O Espalha-Factos terminou. Sabe mais aqui.
British writer JK Rowling, author of the Harry Potter series of books, poses during the launch of new online website Pottermore in Londo
Reprodução/D.R

Opinião. J.K. Rowling: do céu ao inferno num instante

As polémicas sucedem-se em torno de J. K. Rowling, deixando a sua legião de fãs completamente desapontada.

Na noite de 7 de julho de 2011, milhões de fãs da famosa saga Harry Potter espalhados por todo o mundo esperavam, vestidos a rigor como as suas personagens favoritas, com os seus bilhetes na mão, numa mistura de emoção e tristeza, a estreia de Harry Potter e os Talismãs da Morte: Parte 2.

Para uma geração de leitores, a minha, a infância estava a chegar ao fim, era o encerrar de um capítulo. O último livro tinha saído em 2007, mas este era o final definitivo, dado que já não haveria novas estreias de filmes, lançamentos de livros à meia-noite, ou novas revelações. Sete livros e oito filmes depois, Harry Potter tinha acabado. Mas, afinal, J. K. Rowling, a autora dos livros, tinha outros planos para o rapaz que sobreviveu.

Aquando da estreia do último filme, Rowling tinha deixado uma mensagem reconfortante aos fãs que ficaram tristes com o final das aventuras do feiticeiro mais famoso do mundo: “Nenhuma história existe a menos que alguém a queira ouvir. As histórias que mais amamos vivem dentro de nós para sempre. Caso vás folhear página a página, ou vejas os filmes todos mais uma vez, Hogwarts estará sempre à tua espera.”

No alto dos meus 12 anos, quando os créditos finais do último filme acabavam de passar no grande ecrã, percebi que era altura de enfrentar um mundo sem Harry Potter. Confesso que voltei aos filmes e livros mais algumas vezes, dado o conforto que me proporcionou ao longo da infância. Era como regressar a um lugar onde sempre fui feliz. Porém, estava longe de imaginar o que estava para acontecer.

Hoje, apesar de novos filmes terem sido lançados e ter saído uma peça de teatro, as novas histórias que saem do universo mágico, oficialmente intitulado de Wizarding World, parecem ter os dias contados ou, pelo menos, acabaram-se os tempos de ouro. A razão? Todas as confusões criadas pela própria criadora da saga do rapaz que sobreviveu, J. K. Rowling.

A polémica mais recente

Começo pelo fim, ao analisar a mais recente controvérsia com que Rowling nos brindou. No sábado, 6 de junho, a autora britânica escreveu uma série de tweets polémicos para os seus 14 milhões de seguidores, onde cimentou a sua posição anti-transgénero.

A polémica começou quando J. K. comentou um artigo de opinião da Devex, uma plataforma digital de apoio ao desenvolvimento global da comunidade, onde é defendida a criação de um mundo mais igualitário depois da pandemia para as “pessoas que menstruam”.

Pessoas que menstruam. Tenho a certeza que existia uma palavra para definir essas pessoas. Alguém me ajude lembrar-me”, pode ler-se no tweet publicado pela escritora.

 

A autora prosseguiu na sua defesa contra a comunidade transgénero, ao criticar a ideia de que o sexo biológico da pessoa não é real. “Se o sexo não é real, então não existe atração pelo mesmo sexo. Se o sexo não é real, a realidade vivida pelas mulheres globalmente é apagada”, refere Rowling.

“Eu conheço e gosto de pessoas trans, mas apagar o conceito de sexo remove a possibilidade de muitas poderem discutir as suas vidas de forma significativa. Não é discurso de ódio se eu estiver a dizer a verdade. Eu respeito o direito de todas as pessoas trans a viver da forma que for autêntica e confortável para elas. Eu marcharia em protestos convosco caso fossem discriminadas por serem pessoas trans. Ao mesmo tempo, a minha vida foi moldada pelo facto de ser uma mulher. Eu não acredito que dizer isso seja propagar ódio”, concluiu.

Após a leitura destes tweets, penso que fica imediatamente claro um triste ponto: a autora não acredita que mulheres transgénero sejam mulheres, ou que homens transgénero sejam homens.

As reações que não tardaram a vir

As primeiras reações no Twitter não se fizeram esperar, e estes comentários de Rowling foram fortemente criticados, sendo apelidados de transfóbicos e anti-trans, dado que a escritora parece esquecer-se que pessoas transgénero, não-binárias e não-conformes com o seu género, também menstruam, independentemente de se identificarem ou não como mulheres.

Uma organização que promove os direitos LGBTQ+, a GLAAD (Aliança Gay e Lésbica contra a Difamação), respondeu aos tweets de Rowling, defendendo que a autora alinhou ao lado de uma ideologia que “distorce de forma deliberada factos sobre a identidade de género e pessoas trans.” A organização, num tweet publicado, conclui referindo que “em 2020 não há desculpa para atingir pessoas trans.” 

A decisão de Rowling em partilhar as suas crenças sobre a identidade trangénero trouxe um nível de recriminação e condenação do tamanho da sua legião de fãs. Até Daniel Radcliffe, a estrela da saga que interpretou Harry Potter no grande ecrã, sentiu a necessidade de demonstrar que apoia os direitos da comunidade transgénero. Fê-lo através de um ensaio para o Projecto Trevor, uma organização sem fins lucrativos dedicada a combater crises e a prevenir suicídios dentro da comunidade trans.

“Mulheres transgénero são mulheres,” refere Radcliffe. “Qualquer argumentação em contrário apaga a identidade e a dignidade de pessoas transgénero, e isso vai contra todos os conselhos dados pelas associações profissionais de cuidados de saúde, que possuem muito mais conhecimento sobre o assunto que Rowling, ou que eu próprio.”

O ator de 30 anos detalhou que 78% dos jovens não-binários e transgénero queixaram-se de que foram alvo de discriminação devido à sua identidade de género. “Com estes dados fica claro de que precisamos de fazer algo mais para apoiar pessoas transgénero e não-binárias, não podemos invalidar as suas identidades, nem causar-lhes qualquer tipo de perigo”, escreveu ainda Radcliffe.

Logo após esta tomada de posição, foi a vez do ator Eddie Redmayne, que interpreta Newt Scamander na nova saga do universo de Harry Potter, prestar um depoimento à Variety, onde defendeu igualmente os direitos das comunidades transgénero, repudiando ainda os comentários de Rowling sobre o tema. “Eu discordo dos comentários da Jo”, disse Redmayne, marcando a sua posição. “Mulheres trans são mulheres, homens trans são homens e identidades não-binárias são válidas.”

Mais recentemente, Emma Watson, que interpretou Hermione Granger no grande ecrã, divulgou um tweet acerca da sua visão sobre os direitos trans. “As pessoas trans são aquilo que elas dizem ser, e merecem viver as suas vidas sem estarem a ser constantemente questionadas ou informadas de que não são quem dizem ser”, escreveu Emma.

Watson continuou o seu testemunho no Twitter, dizendo: “Quero que os meus seguidores trans saibam que, tanto eu como muito outra gente de todo o mundo, vos vê, vos respeita, e vos ama por aquilo que vocês são.” Emma também indicou duas organizações defensoras dos direitos trans, dizendo que faz constantes doações para elas, e encorajou ainda os seus seguidores a fazer o mesmo.

Não posso deixar de referir Sarah Paulson, a atriz de American Horror Story, que fez uma declaração curta e gentil, partilhando o testemunho do produtor criativo Ben O’Keefe. “É isto. Boa noite e cala a boca.”, escreveu Paulson, referindo-se a J. K. Rowling.

A reação de Ben O’Keefe, que serviu de sustento ao tweet de Paulson, foi bem mais vincada: “Esta mulher é uma completa idiota. Cala a boca, sua transfóbica de m****. Tu não conheces ou amas nenhuma pessoa trans se nem reconheces a sua existência. Obrigado por arruinares os livros da minha infância. Apenas para de falar. Sabemos que és uma TERF. Não precisas de continuar a fazer isto.”

Do lado da comunidade dos fãs, Melissa Anelli, a criadora de Mischief Management, uma organização que promove eventos de fãs de Harry Potter, disse à Variety que “alguém que lutou tanto pela defesa da igualdade e tolerância durante tantos anos, para agora estar a ostracizar de forma tão ativa um grupo marginalizado — como todos os fãs de Harry Potter se devem estar a sentir neste momento, eu sinto-me devastada. Apoiar uma criadora que partilha este tipo de opiniões é muito difícil.” 

A desinformação partilhada por J. K. Rowling é uma chapada a uma geração que cresceu a ler os livros de Harry Potter, que nos ensinaram a aceitar diferenças. Agora é a própria autora que se recusa a iniciar diálogo com líderes LGBTQ e a reconhecer o impacto negativo que este tipo de tweets tem em relação às minorias.

Em relação a mim, os seus livros deram-me esperança de que, todos juntos, podíamos criar um mundo melhor, mais inclusivo, e causa-me choque ver Rowling contrariar todos os ideais que proclamou na saga. Vê-la alinhar ao lado de ideologias anti-científicas, que recusam reconhecer dignidade humana básica a pessoas que sejam transgénero, deixa-me triste, mas não surpreendido.

Mas se é esta a sua opinião, que seja. Não podemos, porém, deixar que estes comentários coloquem a comunidade transgénero em risco. É tempo de darmos voz a quem tem estado a ser colocado em segundo plano, apoiarmos as pessoas trans, e as suas reivindicações, para serem tratadas de forma mais justa e igualitária.

Custa-me dizer isto, mas não alinho ao lado de J. K. Rowling, mesmo que esta tenha criado o universo que ainda hoje acompanha a minha vida. Não o posso fazer quando coloca em causa os meus ideais, a minha integridade, mas quando, acima de tudo, coloca em risco a simples existência da comunidade trans.

A (estranha) reação tardia da Warner Bros.

A Warner Bros. enviou um comunicado oficial à Variety sobre toda a polémica que se gerou em torno dos comentários transfóbicos de Rowling, sem, contudo, abordar o problema em específico. A produtora continuou a defender as ideias de diversidade e inclusão tanto no seu espaço de trabalho, como nos projectos que irá desenvolver no futuro. Realçou também que, enquanto empresa, promete que se irá envolver em questões sociais.

“Reconhecemos a nossa responsabilidade em promover a empatia e defender a inclusão de todas as comunidades e de todas as pessoas, particularmente aquelas com quem trabalhamos e aquelas com as quais contactamos através do nosso conteúdo”, poderá ler-se no comunicado.

Esta é uma resposta bastante genérica e vazia, na medida em que, para além de não referir o nome de Rowling em específico, não aborda o seu passado marcado por várias afirmações transfóbicas, nem as suas graves declarações mais recentes. Parece que a Warner Bros. está a fugir da polémica, recorrendo a lugares-comuns na sua argumentação, e isto é problemático, dado que esta é a produtora que está encarregue de financiar o trabalho e envolvimento de J. K. Rowling no lançamento dos últimos três filmes de Animais Fantásticos.

A resposta de Rowling

Com o crescer dos protestos em reação aos tweets recentes de J. K. Rowling acerca das pessoas transgénero, a autora de Harry Potter publicou na sua página oficial um ensaio de 3 600 palavras, onde justifica a decisão de falar sobre a questão trans. No longo texto, Rowling falou ainda sobre o seu “primeiro casamento violento”, e que ela própria é uma “sobrevivente de violência doméstica e de agressões sexuais.”

“Estou a referir estes factos agora, não numa tentativa de ganhar simpatia, mas por solidariedade com um grande número de mulheres que têm histórias semelhantes à minha, que foram criticadas por terem preocupações em relação a espaços de sexo único”, escreveu Rowling. A escritora acredita que o ativismo transgénero pode “apagar a definição legal de sexo e substituí-lo por género”, o que, segundo Rowling, irá ter um “impacto significativo” nas causas feministas que ela apoia, incluindo mulheres prisioneiras e sobreviventes de abuso sexual e doméstico.

Para Rowling, enquanto antiga professora e criadora da organização de caridade para crianças, Lumos, tudo isto leva-a a ter “profundas preocupações” sobre a forma como ela vê a cada vez maior urgência por parte dos jovens para concluírem a mudança de género.

Sem referir qualquer tipo de pesquisa específica que suporte os seus dados estatísticos, Rowling diz que houve uma “enorme explosão” da quantidade de jovens mulheres que se querem tornar homens, e também um “aumento dos números” de pessoas trans que, nas palavras da autora, querem voltar ao seu género original.

Ao longo dos anos tem existido a especulação dentro da comunidade trans de que J. K. Rowling teria uma visão bastante influenciada pela transfobia. A autora publicou um tweet, em dezembro do ano passado, que, infelizmente, confirmou essas suspeitas, e comprovou que Rowling é uma TERF.

TERFs [trans exclusionary radical feminists] são feministas radicais que promovem a exclusão das pessoas trans do universo feminista. A lógica deste movimento tem a ver com a recusa em aceitar que pessoas trans sejam do género que proclamam ser, em contraposição com o género que lhes foi associado na altura do seu nascimento.

Para estas “feministas”, integrar estes ideais é também contestar a inclusão de mulheres trans no conceito de “mulher”, e a sua presença em “espaços femininos”, como provadores, alas de hospitais segregadas com base em género, ou até abrigos para vítimas de violação, dado que isso seria uma ameaça para as “verdadeiras mulheres”.

No tweet, Rowling expressou apoio a Maya Forstater, investigadora e auto-proclamada feminista “crítica do género”, por outras palavras, uma TERF, cujo contrato de trabalho não foi renovado, dado que o seu empregador, uma espécie de laboratório de ideias internacional, que faz campanhas contra a pobreza e a desigualdade, descobriu que Maya estava envolvida em campanhas públicas anti-trans.

“Veste-te como quiseres,” escreveu Rowling no tweet. “Chama-te o que quiseres. Dorme com o consentimento de um adulto que te aceite. Vive a tua melhor vida em paz e segurança. Mas forçar as mulheres a deixar os seus empregos por afirmarem que o sexo é real? #EuApoioaMaya #IstoéaSério”, concluiu. Ou seja, apesar do tweet não ser explícito no conteúdo, torna bastante claro o facto de a autora apoiar aqueles que argumentam contra a inclusão de mulheres trans no próprio conceito de “mulher”. Foi a triste confirmação de que J. K. Rowling é, de facto, uma TERF.

O histórico de Rowling face à comunidade trans

Mas o tweet, apesar de ser uma confirmação mais oficializada de todos os rumores passados, não foi de todo a primeira vez em que Rowling demonstrou sinais de transfobia. O segundo livro da saga de Cormoran Strike, The Silworm, escrito sob o seu pseudónimo, Robert Galbraith, tinha uma cena em que a personagem principal, o detective Strike, descobre uma mulher trans e ameaça-a com prisão e violação na cela. Em 2017, Rowling tinha sido apanhada a colocar um gosto num tweet que redireccionava para um artigo altamente crítico sobre as mulheres trans, escrito pela feminista radical Harvey Jeni.

Um acontecimento similar aconteceu em março de 2018, quando Rowling colocou um gosto num tweet que dizia que as mulheres trans eram “homens dentro de vestidos”. Os representantes da autora disseram, na altura, que o dedo de Rowling tinha tocado acidentalmente no botão de pôr gosto, justificando-se que tinha sido um “momento de meia-idade”.

A transfobia que Rowling tem demonstrado ao longo do tempo tem deixado desapontados vários dos seus fãs, apesar dos avisos sucessivos que a comunidade trans tem vindo a fazer. Mas não é surpresa para ninguém que esteja familiarizado com o ponto de situação do feminismo no Reino Unido. Apesar de ter sempre existido uma névoa de movimentos anti-trans que marcam o feminismo britânico, estes têm intensificado a sua atividade nos últimos anos, devido a propostas para a reforma da Lei de Reconhecimento de Género.

O que é a Lei de Reconhecimento de Género?

A Lei de Reconhecimento de Género, aprovada em 2004, define o procedimento legal que permite às pessoas trans mudarem legalmente o seu género nos certificados de nascimento, o que envolve, atualmente, um processo dispendioso e intrusivo do espaço privado. Durante o processo é feita uma investigação por uma comissão anónima do Governo, que tem a palavra final acerca do género definitivo de uma pessoa transgénero.

Nesta audiência não há lugar a uma discussão cara-a-cara, e a pessoa nunca vai conhecer ou falar com este painel. Se o processo for bem sucedido, a pessoa recebe o certificado de reconhecimento de género. A partir daí, a pessoa trans poderá mudar o nome e o género que estão no seu certificado de nascimento, o que lhe vai permitir ser legalmente reconhecida como homem ou mulher. Se o pedido for recusado, nunca vai saber o porquê da decisão, ou receber qualquer tipo de feedback.

A lista de critérios para a aprovação do pedido é longa, e um tanto bizarra, dado que inclui um diagnóstico de saúde mental para comprovar que existe mesmo disforia de género no caso concreto. De salientar que a disforia é ainda considerada uma doença mental, e tem de existir prova de que a pessoa viveu no género agora requerido durante um período de dois anos até o pedido atual ser feito.

Para além disto tudo, a pessoa tem de ter pelo menos 18 anos e pagar um valor que ronda os 150 euros, para concluir um processo que é estranhamente mais caro do que obter, por exemplo, um comprovativo de casamento, ou os documentos da carta de condução. E, de forma surpreendente, se a pessoa for casada, tem de existir um consentimento do parceiro para que o seu novo género seja agora reconhecido aos olhos da lei.

Ainda para mais, o sistema atual só permite à pessoa mudar o seu género ou de homem para mulher, ou de mulher para homem. As pessoas não-binárias não conseguem ver o seu género ser reconhecido com esta legislação, nem os jovens com menos de 18 anos, que não conseguem lidar com as grandes mudanças de vida, típicas da sua idade.

Por exemplo, uma pessoa de 17 anos que quer entrar para a faculdade e que pretenda que todos os certificados de entrada na instituição contenham a indicação correcta do género, não o consegue fazer, dado que está interdita a mudar o género no seu certificado de nascimento até aos 18 anos. É, na prática, o apagar de toda uma identidade. Imagine-se o que é saber que, sempre que se vai viajar, a pessoa que está a verificar a identidade da pessoa trans, está a ver algo que não a representa correctamente enquanto pessoa. É um direito fundamental todas as pessoas terem documentos que reflitam a sua identidade, e o primeiro passo é deixar de encarar os transgéneros como doentes mentais.

Começaram então as conversações em 2017 para que exista uma reforma da Lei de Reconhecimento de Género, de forma a torná-la menos intrusiva dos direitos fundamentais das pessoas, menos burocrática e mais inclusiva, de modo a abarcar realidades não-binárias.

Vários membros da opinião pública britânica criticaram esta tentativa de reforma, defendendo-se sob uma capa anti-humanitária e um fetiche por um lado estranho da ciência em que se defende que existem princípios imutáveis, sem qualquer tipo de grau de abertura a análises interpretativas baseadas em fenómenos históricos ou sociais.

Chama-se a isto biologismo redutivo, que propõe a aceitação de que existem realidades imutáveis no nosso ADN, fazendo com que a realidade seja supostamente muito mais simples. É esta biologia essencialista que convence pessoas como J. K. Rowling de que podem contrariar, de forma livre, as reivindicações de uma pessoa em relação à sua identidade de género, ou de que é aceitável testar uma pessoa em laboratório antes de podermos acreditar que essa pessoa seja quem diz que é.

Em afirmações à Vox, Heron Greenesmith, que estuda o movimento moderno crítico do género para uma entidade de justiça social, a Political Research Associates, explicou que o feminismo critico do género no Reino Unido nasceu de uma mistura tóxica proveniente do imperialismo histórico e da influência de um movimento cético mais amplo nos primórdios da história — que era focado em desmascarar a dita “ciência inútil”, e qualquer ideia que colocasse em hipótese influências históricas e sociológicas, ao invés de se focar apenas na biologia.

“Feministas anti-trans pensam que têm a ciência do seu lado. É de arrepiar o quão pouco científicas são as suas teorias, mas, no entanto, dizem: ‘Biologia não é fanatismo.’ Mas a verdade é que a biologia tem sido utilizada como fanatismo desde que a biologia se tornou numa coisa”, referiu Greenesmith.

Uma das organizações que mais contestou esta reforma foi a Fair Play for Women, um grupo crítico de género que acredita que uma pessoa apenas pode ser homem ou mulher, com base no argumento de que estas mudanças propostas na Lei de Reconhecimento de Género iriam prejudicar seriamente o significado legal do que é ser homem ou mulher. Para além disso, o grupo veio defender que esta nova identificação pessoal irá ter um impacto desastroso na segurança e dignidade das mulheres.

Mas dados estatísticos vão contra estas críticas, e foi com base numa análise, feita em 2017, que o governo do Reino Unido constatou que a atual lei de reconhecimento de género não consegue responder adequadamente às necessidades das pessoas trans, dado que apenas 12% utilizaram este processo para ver o seu género reconhecido legalmente. Esta conclusão levou então a que o governo se comprometesse na reforma desta lei, que foi inclusivamente apoiada por vários grupos parlamentares.

Os membros anti-trans dos órgãos de comunicação britânico começaram a defender a tese de que isto iria resultar em certificados de identidade auto-proclamados, dizendo, por exemplo, que uma pessoa podia ostensivamente declarar numa segunda-feira que era uma mulher, e na sexta-feira que era um homem. Isto iria, em princípio, permitir que predadores sexuais assumissem uma identidade de género feminino, de modo a poderem entrar em espaços reservados a mulheres, para propósitos nefastos.

Um estudo do Instituto de Williams da UCLA veio evidenciar precisamente o contrário: não há qualquer tipo de evidência de que deixar pessoas transgénero usar espaços públicos que estejam alinhados com a sua identidade de género, aumenta os riscos de insegurança. “Os opositores às leis de acomodações pública, que incluem a proteção a identidade de género, geralmente afirmam que estas leis não-discriminatórias deixam as mulheres e crianças vulneráveis ​​a ataques em casas-de-banho públicas”, refere a autora principal do estudo, Amira Hasenbush. “Mas este estudo fornece evidências de que esses incidentes são raros e não estão relacionados com a aprovação destas leis.”

O mito de que os homens vão usar esta reforma para poderem fingir ser mulheres de modo a terem a possibilidade de praticarem crimes parece-me ridículo, na medida em que o procedimento para a obtenção do comprovativo é complexo e está dentro de um quadro legal que controla a veracidade dos pedidos, fazendo com que estas críticas não tenham grande fundamento.

Tanto que nunca aconteceu em nenhum país do mundo que adopta, atualmente, o procedimento que se quer implementar no Reino Unido. Todas estas preocupações em torno da reforma da lei só servem para provar que as feministas radicais anti-trans apenas estão interessadas em fazer com que a comunidade trans não tenha qualquer direito em termos de reconhecimento legal do género.

A campanha de desinformação foi altamente fomentada, tocando em assuntos polémicos, como crianças transgénero, o que resultou no aparecimento de uma larga maioria de feministas britânicas mainstream, que se autoproclamam como “críticas do género”, a expressar ideais potencialmente transfóbicos, muito próximos daqueles expostos por Rowling, defendendo, por exemplo, a impossibilidade da mudança do sexo biológico. Em contraste, a comunidade feminista americana tem vindo a defender que quem critica mulheres trans não pode ser considerada feminista.

Falando num exemplo concreto: desde que o governo irlandês aprovou a lei que permite que as pessoas se auto-identifiquem em termos de género, por via apenas de uma declaração pessoal, em 2015, este tipo de problemas não foram encontrados. Numa pesquisa feita pelo The Guardian,“não há evidência de que a legislação leve indivíduos — os adolescentes em particular — a serem pressionados a realizar uma transição médica, ou que homens se declaram falsamente do género feminino para invadir espaços exclusivos para mulheres, como temiam algumas ativistas feministas.”

A ideologia radical feminista, que exclui do seu universo as pessoas trans tem tido grande apoio, chegando inclusivamente ao parlamento britânico, em março de 2018, quando uma feminista radical australiana, Sheila Jeffreys, declarou que mulheres trans eram “parasitas”, uma linguagem bastante próxima daquela utilizada pelo presidente norte-americano, Donald Trump, quando se refere aos imigrantes.

De regresso ao caso de Maya Forstater

Voltando agora caso Forstater, que originou o tweet polémico de Rowling, Maya defendeu em tribunal a sua visão dizendo que “o sexo é um facto biológico e é imutável”, dando conta que esta era uma visão filosófica legalmente protegida. Contou igualmente ao tribunal que não acredita ser possível existir uma mudança de sexo e recusou reconhecer o direito legal que as pessoas trans têm em proceder a essa mudança.

A sentença do juiz concluiu que esta visão não é legalmente protegida, e que a opinião de Forstater era completamente incompatível com a dignidade da pessoa humana, e com os direitos fundamentais das outras pessoas.

Na altura, esta decisão judicial estimulou as vozes usuais do movimento anti-trans, que rapidamente se queixaram de que este tinha sido o último exemplo de várias alegadas supressões do direito à liberdade de expressão. Mas, o que tem acontecido, cada vez mais, é pessoas brancas da alta sociedade partilharem vocalmente as suas visões anti-trans.

 

Apesar do incremento deste tipo de opiniões, várias foram as celebridades que têm defendido os direitos das pessoas trans. Um dos exemplos mais notáveis é a atriz Emma Watson, que interpretou Hermione Granger da saga Harry Potter no grande ecrã, ao ter apoiado os direitos da comunidade transgénero num post viral no Instagram, publicado em outubro de 2018. Na foto, a atriz está a usar uma t-shirt em que pode ler-se “Direitos trans são direitos humanos”.

Em relação a Rowling, as suas opiniões podem ser justificadas pelo facto de ser um produto da história do seu país. No entanto, a justificação pouco consola os fãs do seu trabalho, principalmente aqueles que, por acaso, são transgénero.

Com o seu tweet, a autora revelou a sua ligação com a ideologia TERF e com tudo o que isto implica. O que é que defende, na verdade, Rowling? Defende que mulheres trans são homens, e que homens trans são mulheres. Que mulheres trans devem usar as casas-de-banho masculinas. Que a existência igualitária de direitos reconhecidos a pessoas trans coloca em risco a posição das mulheres cis. E, acima de tudo, exige que as TERFs tenham um direito especial à liberdade de expressão.

Tudo o que está descrito em cima é, a meu ver, agonizante. Agora falo directamente para si, J.K. Rowling. Perdeu todo o meu respeito por se revelar uma pessoa transfóbica. E sim, o sexo é real. Mas as pessoas transgénero também o são.

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