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Refugiados acolhidos em Lisboa. | Fotografia: Reuters

Dia Mundial do Refugiado. “O sentimento de segurança é muito mais amplo do que a ausência de conflito”

Conversámos com a Refugees Welcome Portugal, e procurámos perceber mais sobre o processo de integração daqueles que tentam aqui recomeçar as suas vidas.

A 20 de junho, celebramos, com um peso no peito e nas mentes, o Dia Mundial do Refugiado.

Assim o é há 20 anos. Através de uma resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas, declarou-se em dezembro de 2000 que o dia 20 de junho é um dia dedicado a todos aqueles que procuram asilo quando lhes é negado o direito mais básico de todos naquela que era a sua casa: o direito à vida, na sua íntegra.

Em 2020, o número de refugiados e deslocados em todo o mundo chegou a 82,4 milhões de pessoas. Apesar da doença da Covid-19 ter afetado a população global, estas pessoas não fugiam (ainda) de Governos negacionistas e despreocupados, mas de guerra, violência, perseguição e severas violações dos direitos humanos que nós temos garantidos. Prova de que os apelos para um “cessar-fogo global” não foram, como expectável, ouvidos, mesmo no meio de uma pandemia.

Dados da Agência da ONU para Refugiados (ACNUR) em 2020 mostram que 20,7 milhões de pessoas se encontram sob a sua tutela, 48 milhões são deslocados internamente e 4,1 milhões procuram asilo. 42% destas pessoas são menores de 18 anos, e quase um milhão de crianças nasce, já, com o estatuto de refugiado.

Desde 2011 que o número de refugiados em todo o mundo não para de aumentar. 82% daqueles que fogem do seu país em procura de melhores condições de vida acaba por ficar em países vizinhos, onde a crise continua por perto. Aqueles que conseguem chegar à Europa, através da Turquia, da Itália e da Grécia, nomeadamente, procuram um futuro para si e para os seus descendentes. Muitos ficaram pelo caminho.

Refugiados perseguidos pelo Estado Islâmico chegam a Portugal. (2018) | Fotografia: Tiago Petinga, Lusa

Nas últimas duas décadas, de acordo com o Governo português e citado pela agência Lusa, Portugal recebeu “2.807 cidadãos estrangeiros ao abrigo de programas internacionais de acolhimento de pessoas. Adianta-se ainda que “Portugal é o sexto Estado-Membro da União Europeia que mais refugiados recebeu ao abrigo do Programa de Recolocação aprovado por Bruxelas, tendo acolhido 1.550 refugiados, vindos da Grécia (1.190) e Itália (360), entre dezembro de 2015 e abril de 2018“.

Mas, como bem relembrou o Presidente da República a respeito desta data e a sua celebração em 2021, “embora os números impressionem – a cada dois segundos existe um deslocado no mundo – a realidade dos refugiados não trata de estatísticas, trata de pessoas, pessoas como nós, a quem devemos solidariedade como valor concreto e fundamental“.

Vários são aqueles que se dedicam à ajuda, cá dentro, àqueles que vêm de fora e em Portugal encontram (ou esperam encontrar) uma casa. Falámos com Teresa Costa, da associação Refugees Welcome Portugal, e procurámos perceber o processo de integração daqueles que à nossa praia lusitana chegam, bem como sobre o processo de integração que os portugueses também lhes devem, numa interação intercultural que nos enriquece a cada troca.

Quem (ou o que) é a Refugees Welcome Portugal e como é que surgiu o vosso projeto?

A Refugees Welcome Portugal surgiu em 2016, como uma resposta à então designada crise dos refugiados na Europa. Nasceu de um movimento internacional mas cedo se foi moldando às necessidades locais. O nosso foco é, desde então, criar uma cultura de boas vindas para os migrantes e refugiados que chegam a Portugal.

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Uma centena de pessoas protestam em frente à Assembleia da República contra a entrada de refugiados em Portugal. | Fotografia: Pedro Nunes/SIC Notícias

Para que tal aconteça, acreditamos que o primeiro passo é trabalhar com a comunidade no sentido de desconstruir mitos e preconceitos, combater o discurso de ódio, o racismo e a xenofobia. Por isso, uma das nossas preocupações é consciencializar a população, denunciando o que se passa na Europa e no Mundo, fomentando o espírito crítico e um olhar atento sobre as injustiças.

Para além deste trabalho de sensibilização, procuramos dar uma resposta direta às necessidades daqueles que escolheram Portugal para recomeçar as suas vidas, através do nosso Gabinete de Apoio ao Migrante e de programas de mentoria.

Em 2018, decidimos levar o nosso projeto além fronteiras, e desde então que anualmente a Refugees Welcome Portugal realiza várias ações humanitárias com o objetivo de apoiar migrantes e refugiados em trânsito. Já desenvolvemos ações em Calais e Dunkirk, em França; na cidade de Subotica, na Sérvia; e estamos atualmente a desenvolver projetos a longo prazo em Bihać, na Bósnia e Herzegovina, onde milhares de refugiados se encontram encurralados por fronteiras que diariamente são palco de violência, tortura e desrespeito pelos direitos mais básicos.

A missão internacional é uma componente essencial do nosso trabalho: não só pelo apoio que prestamos no terreno, mas pela mensagem que trazemos connosco quando voltamos.

Quais são as maiores dificuldades que sentem quando contactam com refugiados que encontram um novo lar em Portugal?

Por exemplo, sabemos que a questão da comunicação pode ser um grande entrave ao contacto entre os refugiados e os nacionais, mas existem dificuldades que certamente nos passam despercebidos enquanto pessoas que não têm um contacto diário com estrangeiros, além dos estrangeiros que escolhem Portugal por mero turismo e não propriamente como um sítio onde se possam refugiar e, eventualmente, viver em segurança.

Sem dúvida que as lacunas na língua portuguesa são o primeiro entrave a uma integração célere e completa, especialmente porque muitas das pessoas refugiadas também não dominam a língua inglesa, o que poderia facilitar o processo de comunicação com a comunidade.

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António Guterres, ex-Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados e atual Secretário-Geral das Nações Unidas (aprovado para o segundo mandato, por unanimidade dos 193 Estados-Membros esta semana), em visita a refugiados. | Fotografia: ONU

A inexistência de uma língua comum dificulta a interação com a comunidade e com a vizinhança, e empurra muitas vezes os refugiados para o isolamento e exclusão social – que dificulta ainda mais a assimilação da língua e da cultura.

Na tentativa de dar uma resposta a esta necessidade, a RWP tem um programa de mentores, cujo objetivo principal é ensinar a língua portuguesa ao mesmo tempo que os mentores estabelecem relações de proximidade e confiança com os refugiados que acompanham, trabalhando assim, simultaneamente, duas vertentes essenciais da integração.

Mas as dificuldades vão muito para além da aprendizagem do português. Os primeiros meses (e anos) num novo país podem ser um período de grande ansiedade. Ao mesmo tempo que navegam por um sistema altamente burocrático e lutam para verem os seus processos de asilo resolvidos pelo SEF, os refugiados tentam encontrar alguma normalidade. Porém, a procura de emprego é muito difícil e frustrante para os refugiados que sentem, naturalmente, uma urgência em recomeçar as suas vidas e assegurar a subsistência das suas famílias.

Nesse mesmo ponto da vida em segurança, sentem que os refugiados com quem contactam conseguem sentir-se verdadeiramente seguros em Portugal (e, se sim, a partir de que momento é que isso acontece)?

O sentimento de segurança é muito mais amplo do que a ausência de conflito, guerra ou perseguição. Quando os refugiados chegam ao país de acolhimento – neste caso, Portugal – trazem uma bagagem traumática muito pesada – não só pelas experiências que viveram nos seus países de origem, mas também pelas dificuldades enfrentadas durante o percurso.

Percurso esse que muito frequentemente demora anos e pode ser tão ou mais traumático que a própria experiência de viver num país onde não há paz. Mas a paz que aqui encontram é, numa primeira fase, a mera ausência de instabilidade política, de conflito, guerra ou perseguição. É o momento em que um diferente tipo de ansiedade se instala: o medo do futuro.

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Refugiados no campo de Kara Tepe (Grécia). | Fotografia: ONU

Para alguém que perdeu anos de vida em busca de asilo, a tentar atravessar fronteiras cada vez mais desumanas e militarizadas, (sobre)vivendo em campos de refugiados sem condições dignas, a chegada ao país de asilo é um momento de grande expectativa: é o momento em que, finalmente, poderão recomeçar as suas vidas.

Acabaram-se as fronteiras, a violência, a perseguição, a fome e a miséria.

É o momento em que, pensam, poderão começar a trabalhar, proporcionar um bom futuro aos seus filhos, a oportunidade de estudar… enfim, tudo aquilo que também nós queremos garantir para nós próprios e para as nossas famílias. Mas perante a extrema lentidão de resposta do SEF, a incerteza entre uma resposta de asilo favorável ou a deportação, as extremas dificuldades em aprender a língua, ou em encontrar um emprego que assegure um futuro, surge outra insegurança: conseguirei ter uma vida estável e feliz neste país?

Como é que as diferenças culturais entre Portugal e o país de origem dos singulares/das famílias com que contactam afetam a vida destes cá no país?

As diferenças culturais não têm, por si só, um efeito negativo na integração ou no dia-a-dia dos refugiados quando chegam a Portugal.

Muitas vezes as diferenças culturais afetam a integração de migrantes e refugiados porque despoletam uma resposta negativa na comunidade — fruto dos preconceitos, mitos e xenofobia presentes, e acabam por estar negativamente relacionadas ao sucesso da integração social dos refugiados.

A distância cultural é muito variável de pessoa para pessoa, mas é natural que viver num país totalmente distinto do nosso país de origem requeira alguma adaptação e seja, numa fase inicial, um desafio extra ao processo de integração.

Ao longo do tempo em que têm trabalhado com refugiados que chegam a Portugal, o que é que retiveram de forma mais vincada acerca das suas culturas? Ou, por outras palavras até, o que é que sentem que aprenderam com pessoas com quem foram contactando e que têm ajudado nos últimos anos?

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Fotografia: Refugees Welcome Portugal

A hospitalidade é sem dúvida o que mais nos marcou na cultura daqueles que chegam ao nosso país. É uma característica muito forte das culturas do Médio Oriente e que nos sensibiliza particularmente por sentirmos que nem sempre a sociedade responde com o mesmo nível de amabilidade. É algo que experienciamos em Portugal e nos campos de refugiados pela Europa fora: na Sérvia, em França, na Bósnia.

Fazem-nos sentir em casa, apesar de eles próprios não o sentirem: há sempre um chá quente à nossa espera, um convite para nos juntarmos à refeição, ou uma fogueira para nos aquecermos quando chega o final do dia.
E é também nestes momentos de maior intimidade e partilha que temos a certeza que as diferenças culturais são uma distração que por vezes nos impede de ver o tanto que temos em comum.

Naturalmente que as diferenças culturais existem — a língua é desde logo a primeira barreira. Mas uma grande aprendizagem que estes anos de trabalho e partilha nos deram, é que a comunicação é muito mais do que a língua.

É possível conhecer uma pessoa através das suas expressões, de sorrisos, de jogos, de partilhas. E as próprias dificuldades de comunicação são uma ótima forma para estabelecer conexões — aprendemos um pouco de pashto, urdu ou árabe, e essa tentativa de conhecermos um pouco mais daqueles que ajudamos é sempre recebida com muita surpresa (e gargalhadas quando o sotaque está muito longe do suposto).

Hoje temos, sem dúvida, uma melhor compreensão das diferenças culturais que existem mas, acima de tudo, aprendemos que a melhor forma de lidar com qualquer diferença que exista é demonstrando interesse no outro e uma curiosidade positiva, genuína e saudável.