Desde o momento em que estreou a nível internacional, Vice foi considerado bastante polarizador, oscilando entre o amor e o ódio dos críticos. Mesmo que o enredo não apele ao consenso, o novo filme de Adam McKay destaca-se pela sua narrativa crua e arrojada da vida de Dick Cheney, um dos vice-presidentes mais controversos dos Estados Unidos da América.
Numa clara alusão a anteriores trabalhos de McKay, em particular a The Big Short (em português, A Queda de Wall Street), Vice apresenta ao espetador um minucioso retrato da intriga política norte-americana, acentuando o “bom, o mau e o feio” de uma história ainda com repercussões nos dias que correm.
Este forte candidato aos Oscars 2019 estreou a dia 14 de fevereiro nas salas de cinema portuguesas.
A distinta voz de Adam McKay
Vice serve-se de uma estética muito específica para perpassar a sua mensagem primordial: dissecar as nuances de um discreto político, evidenciando o alheamento público a muito do que se passa nos bastidores governamentais.
O espetador aprende que singrar neste ramo não passa de um simples jogo. Qualquer um pode prosperar se definir uma tática, manusear bem os seus trunfos e aproveitar oportunidades. Esta é, sem dúvida, a essência de Dick Cheney como excelente jogador no retorcido monopólio político.

Posto isto, torna-se inevitável mencionar a joia da coroa na produção de Vice: Christian Bale, ator que dá vida ao conservador vice-presidente. A tarefa de exteriorizar uma personalidade tão recatada e embrenhada nos seus próprios pensamentos não é fácil, mesmo para um profissional de renome na área da representação. Contudo, Bale mostra-se à altura, servindo-se de subtil linguagem corporal, numa mímica perfeita dos maneirismos de Cheney. Do pequeno sorriso afetado à enunciação frásica serena, o ator brinda-nos com uma atuação singular que transcende parecenças físicas, expondo a verdadeira natureza autoritária do protagonista.
O restante elenco exibe, de igual modo, um ótimo desempenho, com especial destaque para Steve Carrel, no papel de Donald Rumsfeld, o irreverente e sagaz secretário de defesa; Sam Rockwell, pela interpretação do ingénuo presidente George W. Bush; e Amy Adams ao interpretar a obstinada segunda dama Lynne Cheney.

Vice acaba apenas por pecar relativamente a dúbias escolhas estilísticas, entre elas o desenrolar da ação às mãos de um narrador incógnito. Por um lado, este elemento suscita um certo mistério, proporcionando, também, vários momentos cómicos.
Por outro, força uma boa história a seguir direções algo questionáveis. O melhor exemplo reside no facto de o narrador apresentar vários desfechos para a mesma situação, com o intuito de reforçar a importância da mais inócua ocorrência. Ainda que original, este efeito borboleta consegue tornar-se constrangedor e desnecessário, com a transformação de naturais diálogos em falsos versos de Shakespeare, sem nenhuma razão aparente.

Porém, o estilo peculiar de McKay é, na sua maioria, satisfatório, ao tomar a forma de uma assertiva e polémica Ted Talk. Numa época dominada pela desinformação, Vice é um necessário apelo ao escrutínio político e à contestação da extrema liberdade conferida às figuras de estado contemporâneas.
Dick Cheney, o vilão disfarçado
Muitos descrevem a caracterização de Cheney como unidimensional, apesar da interpretação irrepreensível por parte de Christian Bale. O político é, decerto, retratado como um mero vilão, que ascendeu socialmente de forma oportunista e manipuladora. As escolhas, no mínimo, duvidosas que este faz na qualidade de vice-presidente nunca são suavizadas, muito pelo contrário.

No entanto, o filme oferece alguns momentos abonatórios ao personagem, dotando-o de inesperada complexidade. A marcante imagem de homem que protege a família acima de tudo confere algum dinamismo a Cheney, fator que modera a dimensão pejorativa da obra.
Apesar de existir este cuidado em mostrar “dois lados”, McKay não tem como objetivo pintar uma imagem equilibrada de Cheney. Vice escolhe antes focar-se na ideia de “lobo em pele de cordeiro”, iludido o suficiente para acreditar na validade das suas posições políticas, argumentando que, graças a si, “inúmeras famílias podem dormir descansadas à noite”.
A questão aqui é desmascarar o que está por trás deste “altruísmo”. Será um líder nato que apenas queria proteger a nação? Ou um perspicaz predador na perseguição da sua presa, não olhando a meios para atingir os fins?

Tal conflito é ilustrado mediante inúmeras metáforas visuais. No momento em que Cheney requisita a George Bush maior controlo enquanto vice-presidente, a filmagem corta para um momento bem-sucedido de pesca. Quando este descobre os benefícios da poderosa Unitary Executive Theory, a cena é complementada com uma feroz perseguição animal.
Toda esta busca frutífera pelo poder e reconhecimento possui, inevitavelmente, consequências nefastas, representadas de maneira bastante peculiar: no coração do próprio Dick Cheney.

Poucos homens aguentariam a pressão de manipular um chefe de estado ou persuadir o congresso a aprovar uma despropositada invasão ao Iraque. Cheney não é exceção. Vice mostra-nos um vice-presidente em decadência, afetado pelo condenável estilo de vida que leva. Os seus ataques cardíacos acabam por personificar uma sádica justiça poética, que remata, de forma magistral, toda a dimensão metafórica do filme.

Não é segredo que adaptações biográficas ao grande ecrã primam por incoerências relativas à veracidade dos acontecimentos. Muito dos diálogos são imaginados, o que provoca algumas dúvidas em relação ao rigor na caracterização de Cheney. Todavia, o enredo é cativante, entretém o espetador e não falha em “trocar por miúdos” complicada logística política, tornando-a acessível à generalidade.
Mais uma vez nem tudo é o que parece em Vice. Os malfeitores nem sempre têm mau aspeto, realizando atividades ilícitas às claras. Por vezes, estes são comedidos homens de negócios, com pouco controlo e demasiado poder à sua disposição. McKay deixa o aviso:
“Cuidado com o homem silencioso. Enquanto os outros falam, ele observa. Enquanto os outros agem, ele planeia. E quando eles finalmente descansam… ele ataca”.
Título original: Vice
Realização: Adam McKay
Argumento: Adam McKay
Elenco: Christian Bale, Steve Carell, Sam Rockwell, Amy Adams
Género: Biografia, Comédia, Drama
Duração: 132 minutos