Sempre o Diabo é o segundo grande filme da Netflix lançado este setembro. As páginas do livro The Devil All the Time, do autor Donald Ray Pollock, passaram para os ecrãs de streaming esta quinta-feira (16).
Tom Holland lidera um elenco de luxo que conta ainda com Robert Pattinson, Bill Skarsgård, Riley Keough e Sebastian Stan. A adaptação é liderada por Antonio Campos — realizador e co-autor do argumento da produção.
Tal como a obra literária, Sempre o Diabo retrata almas torturadas no rescaldo do pós-Segunda Guerra Mundial e na antevisão da Guerra do Vietname. Conectadas por sangue e fé, as personagens insidiosas do filme parecem estar sempre a um passo de um destino violento e mortal.
O Espalha-Factos analisa o mais recente original Netflix.
Em nome do Mal
Não são precisos muitos minutos para percebermos um dos temas principais do filme: Religião, mais concretamente, o fanatismo nutrido perante ela. Não havendo uma narrativa tradicional — no sentido de jornada com início, meio e fim — Sempre o Diabo opta por um retrato do dia-a-dia de três famílias influenciadas pela fé e o ambiente que as rodeia. O efeito destrutivo da devoção cega influencia a vida de todas as personagens principais. E não é inocente que os menos crentes acabem por ser os mais afortunados.
Há outras temáticas com mais ou menos predominância como, por exemplo, o trauma provocado pela Guerra tanto nos soldados que regressam quanto nas suas comunidades. Uma reflexão a partir da árvore genealógica dos protagonistas permite detetar uma ligação curiosa com o Naturalismo fatalista de Os Maias. As personagens parecem condenadas a repetir os pecados dos seus antepassados, por muito que tentem abandonar o passado.
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Se a narrativa tem muito que se lhe diga, o mesmo pode ser dito do elenco. Bill Skarsgård transmite o desespero horripilante de um crente que não vê as preces atendidas. A sua tragédia no prólogo da história vai marcar a vida do protagonista de Tom Holland. O ator britânico pode ter-se popularizado com a interpretação como aranhiço da Marvel, contudo é em Sempre o Diago que recebe a aclamação merecida. Uma interpretação subtil, calculada e introvertida que evita exageros e espalhafato e, mesmo assim, absorve o espectador no ecrã. Fiquemos a aguardar as nomeações.
Robert Pattinson mantém a consistência de grandes atuações que tem marcado os últimos anos da carreira, enquanto um sacerdote carismático que é mais perigoso do que aparenta. E uma nota ainda para Kristin Griffith que interpreta a vítima mais injusta do fanatismo — a matriarca que vê a família desmoronar-se em tragédia sem forma de o impedir.
Os pecados da adaptação
Se o conteúdo da escrita é muito bom, graças em parte à qualidade da obra original, a tradução do literário para o cinematográfico falha em alguns aspetos. Se Donald Ray Pollock a narrar o filme baseado no seu livro é um toque bonito, o uso do narrador enquanto engenho narrativo magoa Sempre o Diabo. As frases são muitas vezes repetições ou até spoilers do que acontece imediatamente a seguir. No campo do audiovisual, as imagens não precisam de exposição extra para contar tudo o que necessitamos de saber. Neste caso em particular, o narrador é uma inconveniência em vez de um benefício.
Outro problema da adaptação é a repetição de momentos e propósitos. Nos primeiros quinze minutos, uma cena repete-se depois de um curto e desnecessário salto ao passado que não acrescentou nada. Sempre o Diabo usa muito o in media res. Às vezes, resulta, noutras ocasiões é a mostrar-nos o que o narrador já nos disse ou vice-versa. Tudo isto acaba por atrasar o ritmo do filme, sendo este já mais pausado devido ao carácter da história.
E, num gesto de lealdade ao material original, Sempre o Diabo acaba por incluir cenas que se intrometem na fluidez natural da narrativa. Há histórias secundárias que podiam ser cortadas, três diferentes momentos que dizem o que já sabemos sobre uma dupla de personagens e, em geral, uma opção de jogar pelo seguro no que toca a transcrever as páginas para o ecrã. Ironicamente, é o oposto do que fez Charlie Kaufman em Tudo Acaba Agora — também da Netflix. Com mais alguns cortes arrojados e uma seleção criteriosa de momentos, o filme podia ser mais leve no tempo sem deixar de pesar tematicamente.
Quando se dedica apenas a ser uma obra audiovisual, a película mostra o talento de quem está por trás da câmara. Os planos são ótimos — belos ou brutais. A banda sonora que mistura música tensa com canções da época transporta-nos para o cenário do filme. É um bom trabalho em todos os aspetos por parte de Antonio Campos e a sua equipa.
Sempre o Diabo é mais uma boa oferta da Netflix. Tematicamente rico, representado por um elenco talentoso e digno de prémios, porém com escolhas falhadas do ponto de vista da adaptação da obra original. Um bom filme que podia ser um ótimo filme, com apenas alguns ajustes.