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Saint Maud foi um dos grandes destaques do quinto dia.
A24/ Divulgação

MOTELX ’20: ‘Saint Maud’ entre os destaques do terror no feminino

O quinto dia(11) do MOTELX ’20 saiu destacado pela exibição de dois filmes de terror realizados por mulheres, ambos provenientes da secção Serviço de Quarto. Enquanto Saint Maud é uma produção britânica realizada por Rose Glass, Signal 100 é um filme japonês realizado por Lisa Tabeka. Retratando histórias bastante diferentes, o Espalha-Factos viu ambos os filmes e conta-te tudo sobre eles.

Saint Maud (2019) Nota: 9/10

Ao longo dos tempos, a espécie humana tem encontrado formas de lidar com traumas, umas mais saudáveis que outras. O fanatismo religioso entra no último campo, sendo muitas das vezes responsável pelo desenvolvimento do complexo de Cristo, em que a pessoa sabe que, penitenciando-se com dor e sofrimento, está a cumprir os planos divinos e terá, garantidamente, um lugar no céu na companhia de Deus, num “e viveram felizes para sempre” com consequências bastante obscuras.

É isto que é reproduzido no brilhante Saint Maud, a promissora e auspiciosa estreia de Rose Glass em longas-metragens. Já perto do final do filme, Glass constrói uma cena daquelas que ficam no panteão dos filmes de terror, envolvendo a personagem principal, Maud (Morfydd Clark), a colocar uma série de pregos dentro dos sapatos e a andar com eles descalça para, supostamente, se purificar e estar ainda mais próxima de Deus. “Nunca desperdices a tua dor”, é a frase várias vezes repetida por Maud e Rose cumpre-a na perfeição, doseando com requinte o sofrimento e choque perpetuado na protagonista, não se deixando levar por cenas gratuitas ou previsíveis.

A história centra-se em Katie, uma jovem enfermeira devota que está a recuperar de um horrível acidente profissional, mostrado num rápido plano no início do filme. Apesar de não ser perceptível na totalidade o que aconteceu, a cena sangrenta revela que foi algo que correu muito mal, terminando na morte de uma paciente, que poderá ter outro tipo de repercussões com o avançar da história. Mesmo que nunca cheguemos bem a saber o que se passou, é visível que Katie ficou abalada interiormente, obrigando-se a ter de enveredar por um caminho de reconstrução, passando a ser uma crente fervorosa que se penitencia fisicamente. Aliás, a jovem passa a entender que tudo o que se passa na sua vida faz parte dos planos maiores de Deus.

Uma das decisões que a personagem toma é mudar de nome, passando a chamar-se Maud, para além de abandonar o setor público da saúde, estando agora a trabalhar em casa de pacientes. A escolhida é Amanda (Jennifer Ehle), uma bailarina fragilizada por uma doença, que se vê obrigada a abandonar a profissão e a ficar isolada na sua mansão. O cenário de Saint Maud está montado: de um lado temos Maud, profundamente devota, do outro há Amanda, agnóstica, a viver os seus últimos meses de vida sem querer saber da religião para nada.

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A relação entre as duas começa com o pé direito, numa dinâmica em que Amanda vê em Maud um apoio e a enfermeira vê na paciente alguém que pode doutrinar, dado que Amanda vive a vida sem limites e tabus, chegando a envolver-se com mulheres, algo proibido aos olhos de Maud e da sua religião defensora da pureza de costumes.

Saint Maud assume uma dualidade de tons que joga a seu favor, levando o espectador numa viagem de géneros ao longo da produção. O ponto de partida é que algo de muito errado está a acontecer com Maud e não vem só da pista deixada pela primeira cena do filme. A enfermeira relata a Amanda e ao espectador, em voice-over, que sente Deus dentro de si e que fala com ele. Quando vemos o filme do ponto de vista da protagonista, isto de facto acontece. Mas será que Maud é uma narradora confiável?

Há momentos em que vemos Maud a ser visitada por Deus, através de correntes de ar quentes, que mais a parecem sufocar, como se afinal se tratasse de uma presença maligna. Mas a enfermeira interpreta isto como um sinal divino de que há desígnios que tem de cumprir. E, para chegar a esse final, tem de chamar Amanda à razão, trazê-la para o caminho certo, salvar a sua alma do prazer carnal, do álcool e de todos os outros pecados. Para isso exige, nas suas costas, que a companheira com quem Amanda vai para a cama, nunca mais visite a casa.

Se Maud já apresentava vestígios de uma doença mental, abrindo a já referida dualidade temática do filme, entre ser um verdadeiro produto de terror ou um pormenorizado estudo sobre a (falta) de saúde mental que impera em casos de pessoas fanáticas pela religião, a verdade é que tudo piora quando Amanda descobre que Maud agiu nas suas costas.

Tudo se passa numa festa que acaba terrivelmente mal, com Amanda a expulsar Maud de casa, farta de ver o seu estilo de vida limitado por uma suposta religião em que nem acredita. A cuidadora entra numa autêntica crise de identidade, não percebendo a razão dos planos que Deus tem para ela. Para se vingar de toda esta ‘fachada’, Maud envereda pela vida noturna e aqui entra a magnifica realização de Glass, que usa planos virados ao contrário enquanto Maud passeia pelas ruas à noite, simbolizando que a jovem se está a afastar assustadoramente daquela vida que dizia levar. Ou talvez seja só Maud a deixar que o seu lado negro saia cá para fora, como se há muito estivesse guardado. É aqui que realço a cena dos parafusos, ou quando a personagem decide meter um dedo num fogão a escaldar. A riqueza das camadas temáticas construídas pelo argumento de Rose abre caminho a inúmeras interpretações do que vemos no ecrã.

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O final é fulgorante, sendo o resultado natural de tudo o que vimos até então, oferecendo respostas concretas para a ambiguidade do que se passa no ecrã. Saint Maud funciona como um verdadeiro filme de terror, dado que é uma obra carregada de tensão, planos abertos onde tudo pode acontecer, há a aparição de Deus e do Diabo, influências de O Exorcista e Rosemary’s Baby, mas é, no fim, uma obra original e com a sua própria voz. Acaba por ser um delicado retrato de saúde mental, dos perigos do fanatismo e de quando deixamos que a nossa identidade se perca em função de algo que não vemos ou sentimos, realmente.

Acabo a análise em modo reverência para com as performances de Morfydd Clark enquanto Maud e Jennifer Ehle na pele de Amanda. As duas atrizes apresentam uma química daquelas que perduram no tempo, incendiando o ecrã quando discutem questões de religião e fé. Clark carrega o filme às costas naquele que é o seu primeiro papel principal, construindo uma Maud que parece falar com medo de que, com uma palavra fora do contexto, ela própria se acabar por partir em pedaços, ou quase como se não se sentisse bem na própria pele. A atriz cristaliza a ténue linha entre a fé e a loucura, num papel exigente que acaba, necessariamente, numa tragédia. Rose Glass é o nome mais sonante saído do MOTELX deste ano, e não é por acaso que os estúdios da A24, distribuidora de sucessos como Hereditário, First Reformed e Midsommar, tenha comprado os direitos da sua distribuição.

Signal 100 (2019) Nota: 5/10

O filme japonês apresenta um conceito bastante simples: um professor de uma escola secundária hipnotiza 36 alunos dentro de uma sala de aula e estabelece 100 regras, desconhecidas para eles, que terão de descobrir e não violar. Caso façam algo que a regra diga para não fazer, o aluno em questão vai suicidar-se, sem forma de escapar a esse terrível destino. A única maneira da hipnose acabar é que haja apenas um sobrevivente.

A produção, realizada por Lisa Tabeka, é basicamente uma reinvenção do clássico Battle Royale, que serviu de inspiração à saga Jogos da Fome. As 100 regras montadas pelo professor, como ‘não podem haver telemóveis’, acabam por ser demasiadas, caindo no ridículo de ‘não poder haver banhos de cerveja’.

As mortes dos alunos estão bem feitas, sendo uma forte representação do J-Horror (japonese horror), acabando por ser gory, com cenas violentas e exageradas. No entanto, o filme não tem muito mais a dizer do que ser mais um comentário face ao que os humanos conseguem fazer quando são postos em situações extremas, em que precisam de lutar para sobreviver.

Apesar da simplicidade da história, de algumas falhas no argumento e repetição nas formas de suicídio de alguns dos 36 alunos, Signal 100 acaba por sair recomendado para os fanáticos de J-Horror, sendo uma experiência divertida dado o extremismo das mortes representadas no ecrã.