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Elisa vence Festival da Canção

Festival da Canção 2020: A final de nervos onde júri e televoto entraram em choque frontal

Uma verdadeira noite de nervos. Desde a reformulação do formato, em 2017, que o Festival da Canção não tinha uma votação tão inesperada. No final venceu a madeirense Elisa com ‘Medo de Sentir’, uma espécie de dano colateral entre a escolha do júri e do público.

Mas já lá vamos. Elvas recebeu a Grande Final do Festival da Canção 2020 numa noite que teve de tudo um pouco: um palco gigante, muitas roncas, aniversário da RTP, um vestido digno de memes e, claro, muita música. A análise – passo a passo, canção a canção – da longa noite no Alentejo.

O relógio marcava as 21h e Inês Lopes Gonçalves dava as boas vindas a todos para depois realizar algumas entrevistas antes do espetáculo começar. Compreendo a ideia, mas à semelhança do ano passado, em nada acrescentou à fluidez do programa.

Retive apenas que, das palavras da apresentadora, em Portugal, a primeira emissão a cores foi transmitida em 1958. Não Inês, começaram apenas 22 anos depois, precisamente durante o festival de 1980. Daí a celebração dos 40 anos desse feito.

Uma abertura que soube a pouco

Depois do espantoso número de abertura da final do ano passado, em Portimão, as expectativas eram altas mas ficaram por aí, meras expectativas por cumprir. Tudo começa com um grupo de roncas de Elvas. Seguem-se os apresentadores, coristas, bailarinos, miúdos de bicicleta… no fim não cabia nem mais uma pessoa em palco.

O objetivo era o de celebrar os 63 anos da emissora pública e, se ao início a performance parecia retirada de algum musical de extremo mau gosto, a meio as coisas foram melhorando e no final a homenagem aos vários programas que ultrapassaram gerações até teve a sua graça.

Ainda assim, esta foi uma ótima forma de celebrar a RTP: o assunto ficou ali arrumado. Mas mais alguém reparou no esquecimento coletivo do aniversário de José Carlos Malato? Ele bem fez questão de o relembrar durante a segunda semifinal, mas de pouco valeu, ao que parece.

Público do Festival
Dos mais novos aos mais experientes: o público do Festival continua bem vivo e diversificado

Mas vamos ao que realmente interessa: as canções. Filipe Sambado abriu as honras e Bárbara Tinoco encerrou um ciclo musical que se prolongava há duas semanas. A assistir estavam as cerca de duas mil pessoas que esgotaram o Coliseu Comendador Rondão Almeida. E fica uma certeza: depois de Guimarães e de Portimão, Elvas voltou a confirmar que é possível fazer, e bem, fora da capital.

Filipe Sambado – 3.º lugar

Pela primeira vez desde o renascimento do festival, a RTP decidiu não divulgar as votações das 16 canções durante as semifinais. Tal como acontece na Eurovisão, foram somente anunciados os finalistas, com os seus pontos a serem conhecidos após a Final. O modelo tornou o formato mais interessante porque, à partida, todos os candidatos estavam em pé de igualdade.

Filipe Sambado foi o primeiro a pisar o Coliseu de Elvas. Visivelmente mais nervoso do que na primeira semifinal – o que se traduziu na atuação – o cantor manteve a mesma performance. Houve o apontamento de cristais na mão e algum movimento dos coristas. Indiscutivelmente uma das canções mais comentadas nos últimos dias, ‘Gerbera Amarela do Sul’ acabaria mesmo por ser a favorita dos jurados. Mais à frente falamos de votos.

O palco parece não ter favorecido a atuação, com muitos planos de câmara a serem distantes e a não criarem o efeito de mistério conseguido no pequeno palco do Estúdio 1. De um modo geral, a maioria das canções manteve a mesma ideia de performance em palco, o que acabaria por ter um efeito menos positivo. Palcos diferentes exigem apresentações adaptadas ao seus tamanhos.

Jimmy P – 5.º lugar

Para lá das canções, a experiência pode fazer toda a diferença em palco. Jimmy P tem 10 anos de música e sabe muito bem como passar a sua mensagem. Esteve mais uma vez irrepreensível em termos vocais, com o ritmo e dicção adequados, e ainda com uma segurança que agrada ao telespectador.

Houve mudanças de roupa que trouxeram algo de novo ao espetáculo mas, tal como aconteceu com Sambado, a dimensão do palco não beneficiou Jimmy P. É importante que a produção do festival saiba não só erguer palcos monumentais e apelativos, mas também reconstruir todos os plano de câmara e de edição para que estes consigam fazer jus às características das músicas.

A intimidade que ‘Abensonhado’ pedia em boa parte do seu tempo não foi conseguida. Ainda assim, é importante que géneros como o rap comecem a entrar no formato. Que o festival não seja apenas a mostra da música pop que se faz em Portugal e que abra espaço para outras visões como a do rock ou a do fado. A diversidade é sempre bem vinda.

Tomás Luzia – 6.º lugar

O mais novo candidato a representar Portugal na Eurovisão foi o finalista mais inesperado. O tema não recolheu praticamente nenhum afeto nas redes sociais, antes pelo contrário. Tomás Luzia esteve bastante melhor do que na semifinal. Teve segurança, presença e qualidade vocal. Ainda assim, nada disto vale de muito quando a base – neste caso, a música – não apresenta a qualidade necessária para estar na final, dada a concorrência que entretanto foi eliminada.

O palco beneficiou a atuação, com planos de câmara mais lentos e adequados que criaram uma maior intimidade para a canção. A ideia de projetar uma guitarra a meio do tema foi bem feita, ainda que um pouco antiquada. Mas valeu por substituir o que aconteceu na semana passada, quando o intérprete de ‘Mais Real que o Amor’ se limitou a andar de um lado para o outro.

Confesso que apenas me recordava desta música quando voltava a aparecer durante os muitos recaps que a meio do programa começaram a ser constantes. A aparente sorte na qualificação seria depois justificada com uma massiva votação por parte do público.

Elisa Rodrigues – 8.º lugar

Foi sem qualquer sombra de dúvidas a atuação mais segura e consistente de toda a final. Elisa Rodrigues melhorou substancialmente em relação à segunda semifinal e esteve bastante segura em termos vocais. O palco também esteve mais adequado ao tema, com a mancha de público a dar vida aos acordes de ‘Não Voltes Mais’.

Ainda assim, e como foi discutido no podcast de antevisão lançado pelo Espalha-Factos, esta é uma boa canção, bem construída e musicada mas pouco competitiva e aquém das qualidades vocais que Elisa Rodrigues tem. Com outro tema, a cantora seria capaz de ficar nos primeiros lugares, se não mesmo ganhar.

Não deixa no entanto de ser uma canção que encaixa bem numa final do Festival da Canção e que traz alguma alegria e ritmo ao ecrã. As harmonias do coro foram melhores e as variações de Elisa surpreenderam. Não merecia o último lugar.

Throes + The Shine – 7.º lugar

O grupo portuense Throes + The Shine ficou bastante aquém do esperado. Inesperadamente, os nervos levaram a melhor e pouco correu bem nesta atuação. Não foram capazes de preencher o palco como seria de esperar. Houve vários problemas de controlo vocal por parte de ambos os vocalistas e só a efervescência do público parece ter trazido algum ‘Movimento’ ao tema.

Foram uma agradável surpresa na primeira semifinal mas bastante esquecíeis no dia D. O tema pedia um domínio completo do telespectador e os estímulos aconteceram com uma espargata e um mortal não tão bem conseguido. Mas em termos vocais, o mais importante, não estiveram bem, sendo provavelmente os mais fracos da noite nesse aspeto.

No entanto, este é um nome a reter na mente dos portugueses. São uma banda com potencial de espetáculo e que certamente terão sucesso daqui para a frente. A pontuação refletiu a atuação.

Kady – 4.º lugar

Sem grandes surpresas, ficou a meio da tabela. O tema de Dino D’Santiago interpretado por Kady reuniu um agradável consenso por parte do público mas nunca foi visto como uma música vencedora. ‘Diz Só’ acabaria por presenciar o espectador com uma excelente voz, boa mensagem, performance bem conseguida e um bom ambiente em palco.

Depois de uma atuação perfeita nos estúdios da RTP, o palco de Elvas não favoreceu tão bem a cantora, que perdeu alguma intimidade devido ao jogo de luzes menos conseguido. As coristas não estiveram no seu melhor desta vez: principalmente no início do tema houve desafinações.

De forma geral, pouco se alterou com Kady que continuou a mostrar segurança em palco. Não deixa de ser uma boa canção, que alcançou um lugar mesmo junto dos favoritos.

Elisa – Vencedora

Foi crescendo passo a passo junto do público até que no fim venceu com uma votação totalmente equilibrada entre jurados e televoto, mesmo que nenhum lhe tenha dado 12 pontos. Depois dos “tiques” de Salvador Sobral, do “estranho cabelo cor-de-rosa” de Cláudia Pascoal e do “horror” que foi Conan Osiris, Elisa deverá ser a representante portuguesa mais consensual junto dos portugueses desde 2017. Não se livra do habitual veneno das redes sociais, mas pouco existe para criticar.

É uma canção com uma letra simples mas bonita, com uma composição simples mas eficaz, com uma voz simples mas arrebatadora. ‘Medo de Sentir’ vive da simplicidade de quem não precisa de muito para se destacar. Em palco, a autora da canção, Marta Carvalho, esteve ao piano e tornou a performance mais intimista. Ainda assim, Elisa deixou-se levar um pouco pelos nervos e as vozes de apoio ainda não estão perfeitas.

Esta é uma música com um grande potencial de performance no palco de Roterdão. Portugal já ficou em último lugar em casa e fora da final no ano passado. Deverá ser importante para a RTP justificar a renovação do formato Festival da Canção com uma passagem à final, sob pena de a vitória do Salvador ser cada vez mais vista unicamente como uma “sorte” e não também como um reflexo do trabalho da emissora.

Bárbara Tinoco – 2.º lugar

Era desde o início apontada como a mais provável vencedora mas acabou por ficar a um passo de representar Portugal. Bárbara Tinoco conquistou o público nacional, mas o júri regional deixou ‘Passe-Partout’ a apenas dois lugares do fim da tabela. No início da gala Filomena Cautela disse que muitas surpresas estariam para chegar. Pois bem, por esta ninguém esperava.

O tema de Tiago Nacarato é das melhores composições do festival desde 2017 e todo o staging foi pensado para um programa de televisão. Estamos perante a qualidade e a perspicácia, uma fórmula de vitória. Tinoco superou a semifinal e foi dona do palco, os bailarinos completaram toda a performance sem tirar o destaque da vocalista e o público reagiu.

Na votação levada a cabo pelo Espalha-Factos, esta foi a canção mais votada, tanto pelos leitores como pelos redatores. As visualizações e impacto mediático previam uma vitória quase certa, mas este é o Festival da Canção e como sabemos tudo pode acontecer. Seria a canção portuguesa com mais capacidades de se destacar na Eurovisão e de conquistar um lugar simpático na final.

Uma votação imprópria para cardíacos

É para três minutos em palco que todos os compositores, intérpretes e RTP trabalham, mas são as votações que todos em casa querem ver. Salvador Sobral conquistou o júri em 2017, em 2018 Cláudia Pascoal conquistou o público e no ano passado Conan Osiris conquistou ambos. Já este ano, Elisa venceu sem ser a favorita de nenhum deles. Vamos por partes.

Como é habitual, o júri regional foi o primeiro a votar, e logo aí o burburinho instalou-se na sala de espetáculos. ‘Gerbera Amarela do Sul’ foi sucessivamente a mais votada, ao passo que o tema de Bárbara Tinoco arrecadava, 4, 5 ou 6 pontos. Filipe Sambado acabaria mesmo por vencer no voto “profissional” e ‘Passe-Partout’ ficava em 6.º lugar com, por exemplo, o júri do Algarve a atribuir mais pontos à canção de Tomás Luzia do que a Tinoco. Elisa estava em segundo.

Vitória Elisa
Conan Osiris entregou o troféu de canção vencedora a Elisa e Marta Carvalho

Já no televoto tudo se alterou. A favorita dos jurados não foi além do sétimo lugar, o que levou Sambado automaticamente a perder a vitória. Os votos foram subindo até que Tomás Luzia, último no júri, ficou em terceiro no televoto, o que também surpreendeu. Finalmente, e sem surpresas, foi mesmo a composição de Tiago Nacarato a vencer no televoto. No entanto, o júri definiu logo o sentido das votações, com os 12 pontos do público a não serem suficientes.

Elisa, que ficou em segundo lugar em ambas as votações, arrecadou 20 pontos, o suficiente para se sagrar vencedora ao lado de Marta Carvalho. Confere os votos totais deste Festival da Canção 2020:

  1. Medo de Sentir – 20 pontos – 10 do júri e 10 do público
  2. Passe-Partout – 18 pontos – 6 do júri e 12 do público
  3. Gerbera Amarela do Sul – 16 pontos – 12 júri e 4 do público
  4. Diz Só – 15 pontos – 8 do júri e 7 do público
  5. Abensonhado – 13 pontos – 7 do júri e 6 do público
  6. Mais Real que o Amor – 11 pontos – 3 do júri e 8 do público
  7. Movimento – 11 pontos – 6 do júri e 5 do público
  8. Não Voltes Mais – 7 pontos – 4 do júri e 3 do público

Lena D’Água, Conan Osiris e muita cumplicidade

Para lá da competição, o Festival da Canção é um palco para a música portuguesa. Durante a noite fomos brindados com atuações únicas que deram ainda mais cor ao que não deixa de ser uma competição televisiva. A versão intimista de ‘Telemóveis’ surpreendeu e a homenagem ao boom do rock português recordou de forma original sucessos intemporais. Lena D’Água fez questão de voltar ao palco que a relançou há três anos para cantar Variações.

A apresentação da final volta a parecer um programa completamente à parte das eliminatórias. Filomena Cautela e Vasco Palmeirim conseguem cativar o público e fazer de um programa com três horas algo verdadeiramente interessante. Ainda que a originalidade não tenha sido tanta como no ano passado, os anfitriões continuam a ser do melhor que a RTP tem para oferecer. Não esquecer o trabalho sempre sóbrio e certeiro de Inês Lopes Gonçalves na Green Room.

O nosso festival mostra ano após ano uma cumplicidade única entre os concorrentes. É muito bom ver que estão a trabalhar para o mesmo, mas que ninguém atrapalha ninguém. Que tudo é sincero e que acima de tudo reina a música. Acredito que é por isto, pelo amor à música, que o nosso Festival da Canção supera a esmagadora maioria dos outros festivais de países fortes na Eurovisão. Porque aqui nem tudo é competição, nem tudo é show off e fireworks.

Finalmente, é importante que a RTP procure melhorar a sua produção. De pouco vale um palco dentro de uma grande arena se depois o que nos chega a casa não está à altura do investimento. Também a qualidade do som das semifinais continua a não ser a melhor.

Resta-me desejar boa sorte à Elisa e à Marta Carvalho para Roterdão. Parabéns e representem o nosso país da melhor forma possível, estamos a contar com isso.

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