Os produtos culturais podem ser divididos, se quisermos fazer esse exercício, em duas categorias. Existem aqueles que dão a sensação de que foram criados para um tempo ou momento específico aquando do seu lançamento. Mas do outro lado da barricada temos os outros que, independentemente de quando são vistos, parecem ser sempre atuais, como se estivessem a falar continuadamente para os nossos dias, preservando integralmente a sua ressonância. Hamilton pertence, sem dúvida, a este último grupo e, para além de ser um musical maravilhoso, é uma experiência com um grande impacto, daquelas que deixam o espectador a reflectir sobre o que viu durante muito tempo.
Em primeiro lugar, é preciso avisar que Hamilton não é um filme no sentido tradicional da palavra. Trata-se, na verdade, de uma gravação da performance ao vivo do inovador musical da Broadway que conta a história de Alexander Hamilton, um dos pais fundadores dos Estados Unidos da América enquanto nação.
Adiando a análise substancial de Hamilton, esclarecem-se agora alguns factos para uma melhor compreensão do que será posteriormente exposto. A gravação que vemos é o resultado das filmagens de três noites de exibição em junho de 2016 no Teatro Richard Rodgers, pouco antes de Lin-Manuel Miranda – criador e ator que dá vida ao titular Alexander Hamilton – e outros elementos importantes do elenco original abandonarem os seus papéis para se dedicarem a outros projetos.
Há cinco meses, a Disney comprou os direitos de distribuição desta filmagem, já com quase cinco anos de existência, e o plano inicial era lançar esta versão nos cinemas durante o inverno de 2021. Entra em cena a pandemia Covid-19, provocando uma alteração nos planos. A Disney decidiu então lançar o espectáculo a 3 de julho na sua plataforma de streaming, a Disney+.
Hamilton não podia vir em melhor altura. Com as salas de cinema fechadas há largos meses, tal como teatros e museus, poder assistir a Hamilton diretamente da sala de espectáculos da Broadway, de forma quase imaculada, para os nossos pequenos ecrãs, é praticamente catártico. Estando ainda muitos num lento processo de desconfinamento, o filme transporta-nos para o teatro, graças às nove câmaras lideradas pelo realizador Thomas Kail, e faz-nos sentir que estamos na audiência, a assistir ao desenrolar deste colorido musical que marca quem o vê.
Parece algo quase necessário: sentir que estamos a assistir a algo (semi)novo – a banda-sonora do musical está disponível online desde 2015 – é uma sensação nostálgica, um reentrar nos locais onde somos felizes, como nas salas de cinema ou nos teatros, experiências que parecem, por enquanto, pertencentes a uma outra vida.
Já estamos habituados a ver filmes lançados nas plataformas de streaming, sem intervalos, apresentações, anúncios, ou o (irritante) burburinho das pessoas do lado. Mas Hamilton é também, em parte, revolucionário devido às circunstâncias que rodeiam o lançamento do filme, ao convidar-nos a tomar o nosso lugar marcado no teatro Richard Rodgers, e a deixarmo-nos levar por esta história do nascimento dos Estados Unidos, mesmo que pintado aqui em tons mais vibrantes do que os da realidade. A gravação cumpre tão bem esta função que não deixa de lado a audiência daquele teatro, nem omite os aplausos que se vão somando canção após canção. É como se tivéssemos pago bilhete e estivéssemos naquele instante a ver este pedaço importante da cultura contemporânea norte-americana a desenrolar-se à nossa frente. É o mais próximo que podemos estar da emoção de o ver ao vivo.
O carácter revolucionário de Hamilton não se limita à forma como demonstra ser um antídoto para esta pandemia que teima em não abandonar a nossa atualidade. Vai muito para além disso, contribuindo para um resultado final que é tanto visceral quanto pertinente para a instabilidade social que se vive nos Estados Unidos nos dias de hoje.
Mesmo antes da covid-19, o clima otimista que se vivia nos EUA, proveniente muito por força da administração de Barack Obama, já há muito que se tinha dissipado. As conquistas em termos de direitos sociais têm-se esbatido ao longo dos anos com a subida de Donald Trump ao poder, que propiciou o regresso de grupos supremacistas brancos para as ruas, chegando muitos deles até a desempenhar cargos na Casa Branca. Tudo isto culminou no terror que as comunidades minoritárias sentem hoje em dia. Crianças imigrantes fechadas em jaulas, centenas de vídeos que reproduzem a violência policial sobre pessoas de cor, principalmente cidadãos negros, como o mundo inteiro testemunhou no caso do assassinato de George Floyd, como tantos outros. Que rumo está a tomar os Estados Unidos da América?
É com este curto e conciso retrato da realidade dos nossos dias que coloco Hamilton naquela categoria de produtos culturais que são relevantes independentemente do momento em que o vemos. O espectáculo foi gravado em 2016, no período de transição da administração de Obama para a de Trump, sem poder prever a situação atual. Mas a verdade é que a sua história, a sua mensagem, e as suas decisões narrativas são universais, e nunca foram tão relevantes e necessárias como nestes tempos de crise social.

Quando o musical chegou à Broadway pela primeira vez em 2015, pareceu dar a sensação de que era o culminar da era Obama. Ao serem escolhidos atores de cor para todos os papéis principais (com a excepção do virtuoso Jonathan Groff na pele do monarca britânico, o Rei George III), procedeu-se a um recontar da história dos fundadores dos Estados Unidos da América e do seu nascimento enquanto país de uma forma nunca antes feita, com a diversidade racial de um musical que é o expoente máximo da promessa de uma sociedade com mais paridade, que dois mandatos do primeiro presidente afro-americano de sempre dos EUA pareciam oferecer. Fica a dúvida se, se fosse hoje, Hamilton poderia ter feito o que fez e alcançar o que alcançou – do casting às escolhas narrativas, há uma coragem e criatividade que são frutos de uma olhar esperançoso para o futuro estado-unidense típicos da era Obama, um otimismo perdido em quatro anos de presidência de Trump.
Mas a verdade é que ver pessoas de cor, em 2020, a representar esses mesmos papéis dos fundadores da América, tem ainda mais efeito hoje, com o assassinato de George Floyd às mãos da polícia, evento que reacendeu um urgente processo de reflexão sobre o racismo estrutural ainda bem marcado nos Estados Unidos, presente desde o nascimento do país. Ver Chris Jackson interpretar George Washington como um carismático homem afro-americano que se torna o primeiro e mais importante líder do país nos tempos da sua fundação, reescrevendo a história, força-nos a questionar como teria sido o desenvolvimento daquela nação se todas as minorias tivessem lugar à mesa de discussão desde o início. A maior parte dos descendentes daqueles que verdadeiramente construíram a América continuam, ainda hoje, a lutar por igualdade, pela chance estarem na sala onde tudo acontece.
Apesar de Hamilton ser entretenimento, na sua génese, as ideias colocadas em prática pelo enredo pedem a nossa consideração – principalmente a do povo americano, que se vê novamente a braços com uma das maiores crises sociais que alguma vez sentiu. A peça parece agora quase um ato de rebeldia contra a cada vez mais sentida tirania de Trump.
Esta revisão histórica não deixa de lado, porém, críticas aos erros que os Estados Unidos da América cometeram, enquanto nação, desde a sua fundação. Hamilton chama a atenção de Thomas Jefferson (Daveed Diggs) e de outros políticos sulistas para as suas práticas esclavagistas, e Angelica (Renée Elise Goldsberry) queixa-se, a meio da peça, do machismo inerente à frase consagrada na Constituição – que “todos os homens foram criados iguais”, ao invés de “todas as pessoas foram criadas iguais”. Aliás, o único aspeto negativo que tenho a apontar à peça é o facto de tentar, de certa forma, idealizar a história dos fundadores dos EUA, para além do facto de Alexander Hamilton nunca ter sido, na verdade, um abolicionista convicto, nem de nunca ter feito disso um dos objetivos principais da sua agenda política.

Lin-Manuel Miranda, a mente brilhante por detrás deste novo clássico, é transcendente no papel principal de Alexander Hamilton. A sua performance e talento são ainda mais palpáveis quando adicionamos o facto de Miranda ter sido igualmente responsável pela escrita de todas as 46 músicas que compõem as duas horas e quarenta minutos deste longo musical. É particularmente notável quando percebemos que este é um verdadeiro musical em que, sendo quase inteiramente composto por diálogos cantados (sendo quase inexistentes as falas que não são partes de músicas), as personagens são perfeitamente desenvolvidas do ponto de vista dramático e narrativo, sem precisar de recorrer ao diálogo falado. Marco disso é o facto de, para além de muitos Grammys e Tonys, o texto de Lin-Manuel Miranda ter também ganho o Prémio Pulitzer para Teatro em 2016.
A caracterização de Alexander Hamilton parece especialmente pertinente em 2020, na medida em que Lin-Manuel retrata-o como sendo, inicialmente, um órfão estrangeiro, pobre, vindo das Índias Ocidentais, que luta por mais direitos até chegar a um papel relevante no Congresso. É quase um ataque, uma seta apontada à atual administração americana que demoniza, ataca, e maltrata os imigrantes que chegam ao território norte-americano. Na música ‘Washington By Your Side’, por exemplo, Thomas Jefferson diz-nos que “este imigrante não foi alguém que escolhemos”, referindo-se a Hamilton – um exemplo de como as pessoas influentes e privilegiadas tendem a automaticamente excluir a possibilidade de ascensão de pessoas de comunidades minoritárias a posições de poder social ou político.
Para além de Miranda, todo o elenco é extraordinário, não havendo elementos fracos ou que se destaquem pela negativa. Leslie Odom Jr. não é menos impressionante a dar vida a Aaron Burr, sendo o portador da maior voz do elenco, que brilha tanto nos momentos emocionais, como em ‘Dear Theodosia’, uma tocante canção para a sua filha, como em cenas onde espelha a sua raiva, causada pela inveja de não fazer parte do grupo que toma as grandes decisões do país.
Daveed Diggs tem um papel duplamente exigente, interpretando Lafayette, um guerreiro francês defensor da liberdade e ainda, no segundo ato, Thomas Jefferson, aqui representado como um político narcisista e oportunista que tenta montar esquemas contra Hamilton.
Phillipa Soo é um dos centros emocionais da peça como Eliza, a leal companheira de Alexander, ao equilibrar a felicidade amorosa com a tristeza sentida quando se vê trocada por outra mulher, e Renee Elise Goldberry é igualmente eficiente a representar o desenvolvido arco dramático de Angelica, a irmã de Eliza, que aceita pôr de lado o seu amor por Hamilton para que a sua irmã seja feliz. Uma última menção, também, para o já referido Jonathan Groff, que interpreta magnificamente o Rei George III, que desdenha os movimentos revolucionários americanos, emprestando humor e preciosismos deliciosos ao papel.
Do ponto de vista técnico, esta versão gravada do musical Hamilton é o mais próximo que muitos de nós alguma vez estaremos do espectáculo original da Broadway. E apesar de ser uma gravação, tudo foi feito para que seja o mais cinematográfico possível. O trabalho de câmara, edição e som conseguem alimentar um pouco mais esta experiência, especialmente com os vários close-ups que pontilham a montagem do filme, que nos permite assistir, como se estivéssemos na primeira fila, à emoção e intensidade (até o suor e saliva) das performances dos atores enquanto estes dão vida a estas personagens históricas.
Privilegia-se a intimidade nos momentos mais emocionais de Hamilton, enquanto que a câmara se afasta do palco, utilizando os wide shots, nas cenas mais preenchidas e caóticas da peça, para que o público em casa tenha a maior percepção possível da grandiosidade de tudo o que se passa em cima do palco. É uma estratégia que resulta bem, dado que mesmo nas cenas em que podemos ver o palco inteiro, mantém-se ainda uma proximidade calorosa com o elenco, e isto não é algo fácil de se conseguir, ainda para mais dada a magnitude de Hamilton, seja ao nível do vestuário, do elenco, ou da coreografia e números musicais.

Todos os números musicais são, na sua larga maioria, gloriosos. Desde o já famoso ‘My Shot’, até ‘The Story of Tonight’ ou ‘Helpless’ (que nos permite apreciar a poderosa e angelical capacidade vocal do elenco feminino), culminando no emocional e glorioso final com ‘Who Lives, Who Dies, Who Tells Your Story’. As músicas, recheadas de lições de história, escândalos, sacrifícios pessoais para causas maiores e ambições desmedidas, foram escritas de forma magistral.
Não é por acaso que as músicas se tornaram tão famosas desde 2015, com o lançamento do álbum gravado com o elenco original da Broadway, e a versão filmada do espectáculo seja agora, para muitas das pessoas que já conheciam as músicas, apenas uma forma de finalmente juntar expressões faciais e rostos às letras que já tinham decorado. É que, na verdade, as músicas por si só contam a história inteira, e isto é um dos maiores feitos de Lin-Manuel Miranda, especialmente pela fusão épica de estilos, desde o rap, que dá vida às discussões políticas em torno da construção da nação americana, até ao pop e ao soul.
A integralidade da peça foi escrita, ensaiada, representada e gravada muito antes do pesadelo que estamos todos agora a viver, mas cada música, cada cena, parece ter sido feita para o momento que vivemos agora. Certamente Miranda e o resto dos seus colaboradores não possuem nenhum poder divinatório, mas a verdade é que a história americana, país construído sobre tragédias tanto quanto triunfos, consegue, ao longo dos tempos, repetir-se a ela própria.
O espectáculo parece, no seu final, apontar com otimismo para o que se avizinha no futuro. E essa esperança surge quando um espetáculo como este, feito nos moldes em que foi feito – do elenco diverso à apropriação histórica de personagens que pertencem, no fundo, a uma história comum e coletiva americana – e que conseguiu ser produzido, apresentado, aplaudido e, hoje, promovido por uma das maiores empresas de entretenimento do mundo, e que se tornou um fenómeno cultural que continua vivo, cinco anos depois da sua estreia. Hamilton é um trabalho revolucionário, digno de ser visto e reverenciado por muitos e vindouros anos.
Hamilton estará disponível na plataforma de streaming Disney + quando esta chegar a Portugal a 15 de setembro de 2020, e podes ouvir o álbum completo no Spotify.