuro da coleção, o presidente em funções não tece conjeturas: “está tudo em aberto” e “serão os tribunais a decidir”. No entanto, a perda da coleção da esfera pública parece-lhe “muito improvável”, visto que o museu permanece aberto atualmente, apesar do processo contra José Berardo.
Os talheres pousam-se nos pratos. É o fim da conferência e o início de uma temporada entusiasmante, em que se afasta a sombra da pandemia. A programação completa até dezembro pode ser consultada no site do CCB.