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Queda do Muro de Berlim, 1989

30 anos da queda do Muro de Berlim: a cultura numa Alemanha dividida

Há 30 anos, dava-se oficialmente a queda do Muro de Berlim, que dividira não só a cidade como a Alemanha e o mundo inteiro.

Um dos maiores símbolos da Guerra Fria, o Muro de Berlim demarcou a dicotomia pesada entre o mundo capitalista e o mundo comunista, conseguindo transformar Berlim em duas partes completamente opostas.

Queda do Muro de Berlim: soldado alemão oriental oferece cravo a grupo de berlinenses.
Um soldado da RDA oferece cravo a grupo de berlinenses. / Reuters

9 de novembro de 1989, com a demolição oficial deste Muro, a Alemanha começou a reunificar-se gradualmente. Mas, 30 anos depois, ainda é possível sentir o choque cultural entre os mais velhos, que cresceram separados por um bloco enorme de cimento.

Hoje, a liberdade é chefe em Berlim e na Alemanha, um aspeto que havia sido restrito várias vezes no último século. Além do conflito imperialista que dividiu o mundo em dois, já haviam todos presenciado duas Guerras Mundiais, das quais saíram os resultados vistos na Guerra Fria (nomeadamente, esta divisão da Deutschland).

Em 1990, já era claro que a Guerra Fria também se extinguiria, apesar de continuarmos bombardeados de exemplos desta silenciosa disputa atualmente – e embora sem vencedores anunciados, é fácil presumir quem saiu vitorioso: o Bloco Ocidental, que se estendeu para o Leste ao longo das últimas décadas. Politicamente, economicamente e culturalmente.

Prepara-te para visitar Berlim em 1989, e o teu bilhete é especial: podes ver os dois lados do Muro. O Espalha-Factos reuniu alguns detalhes sobre como a cultura se difundiu e influenciou a vida nas duas Alemanhas.

Televisão e Cinema

1945. Em Berlim, construiu-se uma sala de cinema com a melhor tecnologia soviética. Através de filmes, conseguiu-se que os alemães mudassem de ideias em relação ao nazismo, para o condenar, logo após a guerra. Mas mal se concretizou uma divisão da cidade através do Muro de Berlim, em 1961, o sucesso do cinema foi posto de lado no Oriente.

Ainda em 1946, fora criada a DEFA (Deutsche Film-Aktiengesellschaft), a responsável pela criação cinematográfica dos temas referentes à democracia e ao antifascismo. Com a chegada ao poder de Estaline na União Soviética, em 1953, a DEFA passa oficialmente para as mãos do Estado, e desde então foi a única companhia de cinema da RDA.

Os temas retratados nos filmes apresentados à população eram redundantes, especialmente para evitar tocar em assuntos capitalistas. Focavam-se no futuro socialista da Alemanha.

Berlin Schönhauser Corner
Berlin Schönhauser Corner (1957), DEFA

Berlin Schönhauser Corner (1957) foi uma aposta arrojada na política cinematográfica de Berlim Oriental. Numa tentativa mais moderna para atrair os jovens enfatuados pela arte do Ocidente, os protagonistas são exatamente dessa faixa etária. Face aos seus problemas, decidem fugir para o outro lado do Muro… e acabam por descobrir que esse lado não é nenhum mar de rosas, como sonhavam.

No Ocidente, surgia o Neuer Deutscher Film (Novo Cinema Alemão), influenciado pela Nouvelle Vague a chegar de França. Traziam-na os autores do Manifesto de Oberhausen, de 1962, revoltados com a falta de crítica no cinema do pós-guerra. Apesar dos primeiros anos do pós-guerra terem incluído temas políticos que fizeram com que os alemães se insurgissem contra aquilo em que se tornaram durante a II Guerra Mundial, nas décadas seguintes os cinemas encheram-se de filmes superficiais, numa tentativa popular de esquecer os tempos de guerra.

Neuer Deutscher Film

Esta nova vaga de cinema abordava o Autorenkino, ou por outras palavras, o cinema de autor. Os filmes abordavam temas como a revolução sexual, a emancipação feminina, o conflito geracional. Aliavam-se, por vezes, aos protestos estudantis cada vez mais recorrentes, sendo exemplo o tumulto de 1968.

Destacaram-se nomes como Wim Wenders, Rainer Werner Fassbinder, Werner Herzog, Helma Sanders-Brahms ou Doris Dörrie. Apesar destes filmes nascerem na Alemanha, tornaram-se populares nos Estados Unidos da América e em França.

5 filmes numa Berlim dividida

Wim Wenders é talvez o que mais deu que falar. Um dos seus filmes mais conhecidos e reconhecidos mundialmente é Ein Himmel über Berlin (1987), mais conhecido por Wings of Desire, um romance-fantasia situado no tempo em que o Muro de Berlim separava a cidade. Outro dos seus filmes que nos toca, enquanto portugueses, é o Der Stand der Dinge (1982), ou O Estado das Coisas, que perspetiva a produção cinematográfica por parte da equipa, e foi filmado parcialmente em Sintra.

Já nos ecrãs lá em casa…

A televisão foi um mote para a queda do Muro de Berlim. Na maioria dos lugares, na Alemanha Oriental, ao ligar a televisão, era possível assistir a canais do Ocidente, que deixava os alemães do Oriente a sonhar com a vida do outro lado. Eles tinham acesso à moda, aos carros, aos anúncios, à propaganda política e às revoluções vividas nos outros países, transmitidas na televisão da outra Alemanha.

Aludindo à cultura popular, seis vezes por ano, era passado um programa na televisão chamado Ein Kessen Buntes, que contava com vários apresentadores famosos na RDA, e a produção era tão extravagante que era transmitido na Rússia também. Este programa foi criado para concorrer com programas do género produzidos na Alemanha Ocidental.

Música

Alguma vez ouviste falar de Siggi Markwart? Apostamos que não. Nos tempos da Alemanha Oriental este senhor era conhecido como o “rei da dança de Berlim”. Todas as noites dançava o rock n’ roll na Clärchens Ballhaus, a casa de dança mais famosa de Berlim, criada por Clara Bühler em 1913.

O rock n’ roll foi banido na Alemanha Oriental. Não havia DJs na altura, apenas bandas ao vivo.” Quem o diz é Markwart, agora de 79 anos, mas ainda firme na dança, à Deutsche Welle. “Fizemos um acordo. Eles tocavam rock n’ roll e, quando o segurança fazia um sinal, significava que a polícia estava a caminho. Aí tocavam valsa ou tango, música que era permitida.

Para compensar a proibição dos estilos ocidentais no seu bloco, nos anos 60, os alemães de leste tentaram criar tanto a sua música como uma própria dança socialista. A tentativa foi maioritariamente ignorada pelos mais jovens, que continuavam interessados no rock n’ roll e nos dance moves de Elvis.

Um facto curioso sobre a RDA: pessoas que ouviam pop, rock ou blues eram espiadas pelo Governo. Tendo em conta a restrição de conteúdos criativos pelo Governo, havia quem trouxesse discos de música ocidental para esse lado do muro. O mais comum era que se fizessem cópias de algumas músicas, criando versões permitidas na Alemanha Oriental. Na década de 80, jovens juntavam-se para ouvir música em igrejas, onde conseguiam sintonizar os rádios do outro lado do muro. Esses jovens foram vigiados pelo Estado por, alegadamente, poderem constituir uma ameaça para o equilíbrio da nação.

punk
Punks nas ruas de Berlim.
Punks nas ruas de Berlim / Seeliger

Na Alemanha Ocidental, vivia-se não só o rock n’ roll mas nascia também a Neue Deutsche Welle. Antes disso, insurgia-se o punk, que provinha do forte impacto nas grandes cidades inglesas, nomeadamente Londres. Aliás, os britânicos Sex Pystols cantavam sobre o muro alemão em ‘Holidays in the sun’ (1977).

Os Die Toten Hosen foram os seus próprios Sex Pystols – tocavam instrumentos que nunca tinham aprendido a tocar, e passavam a sua mensagem através de música simples, curta e apelativa aos misfits alemães. Também Die Ärtzte se destacaram com este estilo, através das suas letras irónicas e anarquistas.

Viajamos até ao outro lado do muro para vos recordar de Nina Hagen, que nasceu e cresceu na Alemanha Oriental… Até se mudar para Hamburgo em 1976, com o expatriado Wolf Biermann, o seu padrasto. Atriz, ativista pelos direitos dos animais e captadora de um público alternativo, Nina é recordada por êxitos como ‘Du hast den Farbfilm vergessen’ (1974) e ‘TV Glotzer’ (1982).

E, caso não tivesses conhecimento, destacamos também os Rammstein, que ainda antes de o serem oficialmente, em 1994, já tinham origens traçadas na Alemanha Oriental. O punk chegara ao lado comunista da cidade, para entreter uma juventude aborrecida.

O papel do pop num mundo separado pelo Muro

Não podemos passar esta secção sem falar do emblemático Falco, que cantou ‘Rock Me, Amadeus‘ (1985) e ‘Der Kommissar’ (1981), e ainda o estranhíssimo ‘Jeanny’ (1985). Apostando em cantar no seu idioma materno, destacando-o fortemente, chegou a ser considerado uma influência para o hip hop alemão.

Ou ainda, daqueles que cantaram sobre o Muro de Berlim na altura da sua queda – os alemães Scorpions, com o poderoso hit internacional ‘Wind of Change’ (1990), considerado um hino da reunificação do país; David Bowie, inspirado num caso amoroso que o seu produtor vivia com uma alemã junto ao Muro, em ‘Heroes’ (1977); Elton John e o que o separa da mulher com nome masculino ‘Nikita’ (1985).

Moda

Claudia Skoda, fashion designer alemã.
“The Berlin Sessions”. Na fotografia, Claudia Skoda, fashion designer na Alemanha pré-reunificação, acompanhada de Tabea Blumenschein e Jenny Capitain / Ulrike Ottinger

Enquanto a Alemanha Ocidental acompanhava o glamour e o avanço de um mundo cada vez mais globalizado – dentro do possível –, no outro lado do Muro de Berlim as coisas mantinham-se práticas.

Os modelos destinavam-se à classe operária, por representar a maioria da população. A alta costura consistiria em vestidos simples, alguns com cintos, luvas pretas e, por vezes, colares de pérolas – um estilo que relembraria alguns do início do século, mas muito mais melancólico, muito mais tarde e com um propósito completamente diferente.

Sibylle

A revista Sibylle, criada por Sibylle Gerstner em 1956, retratou a moda feminina da República Democrática Alemã. Na década seguinte, incluiria fotografias da autoria de Arno Fischer, que retratara as modelos nas ruas de Berlim. A revista revestira-se, nos anos 80, de fotografias com uma estética silenciosa e melancólica, da autoria de Sibylle Bergemann. Ute Mahler fotografou com a ideia de fazer sobressair o indivíduo – o que é um pouco irónico, tendo em conta o espírito de coletividade. Foi nesta última década que se viram edições a representar os hippies e os poppers, modas que haviam começado 10 anos antes no outro lado do mundo.

Revista alemã de moda Sibylle
À esquerda, uma das primeiras capas da revista Sibylle, Willi Altendorf. À direita, um artigo sobre a moda operária, Jochen Moll.

O interessante sobre o retratado na Sibylle é que não se tratavam de peças que se pudessem comprar numa loja a si associada. Os modelos eram apresentados para que as mulheres costurassem a sua própria roupa, usando os mesmos como inspiração.

Durante os anos 70, a censura estatal obrigara Sibylle a restringir-se ao Leste e a Berlim, coisa que não acontecera na altura da criação da revista, em que a criadora várias vezes mencionava grandes cidades do Ocidente – Florença, Viena, Nova Iorque, Londres, Paris. Apesar disso, Sibylle continuou a desafiar o Estado, especialmente quando o compositor Wolf Biermann foi expatriado em 1976, o que impulsionou a publicação de histórias irónicas sobre o assunto na revista.

Face à queda do Muro de Berlim e à reunificação da Alemanha, a Sibylle perdeu o seu mercado e acabou por declarar falência.

Arte(s plásticas)

No final da I Guerra, a arte foi onde se refugiaram as mazelas de uma Europa destruída. O dadaísmo aparecera na Suíça ainda durante a guerra, e espalhou-se entre os exilados do conflito. Abrangeu artistas que tiraram proveito disso para criticar o absurdo da guerra. Com a II Guerra, a arte foi completamente desvalorizada. Talvez justificando-se pelos traumas da juventude de Adolf Hitler, rejeitado da Academia de Belas-Artes de Viena por “não ter talento“.

Os artistas da Alemanha – separada pelo Muro de Berlim – da segunda metade do século XX têm uma aprovação diferente.

Apesar da restrição sentida geralmente na cultura da Alemanha Oriental, a pintura foi capaz de ultrapassar barreiras físicas e ideológicas. Em Berlim, Leipzig ou Dresden sentiam-se os estilos próprios dos pintores alemães. Nomes como Gerhard Altenbourg, Carlfriedrich Claus ou Hermann Glöckner inspiraram-se nas vanguardas do século XX e nos movimentos populares, desde o impressionismo à pop art.

Will Sitte, pintor comunista alemão.
Obras de Willi Sitte (1921-2013), conhecido como “o pintor comunista”. Alemão e aliado ao bloco oriental, foi um dos fundadores do realismo socialista.

Durante anos, evitou-se tocar no tópico da arte da RDA, pela sensibilidade de abordagem do mesmo. Tentou-se que não se confundissem dois tipos de artistas diferentes: os artistas subordinados ao Estado, que pintavam o universo do trabalhador e exaltavam o regime socialista, e os artistas que se distanciavam desse cânone.

A arte pós-moderna no Ocidente

Na RFA, recuperava-se o abstracionismo, currente antagónica ao Terceiro Reich, difundida por todo o Ocidente, e que fazia jus à dificuldade da representação do real no pós-guerra. Nos anos 50, a chegada da pop art e do fotorrealismo traria uma representação vasta para o campo artístico. Destacam-se Joseph Beuys e Gerhard Richter.

Josh Beuys, "I Like America and America Likes Me" (1974)
O artista conceptual Joseph Beuys, fechado num quarto com um coiote vivo, parte da sua performance ‘I Like America and America Likes Me‘ (1974), onde passaria 8 horas, 3 dias consecutivos, a comunicar com o coiote.

Nos anos 80, o cenário é invadido por uma outra nova onda alemã – a Neue Wilden, inspirada no fauvismo francês, que levaria a uma larga exposição neo-expressionista na arte alemã ocidental. O pós-modernismo acompanhara-a com o realismo e a conceptualidade, de forma informal.

Literatura

Evidentemente que, também na literatura, a República Democrática Alemã se cingiu aos tópicos por si aprovados – no caso, o realismo socialista. Os autores alemães escreveram no exílio, durante a guerra, e voltaram ao seu país mais tarde, onde as suas obras foram reeditadas. Na Alemanha Oriental, destacam-se Arnold Zweig, com O Machado de Wandsbek (1943), Anna Seghers, com o misterioso Os Mortos Permanecem Jovens (1949), ou até o filósofo Ernst Bloch, marxista que escreveu sobre utopias. Liam-se romances históricos que ora abordavam a guerra anterior, ora se focavam no mítico, tema no qual Stefan Heyn era perito, com obras como O Relatório Rei Davi (1972).

Nos anos 60, os escritores foram incentivados a incorporar nas suas obras o mundo real em que viviam – o mundo industrial, o universo do operário – e assim unir o trabalho manual ao trabalho intelectual.

O Céu Dividido (1963), de Christa Wolf, falou sobre a divisão alemã pela primeira vez. Jurek Becker escreveu sobre o quotidiano alemão. Aos temas históricos, entretanto saturados, sucederam as vidas dos autores, sobre os quais se escrevia.

A sátira acabou por chegar através de nomes como Wolf Biermann, expatriado para a Alemanha Ocidental em 1976 após considerações polémicas acerca do regime. O poeta e compositor despoletou a saída do país de vários outros escritores, que já haviam também sido pressionados pelos órgãos estaduais.

Na República Federal da Alemanha, Arnold Zweig já servia de inspiração a novos escritores, conjuntamente com Lion Feuchtwanger, através das obras que escreveram até 1933, ano em que se instaurou o regime nazi.

O que se escreveu na segunda metade do século XX

Nas primeiras décadas, a literatura focou-se nos traumas da segunda guerra e assumiu uma perspetiva existencialista. Vários autores e poetas destacaram o horror do Holocausto, contestando de forma nervosa o que Theodor Adorno e outros filósofos questionavam: como é que é possível escrever poesia depois de Auschwitz?

A segunda metade do século XX trouxe-nos uma forte literatura alemã: como O Perfume (1985), de Patrik Süskind, O Médico de Estalinegrado (1958), de Heinz Konsalik, O Tambor (1959) de Günter Grass, A honra perdida de Katharina Blum (1974), de Heinrich Böll ou ainda O Leitor (1995), de Bernhard Schlink.

Das Parfum ou O Perfume, Patrik Süskind
A capa do livro original ‘Das Parfum’, de Patrik Süskind, e o poster da adaptação ao cinema, como ‘Perfume: The Story of a Murderer’, em 2006.

A Guerra Fria foi também um comum tema literário no suspense inglês e americano. Desde o tema da espionagem russa, retratado em romances de John le Carré ou até em testemunhos jornalísticos, por Alan Cowell, em O Último Espião (2010).

Menção honrosa: O Homem de Sampetersburgo (1983), de Ken Follett, que embora não retrate a Guerra Fria, situa-se a par com os conflitos anteriores à I Guerra Mundial, que moldaram a Rússia – que entretanto se tornaria na União Soviética – no século XX.

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