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Foto: VisualHunt

Março é o mês da poesia: #2 As escolhas dos redatores

Faltam quatro dias para o Dia Mundial da Poesia e o Espalha-Factos não poderia deixar de assinalar esta data. Ao longo do mês de março, a equipa decidiu homenagear a poesia portuguesa.

Recordamos poetas como Almada Negreiros, Sophia de Mello Breyner, Herberto Helder, Mário Cesariny, entre outros. Este sábado, a rubrica “As escolhas dos redatores” está de volta e mais dois elementos da equipa desvendam quais os seus poemas preferidos.

Tabacaria

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
[…]
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
[…]
Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordámos e ele é opaco,
Levantámo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.
[…]

Álvaro de Campos, in Poemas

Fernando António Nogueira Pessoa nasceu em 1888, em Lisboa, e é considerado um dos maiores poetas da língua portuguesa e da literatura universal.

Ao longo da sua vida foi empresário, editor, crítico literário, jornalista, comentador político, tradutor, inventor, astrólogo e até publicitário. Como poeta, destaca-se pelos seus múltiplos heterónimos, até hoje objeto da maior parte dos estudos sobre a vida e obra do autor.

Tabacaria foi escrito em 1928 por Álvaro de Campos e publicado na Presença em 1933. Ainda que pertença à fase mais pessimista do autor, é uma retrospeção que tem tanto de triste como de sublime.

Lembro-me de gostar do poema desde a primeira vez que o li. De repetir os versos para não mais os esquecer. “Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama” nunca me saiu da cabeça. Também eu “tenho em mim todos os sonhos do mundo” e temo que eles não passem de pura imaginação.

Um poema brilhante onde o tudo contrasta com o nada, o sonho com a realidade. Afinal, o mundo não é para os que sonham, mas sim para aqueles que lutam.

Joana Lima

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Cântico Negro

«”Vem por aqui” – dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: “vem por aqui!”
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali…
A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
– Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos…
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: “vem por aqui!”?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí…
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?…
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos…
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios…
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios…
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: “vem por aqui”!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou…
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
– Sei que não vou por aí!»

Poemas de Deus e do Diabo, 1926

José Régio é o pseudónimo de José Maria dos Reis Pereira, que nasceu a 17 de setembro de 1901 e faleceu a 22 de dezembro de 1969, em Vila do Conde.

Escritor, poeta, dramaturgo, romancista, ensaísta, cronista, crítico, desenhador, pintor, conhecedor de arte sacra e historiador da literatura português, José Régio fundou em 1927, com Branquinho da Fonseca e João Gaspar Simões, a revista literária Presença, que veio a ser publicada, irregularmente, durante treze anos. Esta revista veio a marcar o segundo modernismo português, que teve como principal impulsionador e ideólogo o autor do «Cântico Negro».

E precisamente este que destacamos é um dos poemas mais conhecidos de José Régio.

«Cântico Negro» é um dos poemas que sempre me ficou no ouvido. Pela força, pela cadência, pela ousadia e pela determinação. Este é um poema que nos vai deixando desconfortáveis para se tornar num grito de revolta. Porque a poesia de José Régio consegue trazer a nu a face menos reconfortante da condição humana.

Quem não se vai assustar quando um louco desflorestar florestas virgens? Esses loucos serão os que arriscam num caminho diferente? Os que desenham os pés na areia inexplorada? Os que amam o longe, a miragem, os abismos, as torrentes e os desertos? Porque se a vida deles é uma onda que se alevanta, então a vida deles faz sentido. Porque as ondas só se avistam se se alevantarem.

Vamos criar os nossos próprios caminhos. Vamos seguir os nossos passos, os da nossa alma. Vamos levantar-nos, vamos ser nós.

Maria Beatriz Viana

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