A Carta Portuguesa dos Direitos Humanos na Era Digital foi aprovada e decretada pela Assembleia da República em abril de 2021, pela primeira vez prevendo, na ordem jurídica portuguesa, a proteção contra a “desinformação“.
Afinal, o que é esta Lei e como é que nos protege?
Através do Decreto n.º 136/XIV, a Assembleia da República aprovou, a 8 de abril de 2021, aquela que é agora conhecida como a Carta Portuguesa dos Direitos Humanos na Era Digital, um documento que junta à nossa ordem jurídica uma panóplia de direitos fundamentais que a sociedade, cada vez mais digitalizada, pediu, e que especificam direitos já nos atribuídos em termos mais generalizados noutras previsões legais e supralegais.
Falamos, nomeadamente, do catálogo de direitos, liberdades e garantias da Constituição da República Portuguesa, documento máximo da nossa Lei. Que prevê, entre outros, direitos como o direito à liberdade de expressão e informação, o direito à liberdade de imprensa e meios de comunicação social, o direito à liberdade de criação cultural. É exatamente sobre estes direitos que esta Carta se debruçou – e, mais, é exatamente por causa destes direitos que a discussão pública em torno desta Lei tem denotado alguma controvérsia.
A Carta foi publicada pela Lei n.º 27/2021, de 17 de maio, e entra em vigor 60 dias após a sua publicação.
O que é a desinformação? E pode a Assembleia da República defini-lo?
“Considera-se desinformação toda a narrativa comprovadamente falsa ou enganadora”…
… “criada, apresentada e divulgada para obter vantagens económicas ou para enganar deliberadamente o público, e que seja suscetível de causar um prejuízo público, nomeadamente ameaça aos processos políticos democráticos, aos processos de elaboração de políticas públicas e a bens públicos.”
O artigo 6.º da Lei em questão define desinformação assim, no seu n.º 2, e acrescenta o n.º 3 que estas narrativas serão consideradas enquanto “a utilização de textos ou vídeos manipulados ou fabricados, bem como as práticas para inundar as caixas de correio eletrónico e o uso de redes de seguidores fictícios“, sendo que isto não abrange “os meros erros na comunicação de informações, bem como as sátiras ou paródias” (n.º 4).
Mas pode a Assembleia da República definir este conceito, aparentemente tão amplo, numa Lei? A resposta é simples e vale ser relembrada.
A Assembleia da República é, desde logo, o órgão responsável pelo poder legislativo dentro do poder político que reconhecemos nesta 3.ª República Portuguesa; não só isso, como é o órgão que elegemos direta e universalmente, para que nos represente durante a legislatura em vigor. Tudo isto está garantido pela Constituição, bem como a reserva de Lei (absoluta ou relativa) da Assembleia, que nos diz que só a Assembleia (ou o Governo, com autorização desta) podem legislar sobre os tópicos que os artigos 164.º a 165.º do documento fundamental preveem. Portanto, sim, a Assembleia da República pode e deve definir, no interesse coletivo de todos os portugueses, o que é a desinformação, para efeitos de regulação jurídica e para efeitos de proteção dos cidadãos que da ordem jurídica em causa beneficiam.
Apesar de tudo isto serem factos, também é facto que as decisões tomadas na Assembleia não agradam a gregos e troianos, não fossem as maiorias (simples ou qualificadas) ditar o rumo daquilo que acontece. Na escala do Polígrafo SIC, podíamos aqui dizer que a resposta à pergunta é, antes, um “Verdadeiro, mas…” (olhem, o fact checking a funcionar?). Porquê? Porque nem sempre as Leis são aprovadas por todos os partidos (ou independentes) representados na Assembleia da República, bastando o voto favorável dos dois partidos maiores para a Lei seguir para a frente, podendo então enfrentar o veto presidencial.
Enfim, politiquices à parte, neste caso a verdade não precisa de um “mas”, porque o Projeto de Lei do Partido Socialista (PS) e do partido Pessoas–Animais–Natureza (PAN) foi aprovado com os votos favoráveis de todos os presentes à exceção do Partido Comunista Português (PCP), do Partido Ecologista “Os Verdes” (PEV) e dos deputados únicos do Chega! e da Iniciativa Liberal, que se abstiveram.
Como é que posso reagir contra a desinformação?
Ou, por outras palavras, como é que esta Lei me protege? E, ainda, se estivermos do outro lado, como é que me certifico que não reagirão contra a informação que eu partilho? Como é que provo que esta informação é legítima?
À partida, não estaremos do outro lado, a não ser que sejamos meros consumidores inocentes nestas partilhas de desinformação, que é o que acontece frequentemente (aliás, não teria este artigo o mínimo interesse para quem, premeditadamente, beneficia com a partilha de informação não fidedigna ou totalmente errada). Por isso é importante que procuremos educar-nos para esta era digital, o que parece algo facílimo para os jovens, mas pode tornar-se mais complicado à medida que a idade aumenta.
Voltamos ao artigo 4.º, desta vez ao n.º 3, onde lemos que “todos têm o direito de beneficiar (…) de proteção contra todas as formas de discriminação e crime, nomeadamente contra a apologia do terrorismo, o incitamento ao ódio e à violência contra pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional, ascendência, religião, sexo, orientação sexual, identidade de género ou deficiência física ou psíquica (…)“.
De acordo com a Lei n.º 27/2021, existem dois mecanismos fundamentais de reação por parte dos cidadãos quando deparados com desinformação numa plataforma digital: a queixa à Entidade Reguladora da Comunicação (ERC), que apreciará o conteúdo em questão, ou a ação popular digital.
Parece-nos sensato que deixemos a ERC cuidar daquilo que ainda lhe falta cuidar do seu trabalho usual (e, se calhar, ter mais atenção quando aprova que determinados websites duvidosos se tornem órgãos de comunicação), e por isso, embora os Tribunais não tenham uma eficácia além (enquanto escrevia, mais um crime deve ter prescrito algures no país), talvez seja mais útil recorrer à ação popular.
O que é a ação popular digital?
Ora, como já prevíamos na Constituição da República Portuguesa antes de nos vermos num futuro onde a nossa vida é feita online (inclusive, para escrever este artigo tive de estar ligada a um servidor), a ação popular é o direito dos cidadãos, no pleno gozo dos seus direitos civis e políticos, pessoalmente ou através de associações ligadas aos interesses em causa, de requerer a proteção dos bens do Estado, a prevenção ou cessação de infrações contra a saúde pública (talvez fosse útil termos relembrado isto mais cedo), a promoção dos direitos dos consumidores, e a proteção da qualidade de vida, do ambiente e do património cultural.
Qualquer cidadão pode entrar num Tribunal e pedir que o mesmo defenda interesses públicos que estejam em causa, não tendo de demonstrar um interesse pessoal ou uma conexão com o direito que quer que o Tribunal reconheça, como em qualquer meio processual diverso.
Hoje, apenas há que fazer a adaptação do disposto na Lei reguladora da ação popular, a Lei n.º 83/95, de 31 de agosto, para aquilo que apelidamos de era digital.
Por isso, se o leitor vir uma “notícia” chocante no Facebook que coloque seriamente em causa a atuação da sua autarquia local (até porque as Eleições autárquicas estão a chegar), pode, em último caso, ir para a porta do Tribunal Judicial da Comarca aí da terra. A primeira hipótese é, sempre, reportar a publicação.
Esta Lei protege ou limita os meus direitos?
Diz o artigo 4.º da Carta Portuguesa dos Direitos Humanos na Era Digital que todos têm o direito de “exprimir e divulgar o seu pensamento, bem como de criar, procurar, obter e partilhar ou difundir informações e opiniões em ambiente digital, de forma livre, sem qualquer tipo ou forma de censura” e que Portugal “participa nos esforços internacionais para que o ciberespaço permanece aberto à livre circulação de ideias e da informação e assegure a mais ampla liberdade de expressão, assim como a liberdade de imprensa”.
6 artigos depois, a Carta garante-nos que todos temos direito a que “os conteúdos transmitidos e recebidos em ambiente digital não sejam sujeitos a discriminação, restrição ou interferência em relação ao remetente, ao destinatário, ao tipo ou conteúdo da informação, ao dispositivo ou aplicações utilizados, ou, em geral, a escolhas legítimas das pessoas“.
O artigo 15.º é responsável pela consagração do direito à cibersegurança, uma novidade importante: todos “têm direito à segurança no ciberespaço, incumbindo ao Estado definir políticas públicas que garantam a proteção dos cidadãos e das redes e sistemas de informação”. Se não fosse já óbvia a necessária colaboração entre Estado e plataformas digitais, este artigo volta a reforçá-lo.
Voltamos ao artigo 4.º para olhar para o n.º 1: diz-nos que este direito da liberdade de expressão e criação em ambiente digital se garante desde que não contrarie o “disposto na lei relativamente a condutas ilícitas“. Não é novidade para nós que os nossos direitos podem ser limitados, isto é, desde pequenos que ouvimos a expressão “a minha liberdade acaba quando começa a liberdade do outro“. Ainda assim, a existência de limitação à liberdade de expressão continua a ser uma das questões mais controversas na democracia como a temos vindo a conhecer nos últimos 50 anos.
“Se vivemos numa democracia, devemos censurá-los?”
É uma pergunta frequente nesta discussão e não há uma resposta correta para a mesma. Para Karl Popper, a resposta seria através do paradoxo da tolerância. Já eticamente falando, a resposta seria não.
Por outro lado, isto é mesmo considerado censura? O certo é que a censura, e os nossos mais velhos certamente saberão como a mesma é, por parte do Estado, constitui a desaprovação, a condenação, a repreensão de informação e acesso a conteúdos, com o intuito de proteger o Estado em causa. Ora, esta informação pressupõe uma verdade, e aliás, verdades inconvenientes, e o que se pretende limitar, mitigar, na esfera cibernauta, são informações falsas, conteúdos falsos aliás, que não deveriam ser chamados de informação em primeiro lugar, quando informação é sinónimo de notícia tantas vezes, e a notícia comporta factos – o que é falso não é facto.
Mas isto poderia levar-nos por aqui em diante, quando há verdades que cremos mais verdade que outras.
Devemos estar preocupados acerca da intervenção estadual nesta matéria?
De acordo com o Jornal Eco, o Presidente da República reforçou ontem, terça-feira (8), que “não há ninguém da Administração Pública, central, regional ou local que antes de haver qualquer notícia ou qualquer informação intervém, e depois de haver essa informação se substitui aos tribunais que têm uma palavra num Estado de direito“.
No entanto, os especialistas em áreas da comunicação estão reticentes. De acordo com a agência Lusa, o artigo 6.º, n.º 6, ao referir a “atribuição de selos de qualidade por entidades fidedignas dotadas do estatuto de utilidade pública“, ou seja, apoiadas pelo Estado, gera preocupação e “vários” apelidam esta norma como “digna de uma ditadura”.
O Sindicato dos Jornalistas já pediu que seja feita a fiscalização da constitucionalidade da norma constante do artigo 6.º junto do Tribunal Constitucional. Citado pelo jornal, o SJ diz que a Lei deve estabelecer “a diferença entre a desinformação que seja reproduzida e divulgada por órgãos de comunicação social e a que não seja“.
E se dizíamos antes que os conceitos indeterminados poderiam estar do nosso lado, nem todos o veem da mesma forma: o constitucionalista José Carlos Vieira de Andrade declarou à agência Lusa que essa indeterminação pode levar efetivamente à restrição da liberdade de expressão.
Também a norma respeitante à ERC tem as suas críticas. Miguel Crespo acrescentou à controvérsia que nos encontramos “no momento em que se põe em causa a avaliação dos conteúdos, em que se quer discriminar o que é fidedigno do que não é, em que uma entidade aceita registos de meios comprovadamente de desinformação e é juiz do que é informação ou não“, e Miguel Poiares Maduro confirma o pensamento do jornalista: “a carta tem aspetos positivos, mas a forma como está redigido o artigo 6.º é infeliz e abre a porta a leituras perversas, como a de que a ERC passa a ser o que define o que é verdade do que é mentira“.
O que é que acontece à liberdade de criação cultural?
A Lei n.º 27/2021 reconhece e respeita o direito à liberdade de criação cultural em várias das suas disposições. Inclusive, refere a Lei, como fonte de remissão, diversas vezes o Código do Direito de Autor e Direitos Conexos (como no artigo 4.º, n.º 4, que remetemos de imediato para o artigo 16.º), Lei indispensável no nosso sistema jurídico para proteger a arte e a cultura.
O artigo 6.º, n.º 4, dispõe que não é considerada desinformação a narrativa comprovadamente falsa ou enganadora que se considere como “sátira” ou “paródia“. A pergunta que se coloca aqui é: qual é o limite? Quando é que deixamos de estar perante narrativas falsas que enganam e têm consequências na vida da sociedade, para estarmos perante sátiras e paródias?
Poderia parecer, à primeira vista, que seria obrigatoriedade do legislador definir em que termos é que podemos desenhar a linha que separa a desinformação de uma mera paródia. Mas não só não há esta obrigatoriedade como poderia ser perigoso deixarmos de olhar para “sátiras” ou “paródias” como conceitos indeterminados, desde logo pelo reflexo dos tempos e pela sociedade volátel em que vivemos.
As redes sociais estão obrigadas a proteger-nos no âmbito desta Lei?
Hoje, a informação (e, especialmente, a desinformação) corre nestas plataformas e, por isso, é uma das questões mais pertinentes. Aliás, de espaços de partilha entre amigos virtuais ou pessoais, as redes sociais são progressivamente tornadas em espaços que substituem os meios de informação fidedignos, e onde os temas sociais ganham peso substancial ao ponto de verdadeiramente influenciarem processos políticos, como já aconteceu em mais de um momento eleitoral.
E embora nos pareça que em Portugal isso ainda está distante, vale relembrar que é a partir do Facebook e do Twitter que determinadas informações (que criam ideias questionáveis daquilo que é política) falsas proliferam e alimentam grupos cuja atuação é tudo menos democrática.
Ainda assim, alerte-se: as redes sociais não são substitutos de meios de informação fidedignos. É um problema de falsa equivalência de opinião, em que jornalistas ou experts pesam tanto como bitaites que antes não teriam plataforma para serem sequer partilhados.
Acrescenta que os órgãos de comunicação social ou a informação proveniente de fontes confirmadas foram colocados no mesmo patamar de legitimidade que utilizadores normais ou grupos de interesse. E mesmo aqueles que tinham ao seu dispor canais de comunicação tradicionais, como políticos ou figuras públicas, viram-se obrigados a adotar redes sociais para manter relevância, o que aumenta esse nivelamento.
Vale então saber: o que é que as plataformas têm feito, voluntariamente ou ao abrigo de Leis internacionais, e continuarão a fazer de forma mais vincada agora com a Lei n.º 27/2021, para proteger os utilizadores no espaço cibernáutico?
A resposta difere consoante a plataforma e as medidas adotadas provêm já de experiências anteriores em diversos locais do mundo.
O Twitter anunciou em janeiro que estariam a decorrer testes de um programa de fact-checking chamado Birdwatch, onde a comunidade da rede social pudesse sinalizar tweets com informação potencialmente enganadora ou errada. Apesar disto, em várias contas associadas a órgãos de comunicação social, já aparece um aviso que aconselha o utilizador a ler os artigos completos antes de os partilhar (ou retweetar, na gíria da plataforma).
No entanto, a própria equipa do Twitter tem sido responsável pela sinalização de desinformação, especialmente proveniente de contas/pessoas com um grande impacto social. É o caso polémico do 45.º Presidente dos EUA, Donald Trump, cuja conta foi suspensa no início do ano, no decorrer de várias sinalizações de conteúdo com informação comprovadamente falsa – neste caso, respeitantes às Eleições dos EUA de novembro de 2020, e da fraude que o ex-Presidente alegava.
Do outro lado do universo das redes sociais (do lado maior, já que falamos de Facebook-Instagram-WhatsApp, tudo no mesmo), o Whatsapp tem limitado as cadeias de partilhas de informação, para prevenir a desinformação. Estas cadeias intermináveis foram um dos meios de contaminação da opinião pública brasileira na altura das últimas Eleições presidenciais, podendo ter representado uma grande parte dos votos favoráveis a Jaír Bolsonaro, o maior inimigo da informação, como veio a provar a pandemia que vivemos. E, por falar em pandemia, no Instagram e no Facebook vimos constantes avisos, quando alguma palavra-chave relacionada com a Covid-19 aparecia, relembrando-nos de nos informarmos corretamente sobre a evolução do novo coronavírus.
Mas a Covid-19 está, ainda, longe de ser o maior problema de Zuckerberg e os amigos. Os desenvolvimentos da política americana têm sido os maiores desafios da desinformação proliferada na plataforma com milhares de milhões de utilizadores.
Apesar de Mark Zuckerberg ter defendido, anteriormente, que o Facebook não deveria policiar o discurso político, foi anunciado na última semana que a rede deixará de tratar o discurso político como uma exceção, após a decisão de um Conselho independente, formado pelo Facebook para a revisão de conteúdo, de manter a suspensão indefinida da conta de Donald Trump, a que procederam por volta da mesma altura que o Twitter.
Este Conselho criticou a atuação do Facebook ao utilizar critérios diferentes para figuras políticas, dizendo que as mesmas regras se deveriam aplicar de forma igual para todos os utilizadores. De acordo com o The Verge, um utilizador normal recebe strikes de cada vez que viole as regras do Facebook que possam, eventualmente, levar a uma suspensão, enquanto existem relatos de funcionários do Facebook que já intervieram em casos onde a atuação de políticos poderia ter levado à sua suspensão da rede social, evitando esse desfecho.