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A Lenda do Cavaleiro Verde
Fotografia: NOS Audiovisuais/Divulgação

Crítica. ‘A Lenda do Cavaleiro Verde’ é a história corajosa protagonizada por um cobarde

O novo trabalho de David Lowery estreou nos cinemas portugueses esta quinta-feira e é um dos candidatos a melhor filme do ano.

O mais recente filme de David Lowery já chegou às salas de cinema portuguesas. A Lenda do Cavaleiro Verde, assim denominado, é protagonizado por Dev Patel, que conta com a ajuda de nomes como Alicia Vikander, Sean Harris e Joel Edgerton, entre muitos outros que vão compondo o resto do elenco. O Espalha-Factos viu este filme e conta-te agora tudo sobre uma das experiências cinematográficas mais hipnotizantes do ano, com direito a alguns spoilers.

A origem do Cavaleiro Verde, o “vilão” deste filme, começou no longínquo século XIV, altura em que um desconhecido poeta escreveu Sir Gawain and The Green Knight, uma curta história sobre a ideia de honra e a sua respetiva filosofia que vem sendo adaptada ao grande ecrã e às salas de teatro à medida que o tempo vai passando, sempre com finais ou toques diferentes. Basicamente, isto é o holy grail de todos os grandes estudiosos da Idade Média que se interessam pelas lendas do Rei Artur. É uma história mística, hipnótica e deslumbrante, tanto no papel como em A Lenda do Cavaleiro Verde.

David Lowery já nos habitou ao seu misticismo desde o início da carreira. Um filho querido do cinema independente, o realizador começou a deslumbrar em 2013 com Amor Fora da Lei, mas foi em 2017, aquando do lançamento de História de Um Fantasma, um filme capaz de deixar qualquer um numa crise de meia idade, que o seu nome passou a ficar em todas as bocas do mundo. Os trabalhos seguintes, O Cavalheiro com Arma, o filme de despedida de Robert Redford, e A Lenda do Dragão, um projeto de sucesso feito para a Disney, só fizeram elevar David Lowery até ao céu, sendo considerado um dos realizadores com mais potencial da sua geração.

Até que então nos aparece A Lenda do Cavaleiro Verde, um filme que foi sendo adiado vezes sem conta devido à pandemia em que vivemos, chegando a ter sido pensado atirá-lo diretamente para a internet, sem o deixar passar nos cinemas. Esta última opção não aconteceu – e ainda bem.

David Lowery realiza tão bem este filme que o mesmo acaba por ser um experiência quase sensorial. O longa-metragem começa com cinza a cair juntamente com pequena neve. É possível sentir o vento fresco e o frio inerente. A atmosfera está construída para um daqueles filmes que não se vê todos os dias.

A Lenda do Cavaleiro Verde
Dev Patel é Sir Gawain no filme ‘A Lenda do Cavaleiro Verde’ | Fotografia: NOS Audiovisuais/Divulgação

A história só arranca oficialmente na ceia de Natal, onde está toda a gente reunida, a celebrar e a beber como se não houvesse amanhã. É uma festa dos tempos medievais, se é que alguma vez houve uma. De repente, aparece o Cavaleiro Verde, um ser mágico feito de árvore conhecido por ser “comedor de homens” e temidíssimo por aqueles lados. Ele lança um “jogo de Natal” a toda a gente ali presente: desafia todos os cavaleiros do Rei Artur (sim, esse mesmo, que está ali presente, velho e com pouco movimento) a desferir-lhe um golpe. Se conseguissem, teriam direito ao seu machado, a arma de eleição do Cavaleiro Verde. No entanto, quem o fizer terá que se dirigir, no ano seguinte, à Capela Verde, a pequena moradia do cavaleiro, onde ele fará o mesmo golpe que lhe foi desferido.

É aqui que aparece o corajoso Sir Gawain, a personagem de Dev Patel, que se oferece para o desafio, certamente lembrando-se da conversa que tinha acabado de ter com o tio, o Rei Artur, onde lhe confessou que não tinha qualquer história de coragem ou bravura para lhe contar. Como qualquer corajoso com a urgência de provar algo, Gawain vai direto ao pescoço, cortando a cabeça do Cavaleiro Verde. Apesar do golpe, o monstro levanta-se, agarra na cabeça e sai a correr de lá a cavalo, a rir às gargalhadas. Um autêntico pesadelo. Este é o prólogo de A Lenda do Cavaleiro Verde.

O que acontece depois disto fica à interpretação de cada um. Sir Gawain acaba por fazer a viagem no ano seguinte, ainda que muito a medo. Pelo caminho, vão-lhe acontecendo todo o tipo de coisas, aquelas instâncias presentes nos livros de história como “mitos” ou “lendas”. O cavaleiro encontra ladrões, fantasmas, raposas falantes e mulheres gigantes. Tudo, a dado momento, começa a parecer um sonho, quase como se ele nem tivesse saído do banquete de Natal e estivesse só a sonhar acordado com o que poderia acontecer se realmente cortasse a cabeça ao Cavaleiro Verde. Afinal de contas, a jornada de Gawain é mental e emocional e não propriamente física. É uma jornada de um homem que vai enfrentando vários desafios antes de enfrentar a morte, o maior deles todos.

A Lenda do Cavaleiro Verde
Alicia Vikander e Dev Patel no filme ‘A Lenda do Cavaleiro Verde’ | Fotografia: NOS Audiovisuais/Divulgação

A longa-metragem acaba por ser sobre muita coisa, desde natureza, sexualidade, masculinidade, fragilidade, coragem e honra. Isto é bem explicito no monólogo brutal da grande Alicia Vikander, que interpreta duas personagens neste filme: a paixoneta de Gawain e a mulher da personagem interpretada por Joel Edgerton. Sucintamente, ela diz-lhe que alguém o vai acabar por apanhar se o Cavaleiro Verde não o fizer, o que acaba por ser um bom resumo das duas horas de filme. 

No meio de toda a cinematografia brutal e do som arrepiante, David Lowery vai mostrando uma confiança brutal nas suas capacidades de realização, enquanto brinca com a questão da existência humana e da sua insignificância. No entanto, o realizador também confia o suficiente ao espectador para tirar a própria conclusão. O final, que é uma das coisas mais arrepiantes no cinema dos últimos anos, acaba por ser inconclusivo. Gawain tenta fugir da morte várias vezes, chegando a ter visões sobre o que seria o futuro caso o fizesse. Tudo isto acaba por comprovar a tese de que a personagem de Dev Patel é um cobarde que viu honra fácil à frente dos seus olhos e nem se preocupou com consequências.

A Lenda do Cavaleiro Verde pede imenso aos espectadores, quer seja paciência, quer seja dores de cabeça. A trama foge muito do que é tradicional para este estilo e foca-se mais nas questões de personalidade, tratando o heroísmo como a hipocrisia que é. Dev Patel está fantástico e Alicia Vikander está ainda melhor, mas a verdadeira estrela daqui é David Lowery, que mostra, mais uma vez, que terá um futuro incrível pela frente. O trabalho do realizador merece ser visto no maior ecrã possível e é, até ao momento, o melhor filme de 2021.

A Lenda do Cavaleiro Verde estreou esta quinta-feira, dia 9 de setembro, e está em exibição em vários cinemas em todo o país. É uma visita a não esquecer.

A Lenda do Cavaleiro Verde
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