Marighella é um filme biográfico que se debruça sobre os últimos cinco anos da vida do revolucionário comunista brasileiro Carlos Marighella. Estreou na Berlinale em fevereiro de 2019 mas ainda não estreou no país de origem. O lançamento no Brasil, inicialmente marcado para 20 de novembro, foi cancelado pela Ancine (Agência Nacional do Cinema). Marighella será exibido no LEFFEST – Lisbon & Sintra Film Festival enquanto antestreia no dia 17 de novembro.
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O filme lança Wagner Moura como realizador e conta com atuações de Seu Jorge (Carlos Marighella), Adriana Esteves (Clara, mulher do revolucionário), Bruno Gagliasso (Lúcio, delegado do Departamento de Ordem Social e Política), Luiz Carlos Vasconcelos (Amir – ou Branco – o mais próximo companheiro de luta de Marighella), (Herson Capri (Jorge Salles, um personagem-tipo que corresponde aos jornalistas que ajudaram Marighella a difundir a sua mensagem), e Humberto Carrão, Bella Camero, Adanilo Reis, Henrique Vieira, Ana Paula Bouzas, Henrique Vieira e Rafael Lozano (que partilham os seus primeiros nomes com as personagens) como militantes da Ação Libertadora Nacional, o grupo que lutava contra a ditadura militar brasileira.

Marighella – um filme fiel ao seu nome
Marighella é um filme difícil. Mostra nua e cruamente o estado político, económico e social do Brasil nos primórdios da ditadura militar brasileira. Seu Jorge destaca-se enquanto protagonista que, atrás do poker face valente de Marighella que raramente faz transparecer o receio que sente, consegue fazer passar todo um mundo de ideais, aspirações e saudades num simples olhar. Os demais atores não ficam atrás e conseguem mostrar a polaridade das emoções: por um lado a profunda raiva que sentem do sistema, por outro a alegria e a esperança de alguma vez o conseguirem mudar.
A melhor atuação da trama é, ainda assim, a de Bruno Gagliasso. O ator encarna Lúcio, um agente detestável do Departamento de Ordem Social e Política (o equivalente à PIDE em Portugal). É o responsável pela morte de vários seguidores de Marighella, e é ele que encabeça, em conjunto com agente americano, a emboscada para matá-lo. É ele que está na fila da frente das torturas, com um discurso de ódio fortíssimo e extremamente alarmante, que deixa qualquer um revoltado e fisicamente enjoado. Durante a divulgação de Marighella em Berlim, Bruno Gagliasso chorou a falar de sua personagem:
“Não sei se vocês sabem, mas tenho uma filha negra, Eu sei da importância desse filme para a minha filha no futuro (…) Com esse filme, fui a um lugar onde nunca imaginei ir. Wagner [Moura] é ainda melhor diretor do que ator. Esse filme é forte, visceral, potente, mas movido por amor. Isso ninguém pode esquecer.”
Bruno Gagliasso como Lúcio | Fonte: Divulgação
Também a cinematografia é muito representativa daquilo que foi a vida de Marighella. As cenas de ação são filmadas freneticamente, a câmara acompanha os movimentos dos atores em estilo POV [point-of-view] e as cores escuras dominam as cenas, instaurando o ambiente antagonista. As cenas de tortura são altamente austeras e nada censuradas, podendo até ser demasiado forte para alguns espectadores.
O filme peca, no entanto, por ser longo demais. Alguns diálogos parecem desnecessários ou demasiado alongados e a meio do filme, o ritmo perde-se. Quando volta, no entanto, é com todo o vigor e fulgor, até o fim.
O processo atribulado de Marighella
A ideia do filme surgiu a partir da biografia de 2014 escrita por Mário Magalhães, “Marighella – O Guerrilheiro que Incendiou o Mundo“, o documento mais completo sobre a vida do revolucionário resultado de nove anos de pesquisa.
Wagner Moura comprou os direitos do livro para, a partir dele, escrever o guião de Marighella. Segundo uma entrevista a Mário Magalhães na Folha de S. Paulo, as rodagens teriam começado em 2015 e o objetivo seria ter o filme “lançado em 2016”. Dois anos passaram-se desde a data prevista para lançamento e o filme ainda não foi estreado no seu país de origem. Em junho foi anunciado que o filme sairia ao público a 20 de novembro de 2019, o Dia da Consciência Negra no Brasil. No entanto, em setembro, foi anunciado o cancelamento. Segundo o comunicado da produção, “Nós, produtores do longa-metragem “Marighella”, dirigido por Wagner Moura, anunciamos que a data de lançamento do filme nos cinemas brasileiros, divulgada anteriormente para 20 de novembro de 2019, está cancelada” por não ter conseguido cumprir os trâmites impostos pela Ancine a tempo.
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O homem que não teve tempo para ter medo
Filho de um imigrante italiano e de uma descendente de escravos sudaneses, Carlos Marighella nasceu na Bahia, em 1911. Ingressou na faculdade para estudar engenharia, mas a vontade de se aliar ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) foi mais forte e, em 1934 tornou-se militante profissional do partido e mudou-se para o Rio de Janeiro. Dois anos antes, em 1932, foi preso pela primeira vez, após publicar um poema que criticava o então governador da Bahia, Juracy Magalhães.
Ao longo da sua vida, foi para a prisão mais três vezes: a 1 de maio de 1936 foi preso e torturado por “subversão” (ficou encarcerado por um ano) e em 1939 foi novamente capturado – permaneceu preso até 1945, quando a amnistia do processo de redemocratização foi instaurada no Brasil. Um ano depois, tornou-se deputado do PCB e foi convidado pelo Comité Central do Partido Comunista da China para visitar o país, tendo ficado lá um ano, de 1952 a 1953. Em 1964, após o golpe militar, foi baleado por agentes do DOPS dentro de um cinema e preso mais uma vez.

Foi expulso do Partido Comunista Brasileiro por “divergências políticas” (leia-se que era demasiado radical para o partido) em 1967 e um ano depois fundou a Ação Libertadora Nacional (ALN), um grupo armado que levava a cabo várias operações (como assaltos a comboios, bancos e o sequestro do embaixador norte-americano Charles Ebrick) e que tinha como objetivo principal a “instalação de um governo popular revolucionário“. Para muitas destas intervenções contou com grupos revolucionários como o Movimento Revolucionário de Oito de Outubro (MR-8), o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário e, de forma inusitada, com a ajuda de frades dominicanos.
Morreu um dia antes do seu 58.º aniversário, a 4 de novembro de 1969, numa emboscada encabeçada pelo DOPS.