É certo e sabido que a revolução começou em abril e se festejou em maio – logo no primeiro dia, que em 1974 celebrávamos, pela primeira vez, em liberdade. E fomos conquistando todos os direitos perdidos, e todos os direitos a que nunca tivéramos acesso.
46 anos depois, não interpretamos a liberdade da mesma forma. Podemos festejar mas com restrições que, felizmente, não se prendem com decisões políticas comprometedoras de tudo o que somos e podemos ser.
E, embora estejamos numa muito melhor situação do que há 40 anos (nem faria sentido comparar o estado de emergência vivido atualmente com o estado de emergência vivido na altura), existem ainda lacunas que afetam todos os que fazem parte da vida ativa, os que fizeram e os que ainda farão.
O Espalha-Factos falou com eles – os trabalhadores do presente e os trabalhadores do futuro. E procurámos saber quais são os direitos que o mundo laboral ainda não conquistou.
Tentámos perceber melhor aquilo que sofreu mutações – o que alterou com a desmaterialização do trabalho, os sentimentos que vêm com o teletrabalho e como é que esta nova modalidade, generalizada, deixou alguns dos seus direitos em risco.
Os gastos e os salários
Para Pedro Ramos, estudante de Medicina no Porto, “algumas coisas não mudaram”. E “a luta por um trabalho digno a que corresponda um salário com que se possa viver, isto é, um aumento do salário mínimo nacional”, é uma das preocupações mais latentes. O futuro é inseguro e traz a necessidade de “condições para que ninguém fique para trás na revolução tecnológica, apoiando a formação e dando meios para que os trabalhadores possam mudar para regimes de teletrabalho, trabalho a tempo parcial e outras modalidades flexíveis, sem que isso corresponda a uma perda de direitos e garantias”.
Artur Fortunato, estudante no Mestrado de Engenharia Informática e Computadores, de Lisboa, considera que, vivendo nós numa sociedade “em que o trabalho é cada vez mais digital, o direito ao teletrabalho é algo que pode beneficiar tanto os trabalhadores (que poupam financeiramente em transportes, roupa formal, tempo, entre outros) como para o empregador, que ganha um trabalhador mais motivado e que pode ser mais eficiente em casa”, o que alia à redução de “interações sociais e interrupções de trabalho”.
Mónica Santos, informática, da Maia, refere o aumento do custo de vida e uma diferente gestão diária. “A rotina diária, a correria para deixar os filhos na escola e poder seguir para o trabalho… Já não há esse stress matinal. Mas agora temos o trabalho, o apoio de que os nossos filhos [em telescola] precisam, entre outras tarefas em casa.”
A produtividade e o direito ao descanso
Como temos visto ultimamente acontecer nas nossas casas ou nas casas dos que nos rodeiam, o teletrabalho não comporta pontos positivos apenas, e a generalidade das pessoas com quem falámos admite que os pontos negativos aumentam com a sua obrigatoriedade.
Pedro mencionou que “seria importante a redução dos horários de trabalho para 30 horas semanais. Num país em que a natalidade escasseia, e num mundo onde os recursos se esgotam (não podemos esquecer a crise climática), faz todo o sentido que cada um trabalhe menos e melhor, gerando mais trabalho e felicidade para todos.”
Nuno Castro é de Bragança e estuda Direito – não poupou nas críticas relacionadas com este tema: “Se considerarmos que um trabalhador dorme oito horas por dia, sobrando 16 horas acordado, e que trabalha também oito horas (isto sendo números otimistas), um dos direitos que a classe trabalhadora deve agora conquistar para ganhar mais liberdade é a democracia no local de trabalho. Não podemos dizer que um trabalhador vive em liberdade quando metade do tempo que passa acordado é gasto a cumprir ordens.” O estudante considera que, a par da luta pelo retrocesso em horas diárias e pelos direitos salariais, o trabalhador deve lutar pelo seu “poder de decisão sobre um espaço onde desenvolve metade da sua atividade diária”.
Francisco Alonso, de Oeiras, atualmente estudante de Mestrado em Direito Fiscal, diz-nos que, “por uma via forçada, generalizou-se o teletrabalho” (aliás, aludindo ao Decreto n.º 2-A/2020, de 20 de março), e na sua opinião as empresas vão manter o mesmo, por um lado, para “não arriscar as concentrações de pessoas” apesar da reabertura da economia, por outro lado, por terem encontrado “no teletrabalho um meio que apresenta os mesmos resultados que o trabalho ordinário”.
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Para Carolina Pereira, jornalista de Santa Maria da Feira, “ficou provado que muito trabalho é possível de ser feito a partir de casa”, não tendo (para si) mudado muito além do facto de “não estar presente fisicamente na redação” e de as entrevistas serem feitas a partir de chamadas em vez de presencialmente. Paulo Lima, chefe de vendas em Perafita, admite uma flexibilização do trabalho: “O formalismo do trabalho, num posto de trabalho fixo, esfuma-se e percebe-se que algumas funções são até mais eficientes no trabalho remoto.” Exemplifica com as reuniões físicas e as viagens, “que tanto tempo consomem em algumas organizações”, aqui substituídas por vídeochamadas ou webinars.
Francisco admite que o teletrabalho tem claras vantagens: “traz mais conforto, liberta tempo para a família e reduz gastos”, mas reforça que se tornaram públicos “os desabafos de diversos trabalhadores, que se queixam de um aumento nas horas de trabalho”.
“Se o teletrabalho foi generalizado, o direito ao descanso também tem de o ser”. Retomando o testemunho dado por Pedro, estamos “num tempo em que as nossas caixas de e-mail estão permanentemente a notificar-nos, também temos de lutar pelo direito ao descanso, ao offline e à família”. Numa perspetiva jurídica, Francisco denotou que as “obrigações contratuais mantêm-se iguais e não é pela exigência do confinamento que o descanso pode ser descurado”.
Salientou ainda que, apesar de ser sabido que, com o teletrabalho, “o empregador perde uma componente de fiscalização presencial do trabalho do trabalhador”, isso não poderá ser uma desculpa para um abuso no controlo por parte do empregador. “As medidas implementadas têm de ser sempre proporcionais e não podem violar a privacidade do trabalhador”. Hélio Fonseca, responsável de Recursos Humanos em Matosinhos, acrescenta que notou alterações na “perceção da entidade empregadora relativamente aos impactos na produtividade, decorrentes do trabalho não presencial” e, quanto aos trabalhadores, notou a “capacidade de reinvenção e adaptação”, porém admitindo-se um clima de “insegurança e incerteza relativamente ao vínculo contratual, provocadas pela distância e pela maior dificuldade no envolvimento e comunicação interna”.
Tiago Cunha, estudante de Direito no Porto, reforçou dois direitos importantes a ter em conta agora: “o direito a desligar e o direito às justas condições de teletrabalho”. Do primeiro já fomos falando. Quanto ao segundo, diz-nos o jovem que mesmo estando em teletrabalho, isto não significa que devamos empregar os nossos meios próprios. “Se o trabalhador está a desenvolver trabalho para a empresa, então deve fazê-lo em condições análogas, com material da empresa, seja computador, acesso à Internet, entre outros, sendo essas um conjunto de condições que, em situação normal, incidem sobre a empresa, e nela devem recair, não no trabalhador.”
As condições de trabalho (presencial ou não)
Não podemos aqui esquecer-nos que o Decreto n.º 2-A/2020, de 20 de março, estabelece no seu artigo 6.º a obrigatoriedade do teletrabalho, mas apenas “sempre que as funções em causa o permitam”. Quando não o permitam, há apenas duas opções: não trabalhar ou continuar a desempenhar funções presencialmente, esta segunda hipótese entretanto restrita a funções essenciais.
Como é o caso desta vendedora: “Tornou-se muito difícil conseguir desempenhar as funções como a empresa me exige. Mandaram-nos para casa ter formações, formações essas que em pouco ou nada nos estão a acrescentar.” A testemunha queixa-se ainda da “quebra enorme” em remuneração e da dificuldade em contrariar as decisões que o empregador lhe exige, com o medo de um despedimento. “Quando tudo isto passar, vou trabalhar meses e meses a fio, e o meu trabalho exige muito da minha capacidade de manter a paciência e capacidade de comunicação, que a falta de descanso afeta.”
Procurámos também saber o que sentem os estudantes que conjugam a vida académica com o mundo laboral: Sara Gonçalves é estudante-trabalhadora no Mestrado em Informação e Jornalismo. A partir de Braga, diz-nos que “o que falta conquistar ao trabalhador é a efetivação de direitos já previstos na Lei”. A jovem conta que existem “muitas ilegalidades” cometidas especialmente por “grandes empresas ou multinacionais”, que a maioria das pessoas ignora ou não sabe que ainda lá estão, por se tratarem de “situações já previstas na Lei” e contra as quais nos sentimos “inúteis”.
A higiene e a saúde no trabalho
Mas as condições pedidas pelos trabalhadores não ficam por aqui: as condições sanitárias são uma ameaça em vários postos de trabalho, especialmente naqueles em que não se pôde aplicar a cláusula do teletrabalho.
A Paulo Lima, embora não lhe pareça que “a situação da Covid-19 vá resultar em conquista de direitos específicos para o trabalhador”, admite que “veio chamar a atenção para maiores condições de higiene e saúde no trabalho nas empresas”, obrigadas a proporcionar essas condições – infelizmente, não sendo verificado em todas as entidades empregadoras.
Marlene Carvalho, Administrativa na área da Reparação Automóvel, confessa faltar conquistar efetivamente “o direito ao respeito sanitário”, situação regular cuja preocupação aumentou com a pandemia vivida no país. “Infelizmente, nem todos os trabalhadores têm o direito de ir à casa-de-banho no horário laboral e isso é desumano. No comércio, assiste-se a casos aterradores de funcionários, em caixas de supermercado, que vomitam em sacos para não saírem do posto, sem permissão para tal.” Marlene salientou ainda a falha na garantia de pausas. “Falha, especialmente, o direito ao respeito pelo ser humano, que engloba tudo isso.”
Em Santa Maria da Feira, a jornalista Carolina Pereira completou o panorama: “Muitas das empresas e fábricas continuaram a laborar em época de pandemia sem qualquer tipo de proteção. Daqui para a frente, nos postos de trabalho, devem ser implementadas medidas para que as pessoas não corram riscos.” Carolina destaca que os direitos dos trabalhadores devem ser “bem explícitos para ninguém andar enganado”.
A liberdade e a privacidade
Os medos futuros são questões já do presente: perguntámos a vários trabalhadores quais são os direitos que sentem mais em risco neste momento.
Vários confessaram que poderão ver o seu posto de trabalho ameaçado, havendo possibilidade de redução de salário devido à instabilidade financeira que chegará ao país, ao continente e ao mundo.
Talvez mais forte do que isso, a liberdade e a privacidade diminuíram, e este direito é aquele pelo qual mais se teme. Falámos com um professor, de Braga, que salientou que “hoje em dia, não há privacidade, mesmo sem o consentimento das pessoas” e que, mais do que nunca, se tomam “decisões que não são subscritas”. Uma das suas preocupações é o medo, que diz que, “numa democracia, não pode existir”.
Para Ana Pinto, enfermeira do mesmo distrito, temos ameaçada “a liberdade a que estávamos habituados”, num momento em que “uma simples saída à rua pode ser um risco ou um fator de medo/stress”. A profissional de saúde admite estarmos num tempo em que o trabalhador terá de “voltar a ganhar confiança e respeito” e de “aprender a viver com as novas adversidades que nos foram impostas por esta pandemia”.
Maria Costa, administrativa, do Porto, admite que o teletrabalho potencializou esta perda de privacidade: “Há uma grande dificuldade em separar temporalmente a vida pessoal da vida profissional. A privacidade da família choca com o sigilo profissional. Muitas vezes assuntos familiares são interrompidos por chamadas ou por um e-mail importantíssimo. Esse assunto profissional é resolvido a meio de uma conversa que, provavelmente, não terá mais o mesmo rumo. Para a família e para a casa, ganha-se tempo, mas perde-se disponibilidade.”
O que aí vem
Para José (nome fictício), Analista Financeiro, de Lisboa, há uma enorme importância em que “os trabalhadores se sintam o mais seguros e apoiados quanto possível”, aproximando-se uma época que este (e vários outros) já consideram ser uma crise económica pior do que a de 2008. “É preciso ter em consideração que os patrões e as empresas sofreram um rombo inigualável, poucas são as empresas em Portugal que aguentam um mês paradas, quanto mais dois”.
Num dia em que se discutiu amplamente, com o Ministro da Economia, Pedro Siza Vieira, as questões que se levantam em torno do regime de lay-off, o analista salientou ser “fulcral que mecanismos como o lay-off funcionem bem e sem atrasos, e que os negócios, sobretudo os de menor dimensão, possam abrir o mais cedo possível”.
No entanto, nem tudo é mau – vejamos a evolução digital das empresas, ainda que fruto da situação miserável pela qual o mundo passa: “A necessidade de adaptação rápida a este novo mundo que nos fez reféns nas nossas próprias casas, levou a que muitos negócios dessem um salto de maturidade no mundo digital, sobretudo online e no e-commerce, tendo-se virado para a internet. É de louvar a inovação que tem havido e a prontidão com que muitas pessoas adaptaram os seus negócios.”
Artigo organizado por Matilde Costa Alves, com Ana Silva, Carolina Correia, Diana Carvalho e Miguel Rocha.
Artigo atualizado às 12h de 1 de maio com o nome corretamente escrito de Hélio Fonseca.