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Karl Marx
Fotografia: D.R.

Karl Marx. Quase 200 anos depois, o marxismo ainda faz sentido?

No dia em que se assinala o 203.º aniversário do nascimento de Karl Marx, falámos com jovens de diferentes quadrantes políticos para saber se o marxismo ainda faz sentido na sociedade atual.

No dia 5 de maio assinala-se o nascimento de Karl Marx. Muito poucos pensadores tiveram tanta influência na história contemporânea e mudaram o seu rumo como Marx. Mas quem foi Karl Marx? Quais as suas principais obras e ideais? E que sentido faz o marxismo na sociedade atual? A crise que se avizinha, onde se prevê que as desigualdades se acentuem, pode fazer ressurgir a sua crítica ao capitalismo?

Este é um tema que gera muitas opiniões contraditórias e que chega mesmo a polarizar a sociedade. No dia em que se celebram 203 anos desde o nascimento de Karl Marx, o Espalha-Factos conversou com vários jovens, de diferentes quadrantes políticos, para perceber se o marxismo ainda faz sentido na sociedade atual.

Quem foi Karl Marx?

Karl Heinrich Marx nasceu em Trier, Renânia – província no sul da Prússia, na atual Alemanha – no dia 5 de maio de 1818, no seio de uma família judaica. O pai, advogado e conselheiro de justiça, tinha apreço pelas ideias revolucionárias que vinham de Paris. Marx estava destinado a seguir os passos do pai e, em 1835, foi para a Universidade de Bonn estudar Direito, onde participou nas lutas políticas estudantis. No final de 1836, acaba por mudar para a Universidade de Berlim para estudar Filosofia, e junta-se aos jovens “hegelianos de esquerda” que propunham uma análise das questões sociais baseada na necessidade de uma transformação da burguesia alemã.

Em 1841, Marx doutorou-se em Filosofia com a tese A Diferença Entre a Filosofia da Natureza de Demócrito e a de Epicuro. No entanto, devido a divergências ideológicas, não conseguiu a nomeação para lecionar na universidade e acabou por se mudar para a cidade de Colónia, onde começou a escrever no jornal progressista Rheinische Zeitung onde, pouco tempo depois, chega ao cargo de diretor.

O filósofo casou-se com Jenny von Westphalen, oriunda da aristocracia prussiana, em 1843 e, passados apenas cinco meses, o governo fechou o jornal e Marx teve de partir para o exílio em Paris. É por esta altura que conhece Friedrich Engels, um amigo ao lado do qual se mantém, como apoio moral e financeiro, até aos últimos dias. Nos anos seguintes, o escritor e filósofo liderou inúmeras publicações a criticar duramente o governo alemão, o que lhe valeu a expulsão de França e da Bélgica, a pedido do governo alemão. Restava-lhe como destino a capital do capitalismo burguês, Londres, onde continuou a investigar sobre a sociedade industrial e onde acabou por morrer vítima de pleurisia, ou pleurite, a 14 de março de 1883.

Obras e principais ideais de Marx

O eterno conflito entre as classes sociais

A vida de Marx dividia-se entre a escrita e os movimentos de trabalhadores, em especial a Liga Comunista, onde havia a necessidade de um programa que ele ficou encarregue de elaborar em colaboração com Engels. A 24 de fevereiro de 1848 é publicado, em alemão, o Manifesto Comunista, no qual Marx critica o capitalismo, expondo a história do movimento operário, e termina com um apelo à união dos operários. Esta publicação coincide com a Revolução de 1848, em França, conhecida como a Primavera dos Povos.

Nesta obra, está bem presente um dos principais ideais defendidos por Karl Marx: para ele, não é possível pensar numa sociedade capitalista sem que exista uma luta de classes entre proprietários e não-proprietários, ou seja, entre patrões e trabalhadores. O filósofo concluiu, então, que o proletariado, ou trabalhadores, vendem a sua força de trabalho aos donos dos meios de produção, ou patrões, e estes têm como objetivo maximizar os seus lucros, através do aumento das horas de trabalho e da diminuição dos salários dos trabalhadores. Critica ainda a acumulação de capital, justificando que esta é uma das causas para um distanciamento cada vez maior entre as classes sociais.

Mas será que, na sociedade atual, ainda se pode falar em luta de classes? 

Para Gonçalo Angeiras, jovem socialista, “somos obrigados a concluir que as desigualdades não deixaram de existir. O pensamento de que existem exploradores e explorados mantém-se bastante atual, ainda que com diferentes matizes dos nossos tempos que criam zonas cinzentas nas visões clássicas do conceito de classe.” 

O jovem deixa ainda uma reflexão face ao progressivo afastamento “dos socialistas e sociais-democratas das suas raízes trabalhistas”, e que tem como consequência um “enfraquecimento progressivo do sindicalismo, deixando um vazio na representação de toda uma fatia da sociedade que hoje vemos a apoiar soluções políticas de extrema-direita um pouco por toda a Europa.” Por isso, Gonçalo apela a estes partidos: “se queremos combater os ideólogos do ódio que procuram dividir para reinar, devemos retomar o discurso da luta de classes e dar esperança à maioria das pessoas que se encontram há décadas numa estagnação sem precedentes, fruto de uma globalização desregulada e da consequente passagem dos centros de poder dos Estados para o capital financeiro.”

Eduardo Esteves, jovem comunista, acrescenta também que “a análise de Marx define as classes, não na base de rendimento, mas de acordo com a relação do indivíduo com os meios de produção.” Eduardo dá-nos o exemplo recente do Golpe de Estado na Bolívia, em 2019, como prova de que a luta de classes ainda se aplica: os golpistas, apoiados pela burguesia e pequena burguesia urbana endinheirada, derrubaram um governo progressista que tinha feito reformas apoiadas pelos operários urbanos e trabalhadores agrícolas, e foi graças à unidade da classe trabalhadora que, em 2020, se repôs a democracia. Por detrás deste conflito estavam interesses de classe antagónicos.”

Pelo contrário, Bernardo Blanco defende que, enquanto liberal, vê “o mundo como a cooperação voluntária de indivíduos, e não como lutas de grupos ou classes.” E a jovem liberal Madalena Batanete acrescenta que “no estágio capitalista em que estamos, e com a possibilidade constante de uma mobilidade social, o termo «luta de classes» deve situar-se meramente de acordo com o pretexto histórico associado.” E defende que, para ela, neste momento, “é fundamental lutarmos, lado a lado, para uma sociedade onde exista mais equidade, e que ninguém seja desvalorizado face à sua nacionalidade, etnia, género, opção sexual ou qualquer outra caraterística individual que o possa (ainda) desfavorecer.”

Os trabalhadores são capazes de mudar a sociedade

Marx chega então à conclusão de que os trabalhadores são os agentes transformadores da sociedade e que, por isso, se podiam revoltar contra as condições de trabalho desfavoráveis a que eram submetidos. Ele acreditava numa Revolução Socialista – isto é, se os trabalhadores se unissem, seriam capazes de criar uma sociedade sem classes.

Em 1864 foi fundada a Associação Internacional dos Trabalhadores A Primeira Internacional -, da qual Marx foi membro do conselho geral e, na prática, o seu principal mentor e dirigente. O objetivo era reunir trabalhadores de diversas classes para se pensar nos problemas comuns e nas possíveis soluções em termos coletivos. Várias das soluções que saíram desta reunião ainda fazem parte dos direitos dos trabalhadores nos dias de hoje, como o direito à greve, a necessidade da redução do horário de trabalho e a organização de sindicatos.

A sociedade capitalista gera problemas

Em 1867, é publicado o primeiro volume da obra mais importante de Karl Marx, O Capital, onde se encontram as reflexões mais teóricas do filósofo, conhecidas, resumidamente, por marxismo. A obra aborda a forma de produção e distribuição da riqueza que origina, inevitavelmente, luta de classes, não só na Europa como em praticamente todo o mundo ocidental exposto ao capitalismo.

Para Marx, o sistema capitalista era caracterizado por momentos de crise recorrentes – recessões – e, logo, não era sustentável. A alternativa que propôs para combater este sistema foi a criação de uma sociedade comunista, e o caminho para lá chegar está explicado na obra O Capital- Inicialmente, o Estado seria controlado pela ditadura do proletariado e haveria a socialização dos meios de produção, desaparecendo assim a propriedade privada. A etapa seguinte seria o comunismo, que consistiria no fim de todas as desigualdades sociais e económicas, levando à dissolução do próprio Estado.

A influência do marxismo em diversas ideologias políticas é inegável. No entanto, será que ainda faz sentido numa sociedade pós-industrial atual, ou só foi relevante num tempo de fábricas e operários?

Eduardo Esteves sublinha que “o marxismo é, no essencial, uma análise científica da opressão e das contradições criadas pelo sistema capitalista,” acrescentando que “enquanto estas existirem, enquanto a opressão do Homem pelo Homem existir, então o marxismo não só se manterá relevante, mas essencial para o progresso humano.” Gonçalo Angeiras afirma que, mesmo não sendo marxista, considera ser bastante redutor o pensamento de que esta doutrina política só faz sentido numa sociedade industrial.” 

Os dois jovens dão como exemplo a atual situação dos motoristas da Uber para mostrar que a teoria proposta por Marx ainda se aplica aos dias de hoje. “Não sofrem eles de horas a mais e salário a menos? De precariedade assoladora? Não estão eles à mercê absoluta do patrão, que tem interesses de classe antagónicos aos seus? E não vêm eles a sua mais-valia acumulada nas mãos do patronato, enquanto recebem uma parte ínfima do que produzem (o salário)? Em que parte está então desatualizada a análise de Marx?”, questiona Eduardo Esteves.

Madalena Batanetefaz um retrato mais histórico da teoria marxista, e acaba por concluir que esta teoria será sempre importante relativamente ao contexto histórico em que a mesma foi desenvolvida, e tendo em atenção as importantes adições que trouxe à sociologia, à filosofia e à teoria económica. No entanto, vivemos numa era pós-industrial e altamente desenvolvida, onde já não se verifica um contraste entre a burguesia e proletariado – existindo, sim, uma certa relação entre os mais ricos e os mais pobres, seja esta para o bem ou para o mal – mas, sim, um contraste essencialmente entre nações, em que as pessoas estão mais sectorizadas pela sua nacionalidade, raça e etnia do que propriamente pela sua classe social.” 

Bernardo Blanco vai mais longe e relata dois exemplos que, para ele, desacreditam a teoria marxista: os economistas austríacos da segunda metade do século XIX, Eugen von Böhm-Bawerk, que “refutou com facilidade as teorias marxistas da mais-valia, da exploração e do juro, explicando o conceito de preferência temporal” e Carl Menger, que “demonstrou que, ao contrário de Marx, que dizia que o valor de um bem depende da quantidade de trabalho colocada na produção do mesmo, explicou que o valor [de um bem] é subjetivo.” O liberal acaba por concluir que “não me parece, pois, que faça muito sentido analisar o mundo tendo por base teorias refutadas há mais de um século.”

Nova crise económica. E agora?

Infelizmente, a pandemia trouxe consigo uma nova crise económica mundial, onde se prevê que as desigualdades económicas se acentuem ainda mais, e à qual os vários países vão respondendo de formas muito diferentes.

Será que a chave pode estar nos ideais de Marx?

Para os jovens liberais, a solução não está de todo no marxismo, como consideram que a solução é mesmo no capitalismo, ou na economia de mercado globalizada. Bernardo Blanco relembra que “hoje, o mundo tem menos de 9% [de pessoas] em pobreza extrema, quando há 200 anos tinha mais de 90%. Depois há, sim, uma situação de desigualdade, mas que só pode ser minimizada caso haja riqueza para distribuir.” Ao mesmo tempo, Madalena Batanete adverte para a necessidade de existir flexibilidade e flexibilização económica. Não aumentar a dívida e a despesa pública através de gastos desnecessários. É fundamental apostar nos setores corretos e que nos possam trazer riqueza para enfrentarmos a crise que se avizinha; é elementar captar o investimento, seja ele nacional ou estrangeiro; e é de enorme importância reduzir a gigante carga fiscal que sufoca constantemente não somente as empresas como os próprios indivíduos, de modo a aumentar o poder de compra/produção e de movimento de capital.”

Por outro lado, Gonçalo Angeiras afirma que “a pandemia veio colocar à vista de todos as falhas do nosso sistema e, a meu ver, o papel do Estado vai ser cada vez mais relevante nos próximos tempos para combatermos as assimetrias existentes na nossa sociedade”, concluindo que “entre o rico e o pobre, é a liberdade do capitalismo selvagem, sem alma nem rosto, que oprime, e é o Estado que liberta ao garantir uma habitação digna, um Serviço Nacional de Saúde eficiente e um sistema de educação público que sirva como um verdadeiro elevador social.” 

Eduardo Esteves concorda com Karl Marx, dizendo que “só uma economia planificada democraticamente, em torno da satisfação das necessidades humanas e não do lucro, será capaz de quebrar com a anarquia das regras do mercado que estão por detrás das crises modernas.” 

Quais desses ideais se encaixariam numa sociedade democrática atual?

Para Madalena, “os antigos ideais marxistas continuam a encaixar-se numa sociedade democrática atual, tendo em consideração as importantes teorias sociológicas, filosóficas e económicas que foram estabelecidas a partir dos mesmos”. A jovem acrescenta que é fundamental “continuar a lutar pelos nossos direitos, pela melhoria das condições de trabalho, pelos aumentos salariais, por uma melhor condição de vida, assim como pela diminuição do número de indivíduos pertencentes a classes com poucos rendimentos ou em situação de miséria, conseguindo providenciar a mobilidade social tão necessária de modo a que a hegemonia se encontre na obtenção de uma vida estável e na qual todos consigamos ter acesso aos serviços mais básicos e humanos existentes.”

Gonçalo partilha de uma visão semelhante, afirmando que qualquer “ideal que esteja na base da construção do Estado Social, onde se procura assegurar a igualdade de oportunidades e a correção das desigualdades impostas pelo capitalismo, encaixa perfeitamente nos nossos sistemas democráticos na Europa do século XXI”, concluindo que “alguns dos valores marxistas são perfeitamente conciliáveis com o modelo de democracia liberal e pluripartidária europeu.”  

Segundo o jovem comunista Eduardo, “o marxismo não é uma negação da democracia”, mas sim “uma aprofundação da mesma.” Acrescentando que “é a expansão da democracia para a esfera económica, porque de que vale termos liberdade política se estamos à mercê absoluta das decisões pessoais de um patrão, sem voz alguma em como trabalhamos, o que produzimos, como o produzimos e para quem o fazemos?”

Por outro lado, o liberal Bernardo defende que, embora muita gente partilhe a vontade de tirar as pessoas da pobreza e de sermos mais iguais em termos de oportunidades e rendimentos, só as intenções não chegam,” e acrescenta que “o que importa, no fim, é que as políticas baseadas nessas ideias funcionem. E aí, no que toca à prosperidade material, não há nenhum instrumento melhor que o capitalismo e, no que toca à prosperidade espiritual, são os sistemas baseados em economia de mercado e na democracia liberal que nos dão a maior liberdade.”