“Uma história deve ter um início, um meio e um fim… mas não necessariamente por essa ordem” é uma das mais célebres citações atribuídas a Jean-Luc Godard, realizador, argumentista e crítico de cinema que celebra hoje o seu 90.º aniversário. Dono de uma das filmografias mais icónicas da História do Cinema e um dos mais conceituados realizadores da nouvelle vague francesa, Godard continua a ser uma inspiração para realizadores mundo fora pelo seu espírito inovador e “transgressor”.
De cinéfilo a realizador
Os anos 1950 foram promissores para cinéfilos, sobretudo com o surgimento dos ciné-clubs. Foi precisamente nesse meio que Godard começou a dar os primeiros passos no mundo do cinema, arte a que sempre deu especial importância. Nas palavras do próprio: “Nos anos 1950, o cinema era tão importante quanto o pão (…). Nós sonhávamos com filmes”.
Daí até começar a escrever crítica de cinema não demorou muito. No mesmo ano, co-fundou o a Gazette du cinéma com Éric Rhomer e Jacques Rivette e, no ano seguinte, fez parte da primeira geração de escritores da revista Cahiers du cinéma, uma das revistas fundacionais no que toca a crítica cinematográfica que, ainda hoje, é vista como referência.

A incursão na nouvelle vague
Em 1960, Godard estreia-se com a sua primeira longa metragem. O Acossado (À Bout de Soufflé) destaca-se pela rebeldia e é isso que o distingue como uma das películas mais marcantes da nouvelle vague francesa. Com este filme, Godard revela e cumpre o desejo de romper com o paradigma cinematográfico ao contornar e muitas vezes quebrar, efetivamente, “regras” instituídas, reiventando a forma e a si próprio, algo que se vai confirmando nas suas obras, que culminam num exercício experimental que mescla cultura pop, literatura, crítica social e um compasso rítmico absolutamente envolvente.

Nos anos que se seguiram, Jean-Luc Godard não se cingiu a um só género ou a um só estilo. Navegou graciosamente desde o musical neorrealista (Uma Mulher É Uma Mulher) à ficção científica low-budget. É o caso de Alphaville, uma distopia sem sets milionários – a arquitetura circundante já era suficientemente depressiva e jogos de luzes eram suficientes para configurar o tom. As personagens Godard-ianas também são um elemento importante de disrupção. São reflexivas em cena, tanto olham para o horizonte como para a câmara, para o espectador, assumindo uma composição auto e hétero-reflexiva, sem espaço para um visionamento acrítico. Em Pedro, O Louco, o casal de que se ocupa toda a trama, apesar de junto, é profundamente solitário – Marianne “pensa” em voz alta o seu aborrecimento, enquanto Pierrot a ignora e imbui-se em livros e filosofia. Godard pretendia incultar no espectador uma visão crítica e responsiva, onde a suspensão da descrença é substituída por um olhar que mergulha e reflete a película.
Godard: inspiração secular
Jean-Luc Godard pode ser considerado um dos cânones da nouvelle vague mas o seu talento transgressor não se esgota aí. O realizador nunca deixou de utilizar o cinema como forma máxima de expressão e, no seu percurso, influenciou inúmeras pessoas a olharem para o cinema com novos olhos e fez crescer em muitos a vontade de realizar. A sua influência ressoa em clássicos modernos e isso sente-se. Chungking Express, de Wong Kar-wai, por exemplo, é um ótimo exemplo de um filme Godard-iano: o tom dinâmico e eletrificante é característico do realizador e a construção original da cronologia narrativa, realizada através de duas histórias que se sobrepõem, beneficiou do rompimento de barreiras narrativas possibilitadas pelo trabalho de Godard para contar a história de jovens perdidos numa grande cidade, ecoando alguns dos conceitos de O Acossado.
Apesar de nunca ter sido galardoado com um Óscar, Godard é, sem dúvida, um nome incontornável da história e a sua influência é sentida de maneira transversal entre épocas e géneros, cumprindo-se a alma pioneira que nele nasceu. Martin Scorcese, Wim Wenders ou Pasolini são só alguns dos nomes que citam Godard como grande inspiração e isso vale mais do que qualquer estatueta.