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Foto: Estelle Valente / divulgação

‘Actores’: um ensaio encenado

Desde dia 11 de janeiro que o palco do Teatro Municipal São Luiz tem enchido a sala e os corações do público. Actores estará em cena mais 5 vezes em Lisboa, até dia 28 de janeiro, domingo. Depois viaja até ao Teatro Nacional São João, no Porto, e ao Cine-Teatro Louletano, em Loulé.

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Foto: divulgação

Enquanto a plateia se vai completando, descobre-se, ao atravessar a porta de entrada da sala de espetáculos, um palco nu, despido de todo o panejamento que habitualmente o inunda e o sufoca.

Uma folha em branco com cadeiras, tripés, microfones, aquilo que parece um estúdio de gravações, que se vê através de uma janela. Uma porta do lado esquerdo da janela e do lado direito o guião, a coreografia, a sequência de atores, de personagens, de sonhos e de realidades que foram escolhidos para este Actores de Marco Martins.

Os atores são cinco, Bruno Nogueira, Carolina Amaral, Miguel Guilherme, Nuno Lopes e Rita Cabaço. Pessoas diferentes, atores diferentes, percursos diferentes.

O palco deixa de ser palco para ser uma sala de ensaios. O palco deixa, por vezes, de ser sala de ensaios para ser palco. Tal como os atores, que ora são personagens ora são eles próprios. São, ao longo de mais de duas horas, uma dança constante entre eles e infinitas passagens, infinitas personagens.

Que trabalho é este o de ser ator? O de ser várias pessoas? O de ter vários corações, várias emoções e várias vidas? Por trás de mil papéis estão as pessoas que os leem, que leem e decoram os papéis. Por trás das personagens estão as pessoas. As pessoas que têm a profissão de ser ator.

Este é um ensaio encenado que virou peça. Um palco de experimentações.

Começa a peça.

I

A sala de ensaios está vazia – de atores. Ouve-se e vê-se a leitura da didascália inicial. Abre-se a porta e entram os atores, que se sentam em cinco das muitas cadeiras dispersas pelo palco. Os figurinos são, aparentemente, roupas do quotidiano de Bruno, Carolina, Miguel, Nuno e Rita.

Bruno Nogueira, 35 anos, 1 metro e 94 centímetros, começa por deixar o corpo ceder à música que se faz ouvir. “Podes repetir, por favor?”, pede o encenador, de lá de trás onde o público não o vê, mas ouve. Bruno, que era outra pessoa, volta a ser Bruno e, meio frustrado por ter sido interrompido, retoma o lugar inicial para voltar a deixar de ser Bruno.

Atirado para o palco, e para os olhos do público, está um dos muitos temas desta peça: a repetição a que os atores são constantemente sujeitos. “Repete mais uma vez, por favor”. E a música recomeça, os movimentos repetem-se. Com mais força, mais intenção e intensidade.

À vez, cada um deles vai ao estúdio de gravações, escondido por trás da porta, para gravarem o mesmo texto, mas com intenções e emoções diferentes. Estamos perante uma espécie de casting.

O estúdio tem uma câmara, que grava a expressão dos atores num zoom imenso, e a imagem é projetada num painel gigante, suspenso acima do estúdio, do lado direito. O encenador, lá de trás, vai dando indicações sobre as intenções que quer que os atores imprimam no texto.

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Foto: Estelle Valente / divulgação

De volta à sala de ensaios, que, entretanto, já se transformou em palco, Nuno e Rita repetem de várias formas “F-se Jack”. A chorar, a rir, com medo, “F-se Jack” de todas as formas. “F***-se Jack” sem som, aos berros, a cantar, mais lento…

II

Esta é uma peça sobre memórias, que as revisita e as transforma noutras diferentes. Deixa que os atores se apropriem delas e as construam de novo, formando outras coisas. Por isso, tantas vezes ao longo desta peça, o espetador se debate se estará a ver Bruno, Carolina, Miguel, Nuno e Rita ou as personagens de, por exemplo, À Espera de Godot (Beckett), de Jardim Zoológico de Cristal (Tennessee Williams), de Três Irmãs (Tchékhov), de Esta Noite Improvisa-se (Pirandello), de Música (Wedekind), de Pillowman (Martin McDonagh), de Rosencrantz & Guildenstern Estão Mortos (Tom Stoppard) ou de A Estupidez (Rafael Spregelburd).

Nesta peça, há personagens atravessadas por Bruno, Carolina, Miguel, Nuno e Rita, ao mesmo tempo que os cinco são atravessados por personagens.

Esta não é uma peça que convoca as melhores memórias ou as menos felizes. Esta é uma peça para a qual se arregaçam as mangas e se entra nas experiências mais dolorosas e humilhantes de cada um dos cinco atores, não para delas surgir compadecimento ou compaixão, mas para delas se erguerem “fachos de luz a arder”. Escondida, vem uma tímida homenagem, não só a estes atores, mas também ao ‘ser ator’ no nosso país.

III

Carolina Amaral é Luísa Cruz. Numa peça onde todos são as suas memórias e lhes dão vida, Carolina está em Actores para ser as memórias de Luísa.

Marco Martins recentemente tinha-a dirigido, com Beatriz Batarda, em Todo o Mundo é Um Palco.

Após todo o período de recolha de textos e de histórias de cada ator, Luísa Cruz abandonou o projeto por incapacidade de gerir os dois espetáculos em que estava a trabalhar em simultâneo.

Perante isto, Marco Martins tinha duas opções: ou abandonava por completo a personagem da Luísa, todas as histórias que tinham construído com ela e todo o material recolhido ao longo de meses, ou pedia a uma atriz totalmente distinta, de outra geração, para interpretar o seu papel.

Apesar de à personagem de Luísa estar associada a fluência no francês e no canto lírico, o encenador lembrou-se da atriz de Todo o Mundo é Um Palco. Assim, Marco ganhou mais uma camada nesta reflexão: tinha acabado de perder uma atriz devido a uma sobreposição de trabalhos, tal como acontecia em palco e tal como acontece na vida dos atores (uma realidade que se impôs a esta ficção). Concomitantemente, tinha agora a possibilidade de dar a esta peça mais uma perspetiva da construção ficcionada sobre a memória que estavam a realizar.

A personagem de Luísa Cruz nunca deixou de existir. Carolina é Luísa, o que lhe falta é a memória física, psicológica e emocional. Não são as suas próprias histórias, nem sequer teve oportunidade de estar presente nos momentos de que fala Luísa, porque, afinal a atriz tem 24 anos e Luísa Cruz tem 55 anos, cheios de histórias.

Não a imitando, apropria-se do trabalho da atriz para o reinventar, pensando-o de uma forma que Luísa não poderia ao trabalhar sobre si mesma. Assim, Carolina é a memória de uma atriz ausente. Patente fica então a ironia do trabalho do ator, do jogo do teatro.

Remetendo-nos para o Teatro Nacional São Carlos em 2003, onde Luísa Cruz foi chamada para substituir a protagonista Isabelle Huppert em Jeanne d’Arc au Bûcher, Carolina canta num francês quase doentio. A doença de Isabelle Huppert acabou por ceder e, na noite da estreia, não foi Luísa Cruz que subiu ao palco.

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Foto: Estelle Valente / divulgação

IV

Marco Martins defende que esta repetição exaustiva só faz sentido se ajudar o ator a chegar àquilo que o encenador pretende para a personagem – em peças ‘normais’. Mas esta não é uma peça normal. Esta é uma peça de reflexão sobre atores, encenador e o papel que cada um tem.

A ideia para Actores surgiu quando por inúmeras vezes assistiu a atores com quem trabalhava em cinema aproveitarem pausas para decorar texto para outros espetáculos ou saírem a correr para ir fazer uma peça – voltando diferentes, sem estarem na mesma fase em que deixaram as personagens que estavam a interpretar para o encenador.

Marco chegou a preocupar-se por ver intérpretes a multiplicarem-se por inúmeros pormenores de três, quatro peças, enquanto ele apenas passava dias a viver com os mesmos problemas do filme. Encontrou então nesta peça a maneira de expressar esta inquietação: um ator desdobra-se e desmonta-se para, por necessidades económicas, conseguir pagar a renda de uma casa, por exemplo, por conseguir viver desta profissão. Para um ator já é normal, ser ele próprio é ser e estar disposto a ser outros.

Corremos então à sucessão de sete personagens a que nos sujeita Rita Cabaço.

Intervalo? Podem falar

Vamos para intervalo? Ironicamente, Rita continua. Ironicamente, é expressa de forma óbvia a indicação que se pode falar e que estamos no intervalo e mesmo assim lá fica Rita, num infinito exercício de levar à exaustão.

O seu corpo, apesar de já ter cedido antes, apesar de Nuno já lhe ter oferecido água e apesar de Carolina já ter dito que a atriz não está bem, apesar da própria já ter pedido para passarem à próxima cena, Marco, o encenador, pede-lhe que continue. E Rita continua, pelo intervalo adentro, sem parar, sem descansar. A dança, o movimento vem de dentro, das vísceras, de tal modo que vem som a acompanhar a dança. O encenador, a certa altura, pergunta-lhe se está cansada. Não responde. Pergunta-lhe porque faz determinado movimento. Responde que o corpo está simplesmente a experimentar.

Miguel Guilherme comparou já a repetição e os ensaios com a preparação técnica de uma bailarina que se exercita várias horas por dia para chegar ao palco e deixar-se ir, simplesmente deixar o seu instrumento assumir o controlo, sem se preocupar se vai cair porque está livre. Dominando o texto, no caso dos atores, consegue-se um campo de infinitas possibilidades e não um território de mera reprodução de um caminho cartografado.

Exercendo um lugar de poder, que contrasta com a liberdade de que Miguel Guilherme nos fala, a Marco Martins cabe-lhe um papel paradoxal: pensou uma peça sobre exaustão, repetição e, até, humilhação, e que faz o espetador refletir, para depois ser ele próprio a fazer com que os atores passem por isso mesmo.

Enquanto noutras peças os atores são confrontados com uma coreografia, um novelo de cenas já pensadas, este espetáculo é diferente. Os atores, por um lado, foram buscar as suas memórias, recriam-nas, mas são confrontados com a voz de um encenador que constantemente lhes pede que repitam, que reforcem estas suas memórias.

V

No caso específico de Bruno Nogueira, a percepção exterior do público às suas personagens pode sempre acabar por desgastá-lo ou quase levá-lo ao desespero. Como a sua imagem está ligada sobretudo à comédia stand-up e ao humor, qualquer frase que lhe saia da boca suscita o riso, mesmo que esteja na pele do atormentado desempregado de A Conquista do Pólo Sul, texto de Manfred Karge, dirigido por Beatriz Batarda. No final desta sequência, ninguém no público se ri…

VI

Os sonhos (ou antes os pesadelos) vêm no fim. À vez, cada um dos cinco atores se apodera de um microfone e conta ao público um pesadelo que já teve sobre teatro.

O último de todos é o de Miguel Guilherme, que, para fechar Actores, sonha que numa das peças que levou a palco, matava todos os membros do público. Como todos os sonhos contados e depois encenados, os cinco atores matam o público.

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Foto: Estelle Valente / divulgação

Actores

Esta é a peça que abre espaço para o erro, para o repetir, que, apesar de inquietante para o público, se torna um elemento que claramente o absorve.

Ao entrar e sair das personagens, a exaustão dos atores faz-se notar num corpo moribundo devido a todas as transformações que se dão neles mesmos, como se dum ato de violência física e mental se tratasse. Quem estamos nós a ver quando as máscaras todas caem por terra? Que movimento é este o de passar de uma personagem para outra sem parar?

Mexer com memórias de exposição e de humilhação funda um espetáculo de medo e de receios, de incompreensões. Funda um espetáculo que passa para o lado do público, fazendo dele um membro, uma parte de Actores, um espetador inquieto, para deixar o público boquiaberto.

As personagens são eles próprios. As personagens de Actores são Bruno, Carolina/Luísa, Miguel, Nuno e Rita, enquanto por eles passam outras personagens. Bruno, Carolina/Luísa, Miguel, Nuno e Rita são atravessados por personagens infinitas, por infinitos outros de si mesmos. E como são eles mesmos, e continuam aqui para nos contar as suas histórias, as suas personagens ou ficam no tempo perdidas ou vão morrendo. Mas só as personagens, eles não. E trabalho ingrato, esse de ter de morrer, de ter de fingir a morte. É que o ator finge, porque nunca viveu tal coisa na sua vida.

Aos que escolhem esta profissão é lhes pedido que deixem em palco emoções, uma vida, uma série de acontecimentos que já viveram, é lhes pedido que morram.

A imagem da tela gigante é transmitida a preto e branco, mais cinematográfico e introspectivo do que as cores e o registo que a cena física mostra. O dispositivo montado em cena mostra o palco do ponto de vista dos atores, as suas pausas, as suas necessidades de silêncio, a sua sala de ensaios.

Onde ver

Actores estará em cena até dia 28 de janeiro, em Lisboa. Depois parte para o norte, para o Teatro Nacional de São João, no Porto. Aqui estará entre 7 e 11 de fevereiro. De quarta a sexta, as sessões serão às 21h00, sábado às 19h00 e domingo às 16h00. O preço dos bilhetes varia entre 7,5 e 16 euros.

Mais informações aqui.

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