Há mais de uma década que Greta Gerwig – uma das vozes mais queridas do art house norte-americano – tem, lentamente, ganho reconhecimento em Hollywood. Frances Ha (2012) é o seu papel mais notável até à data, um filme no qual também assinava o argumento, juntamente com o realizador e seu atual parceiro, Noah Baumbach. Já no ano passado, houve conversa de prémios pela sua interpretação em Mulheres do Século XX, mas tal nunca se materializou. Mas Gerwig está aí para singrar, pela primeira vez a solo atrás das câmaras e no argumento, com Lady Bird, uma “dramédia” inspirada na sua própria adolescência.
Setembro de 2002. Christine (Saoirse Ronan) tem 17 anos e está no seu último ano num liceu católico em Sacramento, na Califórnia, local onde sempre viveu. Com claras inclinações artísticas e uma grande rebeldia para as acompanhar, sonha em ir estudar para uma universidade fora do seu estado, onde irá finalmente iniciar a vida que sempre ambicionou. Mas o futuro não se afigura fácil: com notas a roçar o irrisório e com o seu pai (Tracy Letts) desempregado, Christine entra constantemente em atrito com a sua mãe, a determinada Marion (Laurie Metcalf), uma enfermeira que mantém a família à tona. Os meses que se seguem prometem ser o maior turbilhão de emoções para Christine; um ano em que inicia e termina amizades, descobre e esquece paixões e, mais que tudo, define a mulher que quer ser.

Lady Bird não é um filme vistoso enquanto “mero” drama familiar, mas que não duvidemos: Gerwig mereceu a sua nomeação ao Óscar de Melhor Realização. A recriação de época é subtil – afinal, 2002, a grande capicua, foi somente há 16 anos atrás. Mas há precisão na atmosfera e ambiente retratados, os de uma América pós-9/11 e à beira da recessão. E, acima de tudo, há um verdadeiro apego pelo enredo que tece.
Apenas levemente baseado em eventos da sua vida, afirma Gerwig, mas com um cunho pessoal muito próprio e sentido. É palpável a sua paixão em subverter o próprio ódio à sua terra natal de Sacramento; em relatar os dramas da adolescência, do ano decisivo na vida de quem está prestes a tornar-se adulto; e, acima de tudo, em explorar o que une e o que separa mães e filhas. E Gerwig consegue um exercício de equilíbrio perfeito entre todas as vertentes dramáticas da sua fita, culminando numa sugestão sensível do que terá sido a sua existência no início deste século, através da figura de Christine.
Mas palavras e atitudes não fazem uma personagem sem uma atriz à altura, e diga-se: este é o mais completo papel de Ronan até à data. Ronan já tinha impressionado a Academia ao ponto de ser nomeada por Expiação (2007) e Brooklyn (2015), e, em verdade, dificilmente será esta a sua vez de subir ao palco. Mas nem por isso é menos brilhante. Ela faz-nos acreditar em Christine, transporta-nos para os seus “quês” e complexidades pessoais e próprios da idade; é também espantoso ver o quanto cresceu enquanto atriz, e saber o longo caminho que ainda tem pela frente.
E quanto a Marion, que dizer de Metcalf? Numa das grandes performances secundárias do ano, a atriz – também nomeada ao Óscar – não está aí para o excesso melodramático. É o pequeno sentimentalismo quotidiano que carrega, a satisfação e as dores de duas décadas com dois filhos a encargo, a tocante naturalidade com que se expressa.
Tanto Ronan como Metcalf são magníficas por si mesmas, mas o maior testamento à força das suas performances é serem uma só quando partilham o ecrã. E, em derradeira análise, talvez seja isso o que mais impacto tem Lady Bird. Ser adolescente é só uma condição prestes a terminar na vida de Christine, mas ser filha de Marion é para sempre (assim como esta ser sua mãe). Gerwig sabe quem são estas mulheres que escreve; já foi uma e já lidou com a outra, conseguindo assim criar um mundo ao intimamente humanizá-las até ao último traço.

Filmes sobre a relação entre mães e filhas, há tantos, mas poucos atingem a seriedade deste. Christine está prestes a atingir a maturidade, mas Marion também vai dar um salto rumo ao desconhecido: confiar na sua menina e acreditar que esta já é a pessoa que diz ser. Duas transições com décadas de idade pelo meio, mas metafórico espelho uma da outra.
Uma rapariga a compreender o adágio de que todas acabam iguais às mães. Uma mulher a entender que é igual à sua filha.
Que cinema radioso.
9/10
Título original: Lady Bird
Realização: Greta Gerwig
Argumento: Greta Gerwig
Elenco: Saoirse Ronan, Laurie Metcalf, Tracy Letts, Lucas Hedges, Timothée Chalamet, Beanie Feldstein, Lois Smith, Stephen Henderson, Odeya Rush, Jordan Rodrigues, Marielle Scott
Género: Comédia, Drama
Duração: 94 minutos