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Dia do Livro Português. 10 livros que um entusiasta da literatura portuguesa deve ler

A 26 de março comemora-se, em Portugal, o Dia do Livro Português

Esta quinta-feira, 26 de março, assinala-se o Dia do Livro Português. Celebramo-lo no dia em que, há cerca de 500 anos (precisamente, em 1487), se imprimiu o primeiro livro em terras lusitanas, ainda que o primeiro livro escrito em português só viesse a ser impresso cerca de 10 anos depois.

A Sociedade Portuguesa de Autores atribuiu este significado ao dia como forma de promover a literatura e a língua portuguesa em todo o mundo. E como não poderia faltar, o Espalha-Factos reuniu uma lista com 10 livros que vais querer adicionar às tuas prateleiras.

Com um pormenor: afastamo-nos dos clássicos, não porque já tenham recebido todo o valor possível (ainda falta quem lhes valorize muito mais), mas em prol de um leque mais vasto para explorar.

E se há uns dias nos lembrámos d(o Dia Mundial d)a Poesia, cabe-nos agora celebrar a Prosa.

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Os Cus de Judas (1979), de António Lobo Antunes

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António Lobo Antunes e a edição da capa original de ‘Os Cus de Judas’. Fotografia original de Gonçalo Rosa da Silva.

António Lobo Antunes é considerado o maior escritor português vivo, e um dos nomes promissores das nomeações portuguesas ao Nobel da Literatura (que, até ao momento, teve vitória lusitana atribuída a José Saramago, em 1998). Para Marcelo Rebelo de Sousa, Lobo Antunes está acima do Nobel. Para o próprio, o Nobel que se f*da.

Os Cus de Judas são (é) como qualquer outra afirmação polémica de Lobo Antunes, independentemente da sua duração (duas frases ou um livro inteiro). Não está incompleto sem a parte que lhe antecede e a parte que lhe procede mas, para os interessados, a trilogia começa com Memória do Elefante e termina com Conhecimento do Inferno.

Nesta obra, o escritor retratou um cenário que ainda estava fresco na memória dos portugueses e dos povos africanos na mesma envolvidos, que findara oficialmente com o grito de liberdade do povo português – para Lobo Antunes uma “dolorosa aprendizagem da agonia” e um “inacreditável absurdo da guerra” (esta, a guerra colonial).

Além de um retrato, Os Cus de Judas é uma história verídica e contada na primeira pessoa, cuja razão de ser se funda nos dois anos que António Lobo Antunes passou dentro desse cenário, enquanto soldado e médico destacado.

Fanny Owen (1979), de Agustina Bessa-Luís

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Agustina Bessa-Luís e uma das edições de ‘Fanny Owen’. Fotografia original de Adelino Meireles.

Agustina Bessa-Luís deixou-nos há menos de um ano – dia 3 de junho de 2019, com 96 anos -, mas as suas palavras ficaram connosco. 15 anos antes, vencia o Prémio Camões, a forma mais prestigiada de vangloriar os escritores em Portugal, com o júri a classificar a sua obra literária como a “criação de um universo romanesco de riqueza incomparável que é servido pelas suas excepcionais qualidades de prosadora, assim contribuindo para o enriquecimento do património literário e cultural da língua comum“.

Apesar de ser uma mulher do século XX, Agustina Bessa-Luís fica na memória portuguesa como uma contadora de histórias dos séculos passados, de onde se retira, naturalmente, o livro sobre a história de Fanny Owen. De facto, Agustina Bessa-Luís criou, para Fanny Owen, um cenário próprio do seu universo romanesco”, e qualquer um poderia pensar que os detalhes retratados nesta prosa se tratam de uma ficcção. Mas são tão reais e cheios de futilidades como qualquer retrato da comunidade britânica e burguesa em Portugal.

A história que inspirou a obra de Agustina Bessa-Luís

Agustina Bessa-Luís nasceu em Amarante e viveu a maior parte da sua vida no distrito do Porto, onde acabaria por falecer igualmente. Não é de estranhar então que, ao nos ter deixado escrita uma história verídica, a mesma tenha ocorrido num dos seus concelhos.

Francisca Owen, a rapariga e filha do coronel inglês Hugo Owen, foi protagonista de um romance entre si, José Augusto Magalhães (o proprietário com quem Fanny Owen acabaria por se casar), a sua irmã Maria (que aparentava estar comprometida, inicialmente, com José Augusto) e ainda Camilo Castelo Branco. Estamos, sim, a referir-nos ao escritor, que já antes travara amizade com José Augusto e que, a certo ponto, se mudara para perto da localização da família Owen: Vilar do Paraíso, no concelho de Vila Nova de Gaia.

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Imagem do filme ‘Francisca’ (1981), de Manoel de Oliveira, inspirado no romance de Agustina Bessa-Luís

O casamento de Francisca e José Augusto tornar-se-ia rapidamente numa infelicidade constante, cujo desfecho já era um presságio nos momentos anteriores ao mesmo, censuráveis pela sociedade que rodeava os dois apaixonados.

No momento em que Maria se torna irrelevante para o romance de Fanny Owen e de José Augusto, Camilo adquire essa importância em plano indireto. As opiniões, dos populares ou dos estudiosos, dividem-se: uns afirmam que Fanny poderá ter sido uma das várias paixões de Camilo, que justificaria o facto de este, tal como José Augusto, se ter mudado para Vilar do Paraíso; outros descrevem que, fruto de um amor não correspondido, Camilo poderá ter contribuído para a desgraça do casamento do seu amigo com a jovem. Há até quem diga que foi através de Camilo que José Augusto teve conhecimento de um hipotético espanhol que enviava cartas à sua mulher, enquanto outros crêem até que as cartas eram do próprio Camilo.

Mero observador ou efetivo participante, Camilo escreveu sobre os amores de Fanny Owen e José Augusto em Duas horas de leitura e em No Bom Jesus do Monte. Da história de Fanny Owen, o que nos resta são as ruínas da Vila Alice, outrora Quinta da Ermida, onde viveram os Owen, e pela qual os habitantes de Vilar do Paraíso passam diariamente.

Ensaio sobre a Lucidez (2004), de José Saramago

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José Saramago e a edição brasileira de ‘Ensaio sobre a Lucidez’.

Muitos leram o Ensaio sobre a Cegueira e ficaram perplexos. O Ensaio sobre a Lucidez é uma coisa parecida, mas mais política e mais preponente. José Saramago, o nosso único Nobel da Literatura, brincou com as palavras, com a pontuação e até desenhou vidas para personagens de outros gigantes da literatura portuguesa (vejamos O Ano da Morte de Ricardo Reis). Brincou, ainda, com a política de forma mais delicada e, ao mesmo tempo, mais agressiva.

Neste Ensaio sobre a Lucidez, Saramago imagina uma época eleitoral onde se começa a prever a abstenção e, ao invés mas não melhor para o cenário política, se ganha cerca de 70% de votos em branco ao final do dia. O retrato faz-se: os eleitores estão cansados e manifestam-se através daquela garantia, a mera entrega de um boletim por preencher. Se isto se passa numa cidade ficcional, a verdade é que preconizou um incentivo, por vários, do voto em branco nas eleições legislativas portuguesas de 2005.

José Saramago identificou-se, durante a sua vida, com projetos políticos conectados com a esquerda revolucionária, facto que nunca escondeu. Aliás, na sua autobiografia afirma que o processo revolucionário foi travado em novembro de 1975. Hoje em dia, o Partido Comunista Português honra-o com carinho. Ainda na última década do século XX, viu um livro seu censurado pela ofensa aos católicos – O Evangelho segundo Jesus Cristo (1991) -, que inclusive o fez sair de Portugal com a sua esposa, Pilar.

A criação do mundo (1937-1981), de Miguel Torga

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Miguel Torga e uma das edições do livro ‘A criação do mundo’.

Adolfo Correia da Rocha deu-se a conhecer ao mundo como Miguel Torga, e deu a conhecer A criação do mundo através deste nome também. Ele, que foi o primeiro escritor a ser galardoado com o Prémio Camões, saltitou entre os pedaços da sua infância em Trás-os-Montes e o fascismo dominante na Europa no século em que viveu. Desde campos silenciosos a encontros tumultuosos em Paris.

“(…) O mestre falava da pátria, da família, do bom cidadão, e do alto significado da festa da árvore, que já pouco demorava, para a qual andávamos a ensaiar o hino.
Ó escolas, semeai!…
Nos anos anteriores, tinham sido outros os heróis dessa data memorável. A quarta é que abria a cova, aprumava o caule lá dentro, e o estrumava, estacava e regava, depois. (…) Mas chegara finalmente a nossa vez. E ouvíamos a prelecção patriótica com ar compenetrado, íamos ser em breve os obeiros do futuro, a esperança em marcha, os homens de amanhã. Tudo no acto simples de aconchegar uma raiz à terra. (…)”

A particularidade da sua obra autobiográfica é a sua continuidade no tempo – Adolfo Correia da Rocha começou a escrever A criação do mundo em 1937. O II volume saiu em 1938, o III em 1939. O IV volume chegou-nos no ano da Revolução de Abril. A encerrar, um livro com o V volume, no início dos anos 80. Em 1995, perdemos a sua presença física. Tinha 87 anos.

Sinais de Fogo (1979), de Jorge de Sena

Jorge de Sena e uma das edições de ‘Sinais de Fogo’. Fotografia original de Eduardo Gagueiro.

E antes de abandonarmos as biografias (se é que as podemos apelidar assim), atentemos à obra de Jorge de Sena. Também ele nos fala das guerras e da política desumana na Europa do século XX. Sinais de Fogo não chegou a ser publicado pelo autor. Seria uma obra incompleta, por não ter sido terminada, e há dúvidas se retrata a realidade do escritor ou se é mera ficção. Seguimos a posição maioritária.

Em Sinais de Fogo, Jorge de Sena, à data exilado no Brasil, escreve-nos sobre os efeitos da Guerra Civil espanhola em Portugal, contando-nos simultaneamente como é amadurecer. O escritor deixou aqui várias reflexões que poderiam sustentar a opinião dos que consideram a obra como uma autobiografia – sobre a política, sobre a sociedade de meados do século XX, sobre relações, sobre estética.

Mau Tempo no Canal (1944), de Vitorino Nemésio

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Vitorino Nemésio e uma das edições de ‘Mau Tempo no Canal’. Fotografia original retirada dos Arquivos RTP.

Não deixamos o Atlântico de lado: vamos agora aos Açores. Vitorino Nemésio foi originário da ilha Terceira, mas, pelo que se pode ler em Mau Tempo no Canal, é como se tivesse vivido sempre na cidade da Horta, em Faial, embora só o tenha feito esparsamente e por curtos períodos de tempo.

O mau tempo sente-se no canal que separa Faial do Pico. Porém, o livro conta maus tempos para outros que não o mar – como Margarida Clark Dulmo (aristocrata) e João Garcia (burguês), os protagonistas deste romance, que é não só a obra mais conhecida de Nemésio, como também, possivelmente, a melhor obra literária portuguesa a ser retratada nas ilhas atlânticas.

O Meu Irmão (2014), de Afonso Reis Cabral

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Afonso Reis Cabral e uma das edições de ‘O Meu Irmão’. Fotografia original de Elisa Trusso.

“Isto vai passar-se no Tojal”. E vai ser contado por um escritor português da nova geração, que recentemente foi inclusive o vencedor do Prémio José Saramago pela sua mais importante obra, que não deixamos de recomendar também: Pão de Açúcar, o livro que não esqueceu a tragédia de Gisberta, uma transexual brasileira que foi brutalmente assassinada em Portugal, em 2006.

Afonso Reis Cabral completa, este ano, 30 anos. Há 6 anos já provara a sua maturidade quando lançou ao mundo O Meu Irmão, uma história sobretudo humana, que lhe valeu o Prémio LeYa em 2014, e que, obviamente, ultrapassa a honra de qualquer premiação.

Miguel tem 40 anos e tem Síndrome de Down. Para muitos, é um milagre continuar vivo – os pais, inevitavelmente, não. Agora, tem apenas o irmão, e ambos coexistem numa aldeia remota no interior do país.

O Meu Irmão não é uma história verídica mas é o espelho de inúmeras situações reais e isso vê-se na quantidade de testemunhos de leitores que se seguiram à obra. Espelha o quão condicionante é esta dependência, que não é um fardo, mas sim uma cumplicidade constante que apenas irmãos são capazes de partilhar.

Um dos motivos pelos quais esta é uma obra importante é a honestidade e a forma crua como se apresenta – o ponto prova-se sem a necessidade de sentimentalismo e piedade.

Dentro do Segredo (2012), de José Luís Peixoto

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José Luís Peixoto e uma das edições de ‘Dentro do Segredo’. Fotografia original de Pedro Loureiro.

José Luís Peixoto é dono de prosas bonitas (como Livro ou Cemitério de Pianos) e de crónicas admiráveis. Em 2012, o escritor português estreou-se no mundo da literatura de viagens, e começou da forma mais polémica possível: uma viagem ao misterioso Norte da península da Coreia. Hoje, para os interessados, já há mais um livro na coleção: O Caminho Imperfeito, que percorreu na Tailândia.

“Se estás a ler estas palavras é porque estás vivo.
Não quero enganar ninguém. Sobretudo, não me quero enganar a mim próprio. Detesto perder tempo. Sempre confiei nos livros.
Viajar é interpretar. Duas pessoas vão ao mesmo país e, quando regressam, contam histórias diferentes, descrevem os naturais desse país de maneiras diferentes. (…) Isto é radicalmente verdade em relação à Coreia do Norte.
O secretismo e as enormes idiossincrasias desta sociedade fazem com que o olhar do visitante seja muito conduzido por aquilo que leu em livros antes de chegar.”

E, de facto, este livro é um dos poucos testemunhos a que podemos atender no que toca à Coreia do Norte, num momento global em que é mais importante do que nunca saber um pouco mais (do quase impossível) sobre o país do senhor de bochechas gordas e um penteado único, que nenhum dos seus nacionais pode copiar.

O filho de mil homens (2011), de Valter Hugo Mãe

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Valter Hugo Mãe e a capa de ‘O filho de mil homens’.

Que fique, desde já, aqui dito: todos os romances de Valter Hugo Mãe devem ser lidos e pensados. Naturalmente, recomendá-los-íamos a todos. Mas hoje, a sugestão é O filho de mil homens.

Crisóstomo está a chegar à meia idade, e chega-lhe incompleto: falta-lhe uma família e a felicidade de a ter. Por isso, inventa-a. Desta poética prosa de Valter Hugo Mãe resultam também as personagens de Camilo, Isaura, Antonino e Matilde, todos partilhando o papel do amor, da paternidade e, sobretudo, da humanidade. E tudo isto exposto com a sensibilidade única de um livro de Valter Hugo Mãe.

“O Crisóstomo disse ao Camilo: todos nascemos filhos de mil pais e de mais mil mães, e a solidão é sobretudo a incapacidade de ver qualquer pessoa como nos pertencendo, para que nos pertença de verdade e se gere um cuidado mútuo. Como se os nossos mil pais e mais as nossas mil mães coincidissem em parte, como se fôssemos por aí irmãos, irmãos uns dos outros. Somos o resultado de tanta gente, de tanta história, tão grandes sonhos que vão passando de pessoa a pessoa, que nunca estaremos sós.”

Para Onde Vão os Guarda-Chuvas (2013), de Afonso Cruz

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Afonso Cruz e a capa da sua obra ‘Para Onde Vão os Guarda-Chuvas’. Fotografia original de Miguel Manso.

Afonso Cruz é escritor, mas além disso, e sobretudo, é ilustrador, realizador e músico. Enfim, um artista que veio de Coimbra e instruiu-se entre Lisboa e a Madeira. A sua arte literária é a enfabulação, palavra que os críticos repetem inúmeras vezes.

Em Para Onde Vão os Guarda-Chuvas, Afonso Cruz imagina um Médio Oriente e uma família que coincide com o que se passa do outro lado do mundo. Todas as personagens, desde Fazal Elahi a Isa, têm características que lhes são próprias, como se fossem reais e distintas.

“- Posso continuar cristão?
Fazal Elahi coçou a barba e condescendeu:
– Podes, desde que sejas um bom muçulmano.”

A narração não pode passar despercebida, pois ninguém pode supor um modo de vida totalmente diferente do Ocidente (onde está) sem saber o significado de tolerância, e Afonso Cruz demonstra-o da única forma possível e aceite – humanamente.

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