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Imagem: Pixar / Divulgação

Pixar. Filmes para as crianças de hoje e os adultos de amanhã

Desde a sua fundação que a Pixar teve as crianças como o seu principal público-alvo. No entanto, existe algo nos seus filmes que é compreendido melhor que ninguém por adultos, apresentando dúvidas existenciais e falando de situações psicológicas pouco comuns para este tipo de filmes.

Fundada em 1979 como parte da produtora Lucasfilm, eventalmente viria a tornar-se uma empresa independente depois da compra de Steve Jobs, que acabou por tornar-se no sócio majoritário.

Contudo, falar da Pixar não é falar de números. É falar de magia, de sentimentos e de emoções, como é demonstrado em boa parte dos seus filmes. Este artigo visa falar de alguns desses mesmos projetos e do que eles significam para crianças e adultos.

O lançamento de Toy Story

Toy Story, realizado por John Lasseter
‘Toy Story’, realizado por John Lasseter

Estávamos no Outono de 1995 quando Toy Story, o primeiro filme do franchise dos brinquedos falantes, é lançado. Realizado por John Lasseter, este projeto pioneiro foi olhado com muita desconfiança e teve uma quantidade enorme de problemas na produção, como começou a ser hábito em todos os filmes da saga.

Considerado por muitos como o maior pioneiro do cinema de animação em 3D, Toy Story conta com uma história capaz de levantar muitas sobrancelhas, tanto é o risco corrido no mesmo. A intenção dos escritores foi, desde o início, tornar Toy Story em algo sofisticado e adulto, mesmo que seja designado para crianças. Então, o resultado final acabou por ser um filme infantil que os crescidos iriam entender como ninguém.

Mostrando ideias filosóficas e psicológicas raras para filmes de animação, como as crises de identidade, o existencialismo e o abandono, Toy Story marcou o primeiro filme da Pixar e a visão e missão da empresa, algo que se mantém até hoje.

Mais à frente neste artigo falaremos de outros filmes da saga, que se marcam por ser ainda mais agressivos nas suas ideias, mas Toy Story, apesar do seu conteúdo parecer o mais infantil possível, foi o primeiro filme de muitos adultos de hoje em dia, que o recordam como uma memória de um tempo distante e bem mais fácil.

Toy Story 2 e a depressão inerente

Em 1999 chegaria ao público Toy Story 2, a sequela do laureado primeiro filme, realizado novamente por John Lasseter. Enquanto que o primeiro filme lidou, na sua maioria, com as personagens a tentar perceber “quem são”, este aqui pôs cada um daqueles brinquedos a tentar perceber o seu lugar no mundo.

Maior e melhor que o primeiro em todos os sentidos, Toy Story 2 é bem mais arriscado que o primeiro (o que acaba por ser surpreendente), metendo as personagens a salvar Woody, que é raptado e acaba por passar boa parte do filme a bater com a cabeça na parede, metaforicamente, enquanto tenta perceber o porquê de já não se sentir em paz em casa e como isso, consequentemente, lhe retira a felicidade da sua vida. E importa dizer que tudo isto começa por causa de um simples arranhão no braço de pano de Woody, que  o leva numa espiral psicológica triste, depressiva e devastadora.

À Procura de Nemo e a teimosia de um adulto

'À Procura de Nemo', realizado por Andrew Stanton
‘À Procura de Nemo’, realizado por Andrew Stanton

Lançado em 2003, À Procura de Nemo viria a tornar-se o primeiro filme da Pixar a vencer o Óscar de Melhor Filme de Animação, sendo um dos seus maiores sucessos e um caso de estudo para qualquer aspirante a argumentista.

À Procura de Nemo é um filme de animação, mas isso não quer dizer que as suas ideias e imagens o sejam, com cenas dignas de filmes de terror e que não pedem propriamente desculpa ao espetador. Afinal de contas, este é o filme que começa com um assassinato da esposa e de boa parte dos filhos -ainda por nascer – da personagem principal, Marlin. Consequentemente, o peixe-palhaço Marlin acaba por ficar traumatizado, projetando o seu síndrome de stress pós-traumático para o filho, controlando-o a cada passo e levando-o a que ele tente fugir de “casa”, o que acaba por acontecer. Tudo nos primeiros 15 minutos de filme.

A jornada que se segue acaba por ser arrepiante, levando Marlin ao encontro de Dory, a famosa criatura do mar que sofre de perda de memória a curto prazo, não vá ela lembrar-se dos seus traumas passados, e ambos tentam conjugar os seus problemas em conjunto, com a teimosia digna de um adulto que não consegue aceitar que algo de errado se passa com ele.

O privilégio artístico em Ratatouille

Chegamos a 2007 e dois filmes foram lançados desde À Procura de Nemo, sendo eles Os Incríveis e Carros. Ambos com o seu mérito, como é óbvio, mas que acabam por ficar muito aquém quando comparados com o lançamento seguinte, Ratatouille.

Mostrando-nos um rato cozinheiro, Ratatouille talvez tenha sido visto com a mesma desconfiança que Toy Story, mas acabou por suceder em todos os sentidos. A história de Remy, um rato que tem o sonho de ser um chef, acaba por ser uma alegoria à perseverança, ultrapassando vários obstáculos bem conhecidos por qualquer pessoa que tenha entrado (ou tentado entrar) no mundo das artes. A desaprovação parental, a dificuldade em lidar com os egos, a falta de reconhecimento, a escassez financeira e, acima de tudo, o constante falhanço.

Mais adulto que nunca, Ratatouille venceu nos nossos corações porque conseguimos conectar-nos à história do filme com imensa facilidade. O final acaba por ser feliz, mas se pensarmos bem… será que foi mesmo? Para pessoas privilegiadas, talvez ver um rato ter sucesso num restaurante de Paris seja bonito e querido, mas para todos aqueles que não tiveram o privilégio de conseguir tudo de mão beijada, talvez não consigam achar isso do final, considerando-o agridoce, na melhor das hipóteses. Afinal de contas, Remy e o seu filme representam uma história de esperança que por vezes é bem-sucedida mas que, no entanto, acaba por falhar na maioria das tentativas.

Wall-E, o filme capaz de partir qualquer coração

Wall-E, realizado por Andrew Stanton
‘Wall-E’, realizado por Andrew Stanton

O final da primeira década do século XXI foi bastante positivo, trazendo sucesso atrás de sucesso. Depois do lançamento de Ratatouille, Wall-E chegaria às salas de cinema, acabando por vencer o Óscar de Melhor Filme de Animação e conseguindo uma nomeação para Melhor Argumento Original, algo raro para filmes como este.

Enquanto todos os outros filmes da Pixar tentam mostrar algo mais pessoal em qualquer ser humano, Wall-E tomou uma abordagem diferente, falando do estado do planeta e do problema inerente ao capitalismo. Através do cenário distópico, o filme diz-nos que o planeta Terra é algo bastante frágil e que precisa de ser cuidado.

O planeta mostrado no filme é um mundo tóxico, destruído pela tecnologia e pela mão humana. O típico Homem de Wall-E é apresentado como alguém com peso acima da média, preguiçoso e sedentário, entretido pela atividade de dormir, comer e beber, e que se rende a qualquer coisa que a tecnologia diga que devam fazer. Ao contrário de Wall-E e Eva, que, eventualmente, formam um casal fofinho de robôs cheios de emoções e sentimentos, os humanos estão desprovidos de qualquer humanidade, parecendo máquinas prontas a consumir tudo o que lhes aparece à frente.

O filme acaba por dizer que “segundas oportunidades” existem, quaisquer que elas sejam. No entanto, será que os humanos que realmente vivem no planeta Terra terão direito a uma? O melhor é não arriscar.

A morte em Up

Corria o ano de 2009 quando chegou aquela que é considerada por muitos a joia da coroa da Pixar. Up chegou aos cinemas em Maio desse ano pela mão de Pete Docter, que realizou alguns dos filmes mais celebrados da produtora.

Up abre com uma montagem que, à primeira vista, é tudo menos triste. Vemos o desenvolvimento da relação entre Carl e Ellie e todas as suas aventuras e desventuras, a sua vida em conjunto, culminando na morte da mulher, para tristeza do víuvo. É aqui, neste momento, que a morte é apresentada de uma maneira que ainda não tinha aparecido em filmes da Pixar ou filmes destinados a crianças, em geral.

O filme acaba por ser muito bom porque consegue explorar temas incrivelmente complexos com quase nada. Para além da montagem inicial, boa parte do filme é passada com Carl e Russell a voar numa casa flutuante – ou seja, pouco acontece. Mas o que não aparece diretamente em imagem aparece saído da boca das personagens, explorando o isolamento, a velhice e a morte como poucos ou nenhuns fizeram neste ramo.

O filme diz-nos que a verdadeira aventura da vida são as relações que mantemos com outras pessoas e que deveriam ser aproveitadas o máximo possível, porque depois pode tornar-se tarde demais. Uma verdade crua que, num filme de crianças, dá que pensar.

A escuridão de Toy Story 3

'Toy Story 3', realizado por Lee Unkrich
‘Toy Story 3’, realizado por Lee Unkrich

Dez anos depois, chegou-nos o terceiro filme da saga Toy Story, algo que até parecia desnecessário dada a qualidade dos seus antecessores, mas que acabou por justificar cada cêntimo em si investido, considerado por muitos como o melhor da trilogia (que viria a ter mais uma adição em 2018).

A verdade é que, se formos a ver bem, Toy Story 3 é o filme menos infantil de todos os que a Pixar lançou. Não só pelos seus temas, que já são brutais à sua maneira, mas até pelas imagens que vão mostrando.

A morte está em todo o lado, de várias maneiras, quer seja a morte da infância ou morte literal. E depois aparece-nos o desenvolvimento de traumas de infância, porque falar só da morte não é suficiente para a Pixar. O filme está recheado de momentos com uma dose de tristeza desconfortável, sendo que não é todos os dias que uma produtora tem a coragem de meter brinquedos a falar entre eles sobre o significado da vida e da morte num filme de crianças.

O crescimento pessoal em Inside Out

O início da década passada foi modesto para a Pixar, indo de filme em filme sem que nenhum se destacasse. Tivemos Carros 2, Brave e Monstros, A Universidade, mas nenhum deles foi capaz de despertar no público o que outros filmes conseguiram. Mas em 2014 isso mudou com o lançamento de Inside Out.

A história de Inside Out parece simples. Riley muda de casa com os pais, e vamos assistindo à maneira como ela lida com isso através de imagens diretamente da sua mente, onde se encontram as suas emoções. Só este resumo já era capaz de deixar qualquer um numa crise de meia-idade, mas o filme acaba por ser destruidor a todos os níveis.

Tratando de temas como a perda – quer seja de amigos ou de coisas importantes a nível pessoal -, a maneira como sentimos e reagimos a sentimentos, a mudança de interesses, a forma como lidamos com os piores momentos da nossa vida, o sentimento de segurança ou a capacidade de aceitar o falhanço… tudo isto é abordado em Inside Out, sendo parte do tema maior do filme, o crescimento pessoal.

Inside Out é tão exato nos seus temas que é estudado em universidades, e é descrito por vários psicólogos como um filme bastante real e honesto em tudo o que pretende demonstrar.

O suicidio em Toy Story 4

O último Toy Story, tal como o terceiro, também foi considerado desnecessário por fãs e críticos mas acabou por dar uma nova vida a uma saga que não precisava.

Depois de ter passado por todo o tipo de emoções e acontecimentos nos outros três filmes, o quarto dirigiu-se a algo bem mais delicado e que raramente é demonstrado em filmes infantis: o suicídio. Se há coragem no que é mostrado em Toy Story 3, então o que dizer do quarto filme da saga, onde um dos brinquedos tenta acabar com a sua própria vida várias vezes, sem sucesso? Forky, a personagem em causa, sente-se incompreendida e diferente de todos os outros, acabando por atirar-se do mais variado tipo de sítios inúmeras vezes.

Toy Story 4 acaba por ser uma celebração geral do amor mas, ao mesmo tempo, acaba por ter das cenas mais duras de se assistir em filmes da saga.

A condição humana em Soul

Soul
Fotografia: Disney/Divulgação

Tudo o que foi dito acima (e tudo o que acabou por não ser) culminou em Soul, filme lançado em 2020 e que acabou por vencer o Óscar de Melhor Filme de Animação. Soul era esperado com muita ansiedade por tudo o que se dizia sobre ele e a verdade é que o produto final cumpriu, parecendo um apanhado dos 25 anos de produções Pixar e dirigido às pessoas que cresceram com esses mesmos filmes.

Completo, complexo e, acima de tudo, muitíssimo adulto, Soul passa uma imagem universal mas que os adultos entenderão melhor que ninguém. Entre muitas das coisas que podemos concluir desse filme, Soul desconstrói o significado alargado do propósito da vida, afirmando com coragem que nem toda a gente precisa de ter um, chegando a questionar ao realizador a origem da sua felicidade no meio de um planeta Terra enorme e triste. 

Se isso não fosse suficiente, Soul começa a perguntar a qualquer espetador várias perguntas, entre as quais: como é que lidamos com a perda de algo? Como é que lidamos com a falta de um rumo de vida? Como é que lidamos com a vida em si?

O filme acaba por não dar nenhumas perguntas, cabendo ao espetador tentar construir as suas próprias respostas, fazendo compreender todos aqueles que se acham incompreendidos por algum motivo. Muitas das crianças que viram o primeiro Toy Story são agora adultos, deprimidos e com todo o tipo de problemas, sendo quase um sinal de esperança para todos eles. 

Veremos o que o futuro reserva à Pixar e se continuará a produzir histórias mais infantis e complexas do mundo do cinema de animação.