Existem pessoas nesta vida que a partir do momento em que se encontram ficam ligadas uma à outra até ao fim das suas vidas. Foi o que aconteceu, de certa forma, com Frank Vallelonga e Don Shirley, que morreram em 2013 com sete meses de diferença. Encontraram-se na primeira metade da década de 60, quando Shirley, pianista afro-americano, contratou Vallelonga para ser o seu chauffer numa tour pelo Sul dos Estados Unidos da América. Esta é a premissa de uma obra que vive muito das performances de Viggo Mortensen e Mahershala Ali, dois atores nas suas melhores formas e que se contagiam em cena.
Green Book é um filme on the road em que muitas cenas se passam dentro de um carro, como é sintomático neste género de obras. Peter Farrelly, em conjunto com Brian Hayes Currie e Nick Vallelonga, filho de Frank, construiu um argumento seguro com um diálogo muito bem pensado que mantêm Green Book a andar sobre rodas até ao final, sem sofrer qualquer percalço.
Como não poderia deixar de ser, o público é servido com um número de cenas em que o racismo impera, o que não é nada de novo. O que já não é tão banal assim é a forma como Shirley é posicionado na história. É uma personagem afro-americana, sim, mas não é mais um estereótipo. Como se confessa mais para o final, num discurso brilhantemente proferido por Mahershala Ali, Shirley sente-se tanto fora da comunidade branca como da comunidade negra. O pianista só é aplaudido quando toma o papel de músico, voltando a ser olhado de lado quando despe essa faceta.
A personagem de Frank Vallelonga já é mais estereotipada (mais conhecido por Tony Lip), mas Viggo Mortensen consegue transformar um papel típico de um homem de classe trabalhadora numa interpretação de uma vida. Vallelonga é um italo-americano de músculos, mas também é homem de família esperto e que sabe fazer rir. Durante larga maioria do filme vai no lugar da frente do carro, imagem que também é simbólica, pois é ele que está entre Shirley e todas as situações difíceis com que se deparam no Sul.
Tanto Mortensen e Ali têm momentos de destaque individuais, mas o melhor mesmo é quando os dois se juntam. Basta ver e rever, mas rever muitas vezes, a cena em que Vallelonga “obriga” Shirley a experimentar frango frito. São cenas assim que, juntas, fazem de Green Book um enorme prazer.
Mas a cena do frango frito não serve só para nos levar às lágrimas, mas também para nos mostrar algo que é recorrente na vida de cada um de nós, quando nos abrimos mais com alguém, após um momento inicial em que mantemos distância. Depois de quebrada a primeira barreira, temos via aberta para uma autoestrada de diálogos mais deliciosos que o frango.
No final, Green Book pode ser considerado um feel good movie, mas sem antes nos fazer frente com questões intemporais como “a que lugar pertencemos?” e “só porque os outros me olham de uma certa forma, eu deverei atuar de acordo com essa visão?”.
Título original: Green Book
Realizador: Peter Farrelly
Argumento: Peter Farelly, Brian Hayes Currie, Nick Vallelonga
Elenco: Viggo Mortensen, Mahershala Ali, Linda Cardellini
Género: Drama, Comédia
Duração: 130 minutos