Na noite de 7 de julho de 2011, milhões de fãs da famosa saga Harry Potter espalhados por todo o mundo esperavam, vestidos a rigor como as suas personagens favoritas, com os seus bilhetes na mão, numa mistura de emoção e tristeza, a estreia de Harry Potter e os Talismãs da Morte: Parte 2.
Para uma geração de leitores, a minha, a infância estava a chegar ao fim, era o encerrar de um capítulo. O último livro tinha saído em 2007, mas este era o final definitivo, dado que já não haveria novas estreias de filmes, lançamentos de livros à meia-noite, ou novas revelações. Sete livros e oito filmes depois, Harry Potter tinha acabado. Mas, afinal, J. K. Rowling, a autora dos livros, tinha outros planos para o rapaz que sobreviveu.
Aquando da estreia do último filme, Rowling tinha deixado uma mensagem reconfortante aos fãs que ficaram tristes com o final das aventuras do feiticeiro mais famoso do mundo: “Nenhuma história existe a menos que alguém a queira ouvir. As histórias que mais amamos vivem dentro de nós para sempre. Caso vás folhear página a página, ou vejas os filmes todos mais uma vez, Hogwarts estará sempre à tua espera.”
No alto dos meus 12 anos, quando os créditos finais do último filme acabavam de passar no grande ecrã, percebi que era altura de enfrentar um mundo sem Harry Potter. Confesso que voltei aos filmes e livros mais algumas vezes, dado o conforto que me proporcionou ao longo da infância. Era como regressar a um lugar onde sempre fui feliz. Porém, estava longe de imaginar o que estava para acontecer.
Hoje, apesar de novos filmes terem sido lançados e ter saído uma peça de teatro, as novas histórias que saem do universo mágico, oficialmente intitulado de Wizarding World, parecem ter os dias contados ou, pelo menos, acabaram-se os tempos de ouro. A razão? Todas as confusões criadas pela própria criadora da saga do rapaz que sobreviveu, J. K. Rowling.
A polémica mais recente
Começo pelo fim, ao analisar a mais recente controvérsia com que Rowling nos brindou. No sábado, 6 de junho, a autora britânica escreveu uma série de tweets polémicos para os seus 14 milhões de seguidores, onde cimentou a sua posição anti-transgénero.
A polémica começou quando J. K. comentou um artigo de opinião da Devex, uma plataforma digital de apoio ao desenvolvimento global da comunidade, onde é defendida a criação de um mundo mais igualitário depois da pandemia para as “pessoas que menstruam”.
‘People who menstruate.’ I’m sure there used to be a word for those people. Someone help me out. Wumben? Wimpund? Woomud?
Opinion: Creating a more equal post-COVID-19 world for people who menstruate https://t.co/cVpZxG7gaA
— J.K. Rowling (@jk_rowling) June 6, 2020
“Pessoas que menstruam. Tenho a certeza que existia uma palavra para definir essas pessoas. Alguém me ajude lembrar-me”, pode ler-se no tweet publicado pela escritora.
If sex isn’t real, there’s no same-sex attraction. If sex isn’t real, the lived reality of women globally is erased. I know and love trans people, but erasing the concept of sex removes the ability of many to meaningfully discuss their lives. It isn’t hate to speak the truth.
— J.K. Rowling (@jk_rowling) June 6, 2020
A autora prosseguiu na sua defesa contra a comunidade transgénero, ao criticar a ideia de que o sexo biológico da pessoa não é real. “Se o sexo não é real, então não existe atração pelo mesmo sexo. Se o sexo não é real, a realidade vivida pelas mulheres globalmente é apagada”, refere Rowling.
“Eu conheço e gosto de pessoas trans, mas apagar o conceito de sexo remove a possibilidade de muitas poderem discutir as suas vidas de forma significativa. Não é discurso de ódio se eu estiver a dizer a verdade. Eu respeito o direito de todas as pessoas trans a viver da forma que for autêntica e confortável para elas. Eu marcharia em protestos convosco caso fossem discriminadas por serem pessoas trans. Ao mesmo tempo, a minha vida foi moldada pelo facto de ser uma mulher. Eu não acredito que dizer isso seja propagar ódio”, concluiu.
As reações que não tardaram a vir
As primeiras reações no Twitter não se fizeram esperar, e estes comentários de Rowling foram fortemente criticados, sendo apelidados de transfóbicos e anti-trans, dado que a escritora parece esquecer-se que pessoas transgénero, não-binárias e não-conformes com o seu género, também menstruam, independentemente de se identificarem ou não como mulheres.
JK Rowling continues to align herself with an ideology which willfully distorts facts about gender identity and people who are trans. In 2020, there is no excuse for targeting trans people.
— GLAAD (@glaad) June 7, 2020
Uma organização que promove os direitos LGBTQ+, a GLAAD (Aliança Gay e Lésbica contra a Difamação), respondeu aos tweets de Rowling, defendendo que a autora alinhou ao lado de uma ideologia que “distorce de forma deliberada factos sobre a identidade de género e pessoas trans.” A organização, num tweet publicado, conclui referindo que “em 2020 não há desculpa para atingir pessoas trans.”
A decisão de Rowling em partilhar as suas crenças sobre a identidade trangénero trouxe um nível de recriminação e condenação do tamanho da sua legião de fãs. Até Daniel Radcliffe, a estrela da saga que interpretou Harry Potter no grande ecrã, sentiu a necessidade de demonstrar que apoia os direitos da comunidade transgénero. Fê-lo através de um ensaio para o Projecto Trevor, uma organização sem fins lucrativos dedicada a combater crises e a prevenir suicídios dentro da comunidade trans.
“Mulheres transgénero são mulheres,” refere Radcliffe. “Qualquer argumentação em contrário apaga a identidade e a dignidade de pessoas transgénero, e isso vai contra todos os conselhos dados pelas associações profissionais de cuidados de saúde, que possuem muito mais conhecimento sobre o assunto que Rowling, ou que eu próprio.”
O ator de 30 anos detalhou que 78% dos jovens não-binários e transgénero queixaram-se de que foram alvo de discriminação devido à sua identidade de género. “Com estes dados fica claro de que precisamos de fazer algo mais para apoiar pessoas transgénero e não-binárias, não podemos invalidar as suas identidades, nem causar-lhes qualquer tipo de perigo”, escreveu ainda Radcliffe.
Logo após esta tomada de posição, foi a vez do ator Eddie Redmayne, que interpreta Newt Scamander na nova saga do universo de Harry Potter, prestar um depoimento à Variety, onde defendeu igualmente os direitos das comunidades transgénero, repudiando ainda os comentários de Rowling sobre o tema. “Eu discordo dos comentários da Jo”, disse Redmayne, marcando a sua posição. “Mulheres trans são mulheres, homens trans são homens e identidades não-binárias são válidas.”
Trans people are who they say they are and deserve to live their lives without being constantly questioned or told they aren’t who they say they are.
— Emma Watson (@EmmaWatson) June 10, 2020
Mais recentemente, Emma Watson, que interpretou Hermione Granger no grande ecrã, divulgou um tweet acerca da sua visão sobre os direitos trans. “As pessoas trans são aquilo que elas dizem ser, e merecem viver as suas vidas sem estarem a ser constantemente questionadas ou informadas de que não são quem dizem ser”, escreveu Emma.
I donate to @Mermaids_Gender and @mamacash. If you can, perhaps you’ll feel inclined to do the same. ❤️
— Emma Watson (@EmmaWatson) June 10, 2020
Watson continuou o seu testemunho no Twitter, dizendo: “Quero que os meus seguidores trans saibam que, tanto eu como muito outra gente de todo o mundo, vos vê, vos respeita, e vos ama por aquilo que vocês são.” Emma também indicou duas organizações defensoras dos direitos trans, dizendo que faz constantes doações para elas, e encorajou ainda os seus seguidores a fazer o mesmo.
Word. Goodnight and shut up @jk_rowling https://t.co/Cz0U6EmPfj
— Sarah Paulson (@MsSarahPaulson) June 7, 2020