Os 7 de Chicago torna 2020 definitivamente no ano em que a Guerra do Vietname ganhou um novo foco no mundo do cinema, desta vez para denunciar a falta de razões para esta se ter desenvolvido, para além de ser uma armadilha mortal para onde foram enviados milhões de soldados norte-americanos.
Em junho, a Netflix disponibilizou o incrível Da 5 Bloods, de Stan Lee, que introduzia uma ideia tão necessária para os dias de hoje: a da reparação para a comunidade afro-americana, por ter sido obrigada a entrar numa guerra que não era a sua.
Desta vez, chegou Aaron Sorkin com o seu Os 7 de Chicago, à mesma plataforma de streaming, um filme passado em 1968, em que se lida com as ramificações da Guerra do Vietname e a realidade de que se trata tudo de uma jogada política, sem pingo de humanidade. A história gira em torno da administração de Nixon, depois de esta ter aprovado um julgamento a sete supostos lideres de movimentos protestantes contra a Guerra do Vietname, acusados de incitar um motim popular durante a Convenção Nacional dos Democratas, em Chicago.
A produção de Sorkin partilha, aliás, outra semelhança com o filme de Lee, ao abrir com uma série de imagens documentais que nos explicam a turbulência dos anos 60, com o presidente da altura, Lyndon B. Johnson a duplicar as convocações mensais de jovens norte-americanos para a guerra, as notícias dos assassinatos de Martin Luther King e de Robert F. Kennedy, entre outras coisas. Rapidamente percebemos que o país estava num ponto de bomba-relógio, em que as forças conservadoras tentavam de tudo, através de jogos, manipulações e escutas, para se agarrem ao poder que ainda tinham.
Os 7 de Chicago, apresentados
Cedo conhecemos as diferentes fações dos ativistas contra a Guerra do Vietname, que acabarão por se sentar no banco dos réus: Tom Hayden (Eddie Redmayne) e Rennie Davis (Alex Sharp) são membros da Sociedade Democrática de Estudantes, um grupo ativista de esquerda ativo desde a década de 60, Dave Dellinger (John Carroll Lynch) é um pacifista e membro da Comissão Nacional Mobilizadora para o Fim da Guerra do Vietname, Abbie Hoffman (Sacha Baron Cohen) e Jerry Rubin (Jeremy Strong) são membros do Partido Internacional da Juventude ou, simplesmente, yippies, John Froines (Danny Flaherty) e Lee Weiner (Noah Robbins) que foram figuras menores em todo o processo, não sabendo muito bem o porquê de ali e estarem e, por último, Bobby Seale (Yahya Abdul-Mateeen II), o líder dos Panteras Negras, indivíduo que nunca chegou a conhecer os restantes.
O título do filme fala em sete pessoas e na lista de cima figuram oito. Isto porque Seale apenas foi a Chicago para fazer um discurso e abandonou o local quatro horas depois. Acabou incluído no processo porque, na altura, as autoridades pensavam que incluir um membro dos Panteras Negras ia ajudar a que o povo americano percebesse que este grupo de americanos era radical e violento, um autêntico perigo para a chamada “democracia”. Tudo por causa de uma manifestação pacífica que acabou por ficar violenta, segundo a polícia. Lá para o fim da trama, descobrimos que, afinal, foi a polícia a provocar os tumultos. Onde é que já ouvimos isto antes?
O lado de Bobby permite ao filme de Sorkin aproximar-se dos dias de hoje, e sobre o quão instável anda o clima político norte-americano, na ressaca da morte de George Floyd ou de Breonna Taylor, infelizmente entre outros, todas pessoas negras assassinadas por polícias brancos. A ajudar ao processo, Bobby tinha sido acusado de supostamente ter matado um polícia noutra ocasião. É certo que, depois de várias discussões em tribunal, o processo de Seale é separado dos restantes. Mas não sem antes Aaron filmar um dos momentos mais tristes da justiça norte-americana: quando o juiz Julius Hoffman (Frank Lagella) ordena que Seale seja amarrado e amordaçado em pleno tribunal. A verdade é que aconteceu mesmo, e Sorkin não foge à obrigatoriedade de filmar o acontecimento.
É uma cena poderosa, que dialoga de forma ensurdecedora com os nossos dias. Para além do ato em si, é o simbolismo de quem pode e não pode falar na América, tanto na década de 60, como na década atual, tudo isto autorizado por uma única mente de um juiz, sem direito a defesa possível. Só que o argumento de Sorkin abre espaço a falhas quando atira a personagem de Seale para um canto. Antes do c- advogado de defesa, William Kunsler (Mark Rylance), decidir ir falar com o juiz para que mude esta sua decisão, pergunta a Seale se consegue respirar, invocando uma das últimas frases que Floyd disse antes de morrer, asfixiado por um joelho de um polícia: “Não consigo respirar.” É em momentos como estes em que quase dá vontade de perguntar a Sorkin se o filme não sairia melhor se se tivesse centrado mais na pessoa de Seale.
Mas há tanta coisa boa em Os 7 de Chicago, que é uma situação complicada tocar em todos os pontos. A estrutura da história só nos apresenta o conflito em Chicago já perto do final do filme, decidindo começar antes pelo julgamento, de forma a tornar a narrativa mais dinâmica. Os diálogos acutilantes e ziguezagueantes de Sorkin estão presentes, fazendo perfeito uso de um filme passado quase inteiramente numa sala de tribunal, onde o poder da palavra é o mais poderoso, fazendo com que algumas falas tradicionalmente caricaturais em Sorkin sejam aqui bem recebidas.
Apresentados os sete (oito!) arguidos de Chicago, voltamos à génese da história. John Mitchell (John Doman), procurador-geral da altura, incumbiu Richard Schultz (Joseph Gordon-Levitt) e Thomas Foran (J. C. MacKenzie) com uma tarefa grandiosa, que era colocar no banco dos réus as pessoas que Schultz pensava terem sido as responsáveis pelos tumultos sociais, supostamente contra a polícia, junto da Convenção Democrata. Hoffman e Hayden, para além dos outros, serviriam de exemplo para o resto da população, de modo a evitar que mais alguém protestasse contra a guerra. É interessante perceber que o governo norte-americano, sabendo perfeitamente que enveredava por um conflito sem necessidade, estava tão fechado ao diálogo. Uma democracia a apodrecer a olhos vistos, e a história é cíclica.
Um elenco a transbordar de qualidade
Do outro lado da barricada, do lado da defesa, Mark Rylance interpreta William Kunstler, o advogado principal dos sete, ajudado por Leonard Weinglass (Ben Shenkman). O elenco extenso confirma a qualidade que cada um dos nomes carrega consigo. Rylance é soberbo a representar um advogado cansado das manhas de um sistema que parece impossível de ser mudado, como se estivesse a ser comandado por um monstro a quem se corta uma cabeça e nascem-lhe duas logo a seguir. Langella tem também um dos melhores papéis da sua late-career, tornando Julius num homem, honestamente irritante, a dobrar a linha entre o incompetente e o simplesmente horrível.
Faltam-me palavras para elogiar o resto do elenco, que não perde qualquer oportunidade para abrilhantar o argumento provocativo de Sorkin, embebendo-o de uma atualidade quase assustadora. Strong encontra uma grande sensibilidade em Jerry Rubin, num papel que podia muito bem ter servido apenas de comic relief, Mateen II faz-nos entender e apoiar a raiva que sente por ser arrastado para um processo que não é dele, Eddie Redmayne, muitas vezes criticado, encontra aqui o tom certo para um Hayden quase toldado pelo seu intelecto e sentido de superioridade, equilibrada por uma humanidade sincera. Baron Cohen é fascinante no papel e Sorkin aproveita para colocar o ator num dos seus habitats naturais, o stand-up comedy, para avançar com a narrativa, mas a performance do ator só torna a espera por Borat 2 ainda mais dolorosa.
Os 7 de Chicago é carregado de detalhes, desde imagens de arquivo do que aconteceu na realidade entrecortadas com a ficção, as discussões ideológicas entre Hoffmen e Hayden, que partiam de conceções revolucionárias diferentes, o último numa veia mais reformista, apesar de defenderem o mesmo ou as já referidas noites de stand-up de Hoffmen, carregadas de contexto político, como não podia deixar de ser. A facilidade com que a polícia conseguiu infiltrar agentes à paisana junto dos sete de Chicago, ou a mesma facilidade com que se matou um vice-líder dos Panteras Negras, para enfraquecer ainda mais a defesa de Bobby Seale também não foram deixadas de lado.
Parece inacreditável, mas tudo isto cabe nas duas horas que compõem Os 7 de Chicago, um filme virtuoso, cheio de energia e coisas para dizer (não fosse a palavra um dos grandes amores de Sorkin enquanto argumentista). Há uma aparição breve, mas poderosa, de Michael Keaton, que rouba o protagonismo nas duas cenas em que entra, e o privilégio de assistir a toda esta “orquestra” é do espectador.
Há o fantasma das frases feitas de Sorkin, parodiadas nos dias de hoje, como “Nunca fui a julgamento pelos meus pensamentos”, mas até esta maleita cai em boa nódoa no seu último filme, dado aquilo que o realizador consegue alcançar, na denúncia da injustiça, sem parecer que nos está a ditar os eventos de uma posição excessivamente privilegiada. Depois há momentos brilhantes, como quando Weiner, percebendo que é uma figura menor neste xadrez, confessa que “isto é Academia dos Óscares dos acusados e é uma honra simplesmente estar nomeado”, ou quando Hoffman e Rubin vão, num dia de sessão de julgamento, vestidos como o meritíssimo juiz, que lhes pede para tirar as roupas. A dupla tira a fatiota, revelando por baixo equipamentos da polícia de Chicago. Se nalgum mundo existir uma sequela de Os 7 de Chicago, que seja sobre as personagens de Cohen e Strong.
Os 7 de Chicago está cheio de verdades essenciais
E Sorkin sabe colocar o dedo na ferida norte-americana. Está lá de tudo: a crítica à corrupção do poder judicial norte-americano, tão macio face às ideologias pessoais de quem decide o rumo de um ser humano, a forma como a comunidade afro-americana continua a ser tão subjugada em 2020, como o era na década de 60, a urgência de se criar uma revolução quando todas as vias pacíficas falharam, mesmo que isso vá contra as nossas consciências. Está lá também a promiscuidade política, as controvérsias de bastidores que nunca nos são conhecidos, porque é isso que falta no sistema norte-americano, a dita transparência. Está lá a criação de uma ficção dentro da realidade por parte da administração americana, muito semelhante às práticas diárias de Trump.
A tarefa de Aaron é complicada, para além de ser ingrata. Temos, na verdade, um realizador branco a fazer um filme em parte sobre os Panteras Negras, sobre o que eles passaram, numa realidade que nós, brancos, conhecemos, mas nunca conseguiremos entender. Portanto, há um certo medo de abordarmos este tipo de tópicos, porque a melhor solução é dar a voz aos oprimidos, a quem não a tem ou nunca a teve. Damon Lindelof confessou, no ano passado, ter tido reservas em adaptar Watchmen para o pequeno ecrã, porque ia abordar o massacre de Tulsa e sentia que estava apenas a ser mais um homem branco a contar uma história de negros.
Mas no ano passado Lindelof fê-lo com qualidade e respeito. Equipou a sala de argumentistas com profissionais negros que puderam dar os seus testemunhos e acrescentar um toque pessoal a uma história que podia muito bem ter sofrido de incongruências. E é assim que tem de ser feito. Já sabemos que realizadores brancos a contar histórias de negros corre quase sempre mal. Tate Taylor, um realizador branco, foi responsável pelo filme As Serviçais e, anos depois, Viola Davis veio publicamente dizer que, nos dias de hoje, nunca teria feito tal escolha, porque sentia que a história não fazia justiça ao sofrimento da comunidade negra.
Em 2018, Peter Farrelly realizou Green Book, que se tornou altamente divisivo, pela sua narrativa típica em que o homem negro é utilizado apenas para ser ajudado por um branco. Ou muito me engano, ou daqui a alguns anos Green Book terá de ser exibido com um aviso que coloque o filme em contexto, tal como aconteceu com E Tudo o Vento Levou, realizado por Victor Fleming, outro realizador branco. Mas Sorkin foge a estas armadilhas e enche o seu próprio filme de verdades essenciais e que nos custam a aceitar. É uma dramatização de eventos históricos que não foge às repercussões que a sua (verdadeira) história carrega.
Sorkin sabe colocar o dedo na ferida, mas podia haver mais
Repito que Sorkin sabe colocar o dedo na ferida norte-americana. Mas podia tê-lo feito com mais intensidade. Todos estes homens tinham famílias e amizades que estavam a sofrer, tanto como eles, com todo este processo condenatório. Os Panteras Negras, núcleo essencial de Bobby Seale, nunca recebe o foco que merecia, ainda para mais numa época em que a instabilidade política e social levava a tantos confrontos entre o grupo e a polícia. O filme está ocupado com mil e um eventos, mas o lado pessoal podia estar mais presente.
E o final a que o realizador chega é demasiado limpo e glorificador. É verdade que os 7 de Chicago marcaram uma vitória contra a corrupção do sistema, a promiscuidade entre o poder judicial e o poder político que, em teoria, estariam separados. Mas a música vitoriosa, escolhida por Sorkin, que anuncia o destino dos 7 de Chicago, e a forma como conseguiram ultrapassar as armadilhas colocadas pelo governo, não cai muito bem.
A conclusão não tem o impacto desejado. O destino de Seale, ao ser amordaçado em pleno tribunal, devia ter sido encarado como um prenúncio do que continuaria (e continua) a acontecer no país mais “livre” do mundo. E Sorkin podia ter acabado com essa nota em tom de aviso, para termos cuidado com a forma como cuidamos da nossa democracia. A forma como Os 7 de Chicago, mesmo não tendo feito nada para tal, enfrentaram um julgamento de seis meses é sintomático de um sistema corrupto que pode não ter reparação. O tom escolhido pelo realizador é outro, tentando demonstrar que a vitória dos 7, em recurso, foi uma vitória da justiça. Mas será que foi mesmo? Podia ter ido por outro caminho, que saía mais compensador.
Mas Os 7 de Chicago, esquecendo estes pequenos problemas, é um grande filme, marcante, enérgico, com um grande elenco à cabeça, rivalizando, aliás, com A Vida Extraordinária de David Copperfield, para o melhor elenco do ano. E Sorkin é Sorkin. Com os seus diálogos galopantes, o olho para o detalhe, uma história provocadora que parece saída dos tribunais dos nossos dias, um retrato da administração de Nixon que podia ter sido muito bem de Trump, os 7 de Chicago é mais um triunfo de Sorkin. Está disponível na Netflix, aproveitem.