O Espalha-Factos terminou. Sabe mais aqui.
Nomadland
Courtesy of Searchlight Pictures. © 2020 20th Century Studios All Rights Reserved

Crítica. ‘Nomadland – Sobreviver na América’ e a viagem pelos confins do passado

Estreou, na passada segunda-feira (19), em Portugal, Nomadland – Sobreviver na América, a terceira longa-metragem da realizadora Chloé Zhao. O Espalha-Factos analisa aquele que se apresenta como um dos grandes candidatos para levar a estatueta dourada na categoria de Melhor Filme na cerimónia dos Óscares 2021 que se realiza neste domingo, dia 25 de abril.

Além de se encontrar nomeado para a estatueta mais cobiçada da noite, Nomadland – Sobreviver na América encontra-se nomeado para Melhor Realizador (Chloé Zhao), Melhor Atriz (Frances McDormand), Melhor Guião Adaptado (Chloé Zhao), Melhor Cinematografia (Joshua James Richards) e Melhor Edição (Chloé Zhao).

As memórias como um momento no espaço e no tempo

Assisti a Nomadland – Sobreviver na América, pela primeira vez, quando estreou em Portugal, na sessão de encerramento da 14.ª edição do LEFFEST. Saí da sala que albergou a sessão a pensar, de forma bastante vívida, numa frase dita pela personagem principal da intriga, Fern (Frances McDormand), a Bob Wells.

I maybe spent too much of my life just remembering, Bob

(“Talvez tenha passado demasiado tempo da minha vida apenas a lembrar-me, Bob“)

Quando esta semana regressei aos cinemas (e que falta nos faz estes espaços) para ir rever a terceira longa-metragem de Chloé Zhao, voltei a ficar com essa frase presa na cabeça, e a dar por mim a pensar que a minha memória de novembro já tinha cinco meses. E uma memória acaba por ser isso: um instante no tempo do qual não nos conseguimos desassociar e de que, alguma forma ou outra, acaba por influenciar e servir de catalisador para o nosso presente e futuro. E de que vale ter um passado se não conseguimos aceitá-lo para tentarmos construir o nosso próximo passo a partir das ilações retiradas dele?

Este tipo de pensamentos, em plena pandemia, acabam por surgir de forma mais vívida e quase natural com o tempo que se vai arrastando. Acabamos, muitas vezes, a pensar no nosso passado, viajando entre arrependimentos e momentos mais felizes e a questionar o que é que teria acontecido se tivéssemos feito algo de diferente. Ou então, talvez, a questionar apenas o mais simples e curto “porquê?” – porque é que aquilo aconteceu – e não conseguir obter uma resposta satisfatória. Corremos o risco de cair numa nostalgia enganadora, que nos alimenta a ficarmos acorrentados ao passado, como se uma droga se tratasse. Cabe a nós, na nossa humildade, aceitar que todos estes momentos pertencem ao passado e que, de uma forma ou outra, nos trouxeram até ao momento atual.

Nomadland – Sobreviver na América é um retrato humilde de pessoas e histórias reais

Neste exato momento do tempo, neste texto, é preciso respirar e sintonizar no presente, para que nos possamos, então, focar em Nomadland – Sobreviver na América. Baseado no livro Nomadland: Surviving America in the Twenty First Century, escrito por Jessica Bruder, a terceira longa-metragem de Chlóe Zhao apresenta-nos a viagem de Fern, interpretada por Frances McDormand, após o fecho da fábrica onde trabalhava em Empire, Nevada. O fecho do seu local de trabalho surge em consequência do impacto que se fez sentir pelo período de recessão que se viveu em finais da década de 2000, cujo impacto ainda hoje é sentido por muita gente. E Nomadland – Sobreviver na América é um filme sobre pessoas e sobre as suas histórias.

Nomadland
Fotografia: Divulgação

O foco do filme é a viagem de Fern após abandonar Empire, a bordo da sua carrinha que passa a ser mais que um simples instrumento para se movimentar entre locais – passa a ser também a sua habitação. E ao ser a sua habitação, torna-se também um espaço de memórias, visíveis através de símbolos como os pratos que o seu pai lhe havia deixado ou as fotos que guarda do seu marido, falecido recentemente. É o seu passado condensado num só local, e que é levado para todo o lado onde Fern se desloca. Este, afinal, nunca nos deixa.

E à medida que a viagem de Fern prossegue ao longo do filme, esta vai servindo de veículo para conhecermos as histórias dos outros nómadas que a acompanham. À semelhança das longas-metragens anteriores de Zhao, os diálogos de Nomadland permitem-nos sentir um elevado nível de empatia para com as personagens cujas histórias vamos ouvindo. E muito desta componente de relação que se vai criando entre as personagens e nós, o espectador, provém essencialmente de dois locais.

O grande e humilde desempenho de Frances McDormand como ampliador da relação entre filme e espectador

O primeiro desses locais pode ser atribuído ao desempenho de Frances McDormand e do restante elenco, constituído por David Strathairn (a fazer de Dave) e por um conjunto de atores não-profissionais que representam uma versão ficcional de si mesmos, com maior destaque para o já referido Bob Wells, para Swankie e para Linda May. McDormand apresenta uma das melhores interpretações da sua carreira – e já são muitas nesse já seu vasto repertório. Ela consegue fazer Fern viver por entre momentos onde a sua humildade brilha, por onde a dor e a saudade do passado se escapam para o presente e pela felicidade e humor que consegue, mesmo assim, colocar à vista de todos quando necessário.

Nomadland
Fotografia: Divulgação

No entanto, talvez o maior trunfo de Frances enquanto Fern é a sua capacidade de dar espaço ao resto do elenco para brilhar quando esta interage com eles. Se com David Strathair, a química entre ambos é notável – o nervoso miudinho sempre presente, fruto das inseguranças de ambos causadas pelo seu passado doloroso – com os nómadas Frances sabe como pode demonstrar emoções conforme as suas interações e histórias que vai ouvindo. Isto permite que este grupo de pessoas brilhe, e com isto, a nossa empatia vai aumentando porque vemos nas histórias e experiências destes indivíduos também fragmentos das nossas histórias.

A realização e edição de Chlóe Zhao coloca-nos na pele dos intervenientes da ação

E isto leva-nos ao segundo local que nos permite criar relação com as personagens, que é a forma como o enredo de Nomadland se vai desenvolvendo. A viagem de Fern, apesar de seguir uma estrutura linear, é contada de uma perspetiva quase de primeira pessoa, num tom que se aproxima mais de um documentário do que propriamente uma longa-metragem. E isto faz-se notar na forma como o enredo se desenvolve, nos diálogos – às vezes, sentimos mesmo que somos nós que estamos a ter os diálogos, e não as personagens – e também no próprio trabalho de câmara e de edição da realizadora. É feito para nos colocar na pele das personagens, e Zhao consegue fazer isto muito, muito bem.

Nomadland
Fotografia: Divulgação

Se já se fazia notar nas suas duas longas-metragens anteriores, em Nomadland isto sobressai ainda mais pelo quão atual acaba por se fazer sentir a história do filme. Muitos de nós, estamos já a viver a segunda grande crise das nossas vidas, muitos sem sequer termos ultrapassado todas as consequências da primeira. E o futuro, revelando-se incerto, leva a que, de certa forma, encontremos um conforto nestas personagens, ao percebermos que não estamos sozinhos nas lutas e dificuldades do dia a dia, sendo que Nomadland até conta com uma representação bastante real do que significa precariedade, um fenómeno que parece cada vez estar a aumentar em vez de diminuir e que só beneficia um conjunto muito pequeno de indivíduos. E a comunidade de nómadas que vamos conhecendo alimenta um bocadinho a nossa esperança de que é possível criar algo que vai para além do hiperindividualismo crescente, que quase se tem tornado norma na sociedade contemporânea.

Talvez a maior crítica possível de se fazer a Nomadland provenha da evolução do próprio enredo, não em termos da ação em si, mas em termos do tempo desta. É complicado construir toda a linha do tempo sem perdemos um pouco a noção do tempo que se passou entre o início e o fim do filme. Não que isto seja particularmente algo notório, mas é complicado situar exatamente quanto tempo passou entre cada secção da longa-metragem. As pistas acabam por estar lá, mas os saltos temporais que parecem acontecer deixam-nos um bocado desorientados ao tentarmos localizar a ação no tempo relativo que ocorre dentro do filme. E isto até se torna algo engraçado, porque o ritmo da evolução do enredo e das personagens até é bastante constante. Conseguimos traçar essas linhas sem qualquer obstáculo.

A cinematografia e banda sonora que nos levam à reflexão final

Nessa evolução da ação, entre os diálogos bem construídos, somos presenteados com belíssimas paisagens, que ganham ainda uma maior vida com a cinematografia construída por Joshua James Richards, com quem Zhao já havia colaborado em The Rider e Songs My Brothers Taught Me. Os planos que são usados para capturar estas imagens, sejam estes com câmara fixa ou móvel, oferecem momentos de reflexão e total contemplação. Não só para com o filme em si, mas também para com nós próprios, de forma que a retiremos algum tipo de elações dele.

A cinematografia de Nomadland encoraja este tipo de contemplação interna e externa, e acaba por servir também, à semelhança do que acontecia em The Rider – mas não de forma tão intensa – para aumentar a aura Americana que acaba por estar sempre presente, nem que seja de fundo, em Nomadland. E a banda sonora de Nomadland, constituída essencialmente por momentos de música clássica, que vai desde Ludovico Eunadi até Ólafur Arnalds, acabam por servir o filme de forma bastante eficiente.

Nomadland
Fotografia: Divulgação

A presença destas músicas ajuda a entender melhor toda a viagem que Fern vai fazendo até ao clímax do filme, que acaba por ser a conversa referida logo no início deste texto. É a conversa que nos revela a aceitação de Fern do seu passado, e que finalmente a leva a abraçar o seu futuro, seja ele qual for. E Nomadland funciona um pouco dessa forma. À semelhança da viagem que vamos vendo no grande ecrã, nós também vamos criando a nossa própria viagem, a bordo dos nossos pensamentos. Na sua plena humildade, Nomadland revela-se como uma introspeção necessária. É um filme delicado, que nunca tenta (nem precisa) ser grandioso ao longo da sua duração. É apenas todo um momento para ser disfrutado, que eventualmente se vai tornar uma memória, do qual se pode retirar ilações do nosso passado individual e coletivo para que possamos construir um futuro pelo qual possamos ser todos um bocadinho melhores. E, se isso acontecer, então todo esse momento valeu a pena.

9
Nomadland
9