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Fotografia: Inês Lacerda / Espalha-Factos

‘Os Vivos, O Morto e o Peixe Frito’: Uma produção com vontade de mudar o nosso tempo

O próximo telefilme da RTP1, realizado por uma mulher e protagonizado por atores africanos é um exemplo de mudança

O Espalha-Factos visitou as gravações do telefilme de comédia Os Vivos, O Morto e o Peixe Frito, inspirado no livro de Ondjaki.

Gravado no centro de Torres Vedras, em plena harmonia com os torreenses, este é um dos 10 telefilmes – filmes produzidos para estrear na televisão – do projeto Contado por Mulheres, todos a serem gravados fora de Lisboa.

“Este projeto é inovador:  tem um conjunto de realizadoras, é realizado pelo país inteiro, e tem um risco, calculado, mas que é trazer novos nomes para a realização. Metade dos telefilmes são realizados por pessoas que nunca realizaram”, afirma José Fragoso, diretor de programas da RTP.

José Fragoso | Fotografia: Inês Lacerda

Para Daniela Ruah, esta não foi a sua estreia absoluta na realização. De Hollywood para Torres Vedras, – depois de realizar pela primeira vez um episódio da série NCIS – voltou a inverter os “papéis”: “Nos Estados Unidos fazemos até 45 minutos por episódio (no NCIS). Aqui tenho até 60 minutos, portanto vou aumentando devagarinho. Se calhar o próximo projeto já é 90 minutos, vamos ver.“ (risos)

Daniela Ruah | Fotografia: Inês Lacerda

Num meio onde é difícil dar os primeiros passos, Daniela Ruah confessa que teve uma oportunidade única: “Quando comecei a pensar em realizar nos Estados Unidos, foi um bocado por empurrão de vários amigos – sendo o Diogo Morgado um deles. Começámos a falar em fazer qualquer coisa além da representação e com os recentes movimentos do empoderamento feminino, há espaço para conseguirmos dar esse passo sem termos pessoas a dar-nos para trás. Para agarrar esta oportunidade, tinha que ser agora. Mesmo no meio televisivo dos Estados Unidos, é muito difícil começarmos a realizar televisão, ou seja, se eu não começasse agora na minha série, seria muito difícil começar a realizar noutra série sem me conhecerem, sem ter algum currículo“, explica.

Tal como em Portugal, acho que em todo o lado os produtores gostam de trabalhar com quem conhecem e com quem confiam. E lá está, a Pandora da Cunha Telles – produtora dos telefilmes – e a Ukbar Filmes tiveram a ideia deste projeto criado por mulheres precisamente para dar oportunidade a mulheres, neste caso, de se inserirem neste meio, no sentido em que, caso contrário, não teriam tido oportunidade de o fazer. Todas nós somos atrizes, viemos do meio da publicidade, temos uma bailarina, etc. Temos uma panóplia de experiências aqui que podem dar muita informação à parte de contar uma história.“, relata.

Sendo este telefilme inspirado num livro de um escritor angolano, sobre a cultura africana e representado por atores africanos, é legítimo questionar a razão deste não ser também realizado por alguém das mesmas origens.

Igor Regalla, no entanto, faz questão de sublinhar que, neste caso, “está tudo certíssimo”: “A Daniela não perde nada nesse sentido, porque ela também é emigrante. Ela também está num país que não é o dela e eu acho que isso faz com que a postura dela seja super aberta. Nunca me disse não a uma ideia e, do que eu vi, isso não acontece, pelo contrário. Não só não deixa ninguém para trás como nos eleva: nós fazemos cenas simples e de repente vai a realizadora – que também é atriz e nota-se essa sensibilidade – e melhora tudo. Chega com propostas muito específicas e sabe muito bem o que é que quer, mas não é por isso que chega e é uma ditadora, de todo. Desde o início que ela nos pede para lhe darmos a nossa sabedoria e a nossa cultura, e tem sido este casamento constantemente. Por isso é que não há alegria maior, está tudo certíssimo.”

Sobre a mesma questão, Daniela Ruah confessa que quando lhe ofereceram este projeto especificamente, teve de pensar para si própria qual o motivo dessa escolha e o que é que poderia trazer a um projeto como este: “É isso mesmo que o Igor disse. Eu posso não saber o que é ser africana em Portugal, mas sei o que é ser imigrante de Portugal. Tenho uma noção muito grande do que é ser emigrante, e sei o que é ser o outro, porque no meio masculino eu sou a outra, como mulher, num país católico, eu sou judia (…). De qualquer forma, eu tenho aqui uma enciclopédia de pessoas que nasceram em África e vieram para cá, ou outros atores que já nasceram cá e nem sequer têm sotaque a falar português. Basta perguntar como é que foi a sua experiência: «Olha, nesta situação que expressão é que tu usarias aqui que não está no guião? Dirias assim ou assado? Então bora, usa isso!» Estive a ver entrevistas com realizadores estabelecidos, como Tarantino, e daqueles que eu gosto muito não há um que não diga que a colaboração não é o mais importante. Não vale a pena trabalharmos numa ilha nesta indústria, porque não funciona.”

A atriz e realizadora acrescentou também que a realização a tranquiliza sobre o futuro: “O meu marido há uns anos fez-me uma pergunta e eu não tinha resposta, e isso preocupava-me, que era «se não estivesses a fazer isto, a representar, se isto não te tivesse corrido bem, e de repente ficasses sem trabalho, o que é que tu farias, que te fizesse feliz?”» Eu não tinha resposta, porque sempre trabalhei. Mas essa pergunta é muito real e pode acontecer a qualquer atriz, por qualquer motivo. Ficar sem trabalho durante 5 anos, 10 anos… já aconteceu a muita gente que era muito boa e popular e trabalhava muito e de repente, desaparecem. Agora já tenho resposta: realizar. Nunca pensei encontrar uma paixão igual à representação aos 37 anos. É uma coisa interessante. Encontrei uma parte de mim que não sabia que existia e isso faz-me feliz. Mesmo sem trabalho como atriz, posso produzir o meu próprio filme, posso criar, não preciso de esperar pelo trabalho.

Daniela Ruah | Fotografia: Inês Lacerda

Soraia Tavares, a atriz e cantora que recentemente lançou uma música sobre a beleza da diversidade, chamada “A Beleza vai mudar o Mundo”, confessa que este projeto surgiu no timing certo. “Eu decidi que esta minha primeira canção ia ser sobre isto e de repente estou a fazer este telefilme. Está-se tudo a encaixar e tudo isto se vai tornando importante no meu caminho, enquanto ser humano e mulher negra. Portanto, fazer isto está a ser mesmo muito importante para mim. E depois há uma coisa: a Daniela, apesar de não viver o mesmo que nós, ela tem muita atenção a isso, a todos os “pormenorzinhos”. Quem tem e quem não tem sotaque, por exemplo. Ela tem uma sensibilidade enorme e por isso é que isto é uma comédia, mas quando estamos a falar de coisas que são sérias e verdadeiras ela não deixa passar como algo superficial. Quer nos fazer sentir que isto é real e a situação é que tem graça.

Quanto à importância de projetos como A Única Mulher, Igor Regalla também destaca que, apesar da pequena mudança que provocou, há ainda muitos estereótipos por derrubar: “A Única Mulher veio mudar um bocadinho as coisas, um bocadinho. Acho que enquanto projeto, funcionou muito bem para umas coisas, mas se formos ver à lupa, veja-se o produto… Vemos uma Angola rica, personagens angolanas que parece que são os donos do mundo e vamos a Portugal, ao bairro onde eu vivia, e somos todos uma grande merda. Havia o meu irmão que era um super-homem: era fisioterapeuta, médico, uma personagem que quase não existe (na vida real). E é um bocado este o mote. Perpetua estereótipos. Falta contar histórias verdadeiras.

Tendo em conta o testemunho destes atores, a ficção portuguesa, no geral, ainda está longe de fazer juz à pluralidade de Portugal, algo que se pode observar ligando televisão: “O Daniel Martinho, que está aqui neste elenco, é um dinossauro como ator. É um ator que já trabalhou com a Alexandra Lencastre e está ao nível dela, porque é que ele não trabalha mais vezes? Porque é que tem que aparecer ali entre parêntesis ator negro para nos terem em conta? É estranho para nós… Já vivemos cá há tanto tempo e parece que não nos sentimos incluídos. Eu fico muito contente quando vejo uma novela… Na novela a seguir vejo a produção e … (não há representatividade). Eu sinto que há pessoas que estão a tentar mudar isso, pessoas específicas. Como o produtor deste projeto, o Sérgio Baptista”, aponta Igor Regalla.

Fotografia: Inês Lacerda

Soraia Tavares confessa que sempre lutou mais para provar o seu valor como atriz e cantora: “Eu sinto isso desde pequenina, independentemente de ser real. Isso é uma coisa que já me foi incutida em casa. Acho que tem muito a ver com essa questão da cor da pele, porque a minha família quer que eu tenha uma oportunidade de chegar ao sítio X, e para ter essa oportunidade tenho que me destacar acima da média para que alguém me veja. Sinto sempre essa pressão que eu própria já ponho em mim, porque quero ser notada e sempre me disseram que era mais difícil ser notada.”

Em relação a se de facto, ao se mudarem os tempos, se mudaram as realidades, a atriz confessa que só quando cresceu é que olhou para trás e refletiu sobre a falta de representatividade: “Realmente, quando pensava em histórias, pensava sempre numa princesa branca, nunca numa princesa preta, coisas assim tão básicas que só quando cresci é que comecei a ter consciência, e de que se calhar a única referência quando era pequenina era a Sara Tavares. Hoje há mais representatividade, mas é muito, muito pouco. Hoje, se calhar, faço parte dessa representatividade para miúdas novas, mas sinto que sou eu e mais três ou quatro. E isso é pouco para acreditares que vais chegar lá. É tão básico como perguntar «Ok nós estamos a fazer este telefilme mas quantos negros há nos outros?» É só isso. Eu sou sempre otimista e bora lá, mas eu acho que é sempre muito triste nós não nos sentirmos representados. É uma luta.

Oxalá existam mais coisas destas, porque literatura temos muita. Muitos livros de escritores portugueses que reportam África, muitos livros de escritores africanos que reportam África e a Europa, portanto temos matéria para isso, só é preciso boa vontade e coragem para extravasar algumas barreiras que nos cercam”, afirma Daniel Martinho.

Daniel Martinho | Fotografia: Inês Lacerda

Ser protagonista, neste momento, numa história destas, nos dias de hoje, é super gratificante e quando estou sozinho chego a sentir momentos de orgulho muito especiais, porque nos dias que correm não há histórias destas a serem contadas e eu acho que é urgentíssimo haver mais histórias destas, histórias mais longas até e que haja mais palco para este talento. E lá está, a própria Daniela disse, ao longo das rodagens, que está muito contente com o elenco todo e com tudo o que está a acontecer e a verdade é que estava toda a gente muito bem preparada. Então, qual é a desculpa para não acontecer mais?”, pergunta Igor Regalla.

Igor Regalla, Daniela Ruah e Soraia Tavares | Fotografia: Inês Lacerda

Há ainda muitas perguntas por responder, e projetos como este vêm provar que, houvesse mais oportunidades, não faltaria gente cheia de vontade de as agarrar. Mudam-se os tempos, mas tardam em mudar algumas realidades e vontades. O telefilme Os Vivos, O Morto e o Peixe Frito estreará no fim do ano na RTP, assim como os outros telefilmes do projeto Contado por Mulheres.

Vê aqui mais algumas fotografias do ambiente deste dia de gravações no centro de Torres Vedras.