Poucos filmes têm duas chances e ainda menos no mundo de universos cinemáticos interligados, em que a produtora já está de olhos postos no próximo lançamento do seu calendário preenchido. Esta foi a realidade de Justice League quando estreou nos cinemas em novembro de 2017.
Depois de Snyder abandonar o projeto em pós-produção por razões familiares, o estúdio chamou Joss Whedon para rescrever e terminar o filme tendo em conta dois mandatos: o filme tinha de ser mais leviano, a semelhança do tom da Marvel; e tinha de ter duas horas ou menos.
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O filme, que saiu nos cinemas, tinha todos os sinais de um filme remendado à última hora, que mesmo depois de reshoots extensos para adicionar cenas novas (e um famoso super-bigode apagado) apresentava uma incongruência transversal a todas as dimensões do filme.
Este resultado desastroso, assim como histórias recorrentes da atribulada produção, levantaram a possibilidade da existência de um “Snyder Cut”, uma versão “pura” do filme cuja possibilidade deixou muitos fãs de Snyder entusiasmados.
Depois de anos de rumores e posts crípticos de Snyder, a Warner Bros. anunciou em 2020 que o Snyder Cut não só era real, como também ia ser lançado na nova plataforma HBO Max, em quatro episódios de uma hora cada.
Esta reedição ia receber um orçamento de cerca de 70 milhões de euros para filmar novas cenas, terminar efeitos visuais e refazer a banda sonora. Entretanto, o planeado formato episódico foi descartado em favor de um filme de quatro horas.
Agora, mais de três anos depois do desprezado lançamento original, Zack Snyder’s Justice League chegou à HBO Portugal. Mas será que vale a pena relançar um filme tão mal recebido, mesmo sendo a visão original de Snyder, quando os planos da DC já abandonaram o “universo interligado” em favor de projetos isolados como Joker e The Batman?
Depois de quatro horas, posso-vos dizer que o “Snyder Cut” é uma versão incomparavelmente melhor do que aquela lançada em 2017. É um filme épico ao estilo típico de Snyder, em que os heróis são apresentados como figuras mitológicas mais do que seres humanos.
Dito isto, a opinião de cada um vai depender quase inteiramente do quanto já estavam interessados na visão de Snyder para o universo DC estabelecida em Man of Steel e Batman V Superman.
Assim, vamos comparar de que formas o “Snyder Cut” difere do original, sem revelar nenhuma das surpresas novas. Dito isto, spoilers para o Justice League de 2017 e restantes filmes da DC estão em jogo.
Maior, em todos os sentidos
Em primeiro lugar, vale a pena mencionar a diferença mais óbvia que é a duração do filme. Como referido, são cerca de quatro horas no total, dividas em seis partes e um epílogo, completo com separadores ao longo do filme. Este é o primeiro indício de que, apesar de percorrer os mesmos eventos da versão original, é uma estrutura narrativa menos convencional.
Desde o início, há um aumento de escala palpável na história e na forma como a ação é retratada. Neste sentido, o filme lembra as edições alargadas da saga The Lord of The Rings. As cenas têm mais tempo para respirar e, de um modo geral, sentimos que estamos a observar o universo DC por uma janela, quase antes da história propriamente dita entrar em marcha.
Este é um dos aspetos em que o filme faz lembrar Watchmen (2009), também de Snyder: a forma como acompanhamos um conjunto de personagens ainda dispersas à medida que o vilão avança o seu plano nos bastidores.
Os principais beneficiados desta abordagem são os novatos Aquaman (Jason Mamoa), Cyborg (Ray Fisher) e Flash (Ezra Miller), que chegaram à Liga da Justiça sem passarem por filmes a solo. Todos recebem maior atenção antes de se juntarem à equipa, estabelecendo as respetivas circunstancias e personagens secundárias com maior profundidade.
Flash e, especialmente, Cyborg são o centro de grande parte das cenas eliminadas por Whedon e tornam-se agora o centro emocional de um filme que desesperadamente precisava de um.
Também as personagens que regressam de Batman V Superman tem direito a mais interações que ajudam a solidificar o sentido de camaradagem, algo que no original era forçado ao ponto de desfazer qualquer investimento possível na narrativa.
Os vilões recebem também um upgrade face ao original. Para além de um visual completamente novo, Steppenwolf (Ciarán Hinds) tem agora uma motivação e objetivo claros. Os seus parademons são também uma ameaça maior em vez de mera carne para canhão e o funcionamento das poderosas ‘caixas-mãe’ é explicado de forma muito mais concreta.
Acima de Steppenwolf, a presença de Darkseid (Ray Porter), o equivalente a Thanos no universo DC, faz-se sentir de forma mais pronunciada, com momentos recorrentes ao longo do filme. Aqui acabamos por ter uma ideia melhor do que seriam os futuros filmes nesta saga, sendo que agora estas cenas pouco mais fazem do que satisfazer fãs da banda desenhada.
Mais coerente com o que veio antes (e o que vinha depois)
Mais do que expandir, o principal triunfo desta versão é tornar o que já lá estava mais coeso desde o primeiro momento.
O inicio do filme foca a sua atenção em retratar o mundo após a morte de Clark Kent e, para o resto do mundo, do Super-Homem, no final de Batman V Superman, e a enfatizar o impacto deste evento de uma forma mais transversal.
Desde aqui percebemos a importância do Super-Homem como dissuasor das ameaças que, na sua morte, avançam perante a terra. Com isto em mente, a decisão da equipa de ressuscitar Clark, mesmo se eticamente duvidosa, torna-se imediatamente mais lógica e compreensível.
Esta sensação de “agora isto faz sentido” é recorrente. Chegamos a ter planos, diálogos e cenas inteiras presentes no original que, neste novo contexto, ganham um significado e impacto novo.
Também a nível estético, este projeto é uma melhoria. Enquanto que a versão de Whedon foi re-colorida ao ponto do fato de Super-Homem apresentar manchas brancas, esta é puro Snyder. Contraste no máximo, cores menos intensas e uma aparência de um mundo perpetuamente coberto em poeira. Este estilo típico de Snyder não é ao gosto de todos, mas a consistência, pelo menos, é bem-vinda.
No departamento do som, a nova banda sonora composta por Junkie XL (Batman V Superman, Mad Max: Fury Road) contribui imensuravelmente para dar ao filme uma nova vida, mesmo quando estamos a ver as mesmas cenas.
Esta coesão não se prolonga a todos os elementos. É fácil identificar as novas cenas filmadas para esta reedição, quer seja devido a efeitos especiais menos bem conseguidos ou porque Ben Affleck em 2020 está do tamanho de uma ‘pessoa normal’, enquanto que no resto do filme parece que o Batman afinal também tem superpoderes.
Estas novidades, desde a referida aparição de Darkseid ao já ‘memeficado’ encontro entre o “Batfleck” e o Joker de Jared Leto, assim como uma outra surpresa que vale a pena ver na ignorância, vêm preencher alguns dos desejos não realizados de Snyder, e dos fãs, para o futuro do DCEU que nunca houve. Apesar de alguma inconsistência técnica, a sua inclusão é bem-vinda e torna a proposta de ver este filme outra vez um bocado mais aliciante.
Mais Snyder, para bem ou mal
Enquanto que o Justice League que saiu nos cinemas era um monstro de Frankenstein feito de planos recontextualizados e elementos dissonantes, o “Snyder Cut” é uma continuação do que foi feito em Man of Steel e Batman V Superman, a nível tonal e estético.
Talvez por isso, as habituais críticas aos filmes de Zack Snyder mantêm-se. Aqui encontramos metáforas de Jesus a martelo, um tom edgy como que vindo da mente de um rapaz de 14 anos e um visual decididamente estilizado e sobre-produzido.
Mas, mesmo tendo isso em conta, este é o melhor resultado possível desta experiência cinematográfica. É um exemplo raro de um mega-blockbuster de super-heróis que é simultaneamente um filme de autor, onde não sentimos a habitual mão executiva a guiar o produto final. Ao longo do filme, temos a sensação que Zack Snyder fez exatamente o que quis nesta extra-longa metragem e, mesmo se não concordarmos com a visão do realizador para os heróis da DC, há que respeitar isso.